Correio da Cidadania

Quem vai governar Portugal?

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Onze dias depois das eleições para a Assembleia da República (o parlamento português), ainda não se sabe quem vai ser o primeiro-ministro e qual a composição do próximo governo do país. Um turista desavisado que chegasse na terça, dia 13, a Portugal e comprasse o Correio da Manhã descobriria espantado que a “esquerda radical” estava prestes a assumir o governo. “Medo de Catarina assusta Bolsa” era a manchete do jornal de maior tiragem do país. “Ações da banca caem a pique após declarações da líder do BE (Bloco de Esquerda)”, escrevia ainda o diário, em jeito de lead, completando com a “assustadora” declaração de Catarina Martins: “Governo de Passos e Portas acabou hoje”.

 

Apavorado, se fosse conservador, ou entusiasmado, se fosse de esquerda, o turista começaria a procurar explicações na imprensa de papel e online e encontraria uma espécie de comício virtual a muitas vozes contra a possibilidade de o governo do PSD e do CDS deixar de governar o país: “A hora é grave. Apoiado na extrema-esquerda, o PS está a impedir a direita de chegar ao poder mesmo depois de a direita ter vencido as eleições” (Henrique Raposo, Expresso); “De longe o mais extraordinário que está a acontecer em Portugal é que é tudo verdade: não é um sonho, uma ficção, uma mentira (...) O último ato desta nunca entre nós estreada peça pode vir a ter como epílogo um governo socialista acolitado de stalinistas e anti-europeístas radicais” (Maria João Avillez, Observador); “A direita terá de vir para as redes sociais e para a rua. Terá de mostrar-se 'indignada' com a 'ilegitimidade' de um governo de derrotados nas eleições” (Rui Ramos, Observador).

 

Imagine o leitor este tipo de declarações multiplicado por dez e ainda ficará aquém do que tem dito o “comentário único” (a esmagadora maioria dos opinadores dos meios de comunicação social é de direita e diz praticamente o mesmo) sobre a situação política criada pelas eleições de 4 de outubro.

 

Por esta altura, nosso hipotético turista já teria corrido ao aeroporto para pegar o primeiro avião que o retirasse do país ou, pelo contrário, teria ordenado a um taxista que o levasse ao “Palácio de Inverno” à beira de ser tomado pelos revolucionários.

 

O objetivo desta matéria é fornecer aos leitores que não acompanham regularmente a política portuguesa um guia para compreender o resultado das eleições e o que está acontecendo agora – e as possíveis alternativas para o governo que virá a ser formado em breve. Pedimos a compreensão dos leitores pela extensão do texto, mas o assunto, como se verá, é complexo.

Passos Coelho não foi “reeleito”

“Noite de surpresa em Lisboa: Passos Coelho reeleito”: este era o título da matéria sobre as eleições portuguesas do Estado de S. Paulo, no próprio domingo, dia 4. Títulos semelhantes, com mais ou menos precisões, foram reproduzidos na imprensa internacional, chamando a atenção para um fato insólito: a direita vencera as eleições depois de ter aplicado uma política de “austeridade” implacável, depois de ter empobrecido o país, de ter forçado meio milhão de portugueses a emigrar porque não encontravam emprego em Portugal, depois de ter criado desemprego recorde, de ter reduzido salários e pensões e aumentado impostos a níveis inéditos – tudo isto a mando da “troika” comandada pela senhora Merkel, a chanceler alemã que dá as cartas na União Europeia.

 

Teriam os portugueses ficado malucos?

 

Acontece que a história não é bem assim. Pela primeira vez desde há muitos anos, os dois partidos de direita, o PSD e o CDS, apresentaram-se coligados, justamente para terem mais chances de aparecerem como vencedores, isto é, serem a sigla mais votada. A sua coligação chamou-se “Portugal à Frente” (Pàf). Nas eleições anteriores, PSD e CDS apresentaram-se separadamente e só se coligaram para formar governo.

 

Desta vez, a coligação pré-eleitoral rendeu: a Pàf ficou em primeiro lugar, com 38,5%, seguida do PS, com 32,3%, do Bloco de Esquerda, com 10,19% e da CDU (coligação liderada pelo Partido Comunista Português – PCP, com o PEV, Partido Os Verdes), com 8,25%. (Veja aqui todos os resultados globais)

 

Mas esta “vitória” tem de ser relativizada, porque a coligação de direita, apesar de ter chegado na frente, perdeu a maioria absoluta. Antes, os dois partidos tinham 129 deputados, mais que suficiente para aprovarem no Parlamento tudo o que quisessem (a maioria absoluta é 116). Agora, terão 107 (89 do PSD e 18 do CDS), longe da maioria no Parlamento.

 

Acontece que as eleições em Portugal não são para primeiro-ministro (e por isso o título do Estadão estava errado, Passos não foi “reeleito”) e sim para deputados do Parlamento; o primeiro-ministro é aprovado pelo Parlamento, depois de indigitado (designado) pelo Presidente da República, “levando em conta os resultados eleitorais e ouvindo os partidos”, de acordo com a Constituição.

 

Governos minoritários ou majoritários

O primeiro-ministro indigitado forma então o governo e apresenta o seu programa ao Parlamento. Mesmo que não tenha maioria parlamentar, pode tomar posse, desde que não seja aprovada uma moção de rejeição e nem ele mesmo apresente e perca uma moção de confiança. Isto é: são possíveis governos minoritários, mas têm de contar com que o Parlamento os “deixe passar”. Eram governos minoritários os de António Guterres (1995-2002) e o segundo governo de José Sócrates (2009-2011), por exemplo. Quando se apresentaram ao Parlamento, nenhum partido entrou com uma moção de rejeição e nem eles puseram à votação moções de confiança. “Passaram”, e tiveram de negociar o Orçamento de Estado e as leis, uma a uma, para conseguir maioria.

 

Mas agora as coisas vão acontecer de forma diferente: se Passos Coelho for chamado a formar governo, o Bloco de Esquerda e o PCP já anunciaram que apresentarão uma moção de rejeição. Assim, a possibilidade de um novo governo da direita tomar posse depende exclusivamente do PS. Se este partido votar a favor da moção de rejeição, o governo nem chega a assumir, porque, somados, PS, Bloco e CDU têm 122 deputados e PSD e CDS têm apenas 107. Se, porém, o PS se abstiver, a moção não será aprovada e o governo entra em funções.

 

Mas o que acontece se a moção de rejeição for aprovada? O novo governo de Passos Coelho nem chega a tomar posse, e o presidente tem de chamar a formar governo o líder do segundo partido mais votado – no caso António Costa, do Partido Socialista – que, por sua vez terá de passar pelo mesmo ritual. Ora o Bloco e a CDU já afirmaram que não será pelo seu voto que a direita se manterá no governo, o que equivale a dizer que viabilizarão o governo de António Costa. “O PS só não governa se não quiser”, disse o secretário-geral do PCP, Jerónimo de Sousa. Isto porque, como vimos, os votos somados de PS, Bloco e CDU totalizam 50,87% e 122 deputados, a tão almejada maioria absoluta.

 

É por isso que a “vitória” da direita tem de ser posta entre aspas. Porque nas eleições os dois partidos da coligação – CDS e PSD – perderam, em relação às eleições de 2011, 730 mil votos e terão menos 25 deputados. Tiveram o segundo pior resultado da história da democracia portuguesa (desde 1974). Só em 2009, em circunstâncias muito particulares, a sua votação foi pior: 36,1%. E só eles perderam votos.

 

Todos os restantes partidos cresceram: o PS ganhou 172 mil votos, e tem mais 12 deputados que em 2011, o Bloco de Esquerda teve mais 260 mil votos, quase duplicando a votação e ganhando mais 11 deputados; finalmente, a CDU consolidou a votação anterior (mais 4 mil votos) e ganhou um deputado.

 

De todos os restantes partidos e coligações que se apresentaram aos eleitores (16, no total), apenas o partido Pessoas, Animais e Natureza (PAN) elegeu um deputado.

Negociações à direita e à esquerda

É fácil verificar, pelo que dissemos acima, que a situação criada pelos resultados eleitorais deixou o PS numa situação privilegiada. A direita só chega ao poder se o PS deixar passar o seu governo, ou se este partido negociar um acordo parlamentar que dê à direita maioria nas questões essenciais.

 

Por outro lado, o PS já teve garantias por parte do Bloco e do PCP que um governo seu seria viabilizado e ambos os partidos se dispuseram a negociar condições de um acordo político que seria majoritário no Parlamento.

 

Nestas condições, a Comissão Política do PS decidiu negociar tanto à direita quanto à esquerda, e é isso que tem acontecido nestes dias.

 

As negociações com a direita foram desastrosas. Na primeira reunião, Passos Coelho apareceu arrogante e de mãos vazias e ouviu de António Costa que cabia a ele apresentar uma proposta concreta de entendimento e que, sem isso, a reunião fora inútil. No segundo encontro, o tom da direita já tinha mudado completamente. Levaram uma proposta de 23 pontos, todos retirados “copy-paste” do programa do PS, e saíram lamentando que os socialistas não tivessem apresentado propostas concretas de outros pontos que pretenderiam incluir.

 

O tom de Passos Coelho, ao falar à imprensa no final da reunião, perdera a arrogância e parecia suplicante. O PS, por seu lado, acusou os interlocutores de não levarem, como lhes fora pedido, o estudo em números do impacto do seu programa de governo. Começou então uma troca de acusações e de ameaças de ruptura das negociações.

 

A grande surpresa

Já as negociações com a esquerda correram surpreendentemente bem. E foi então que o nervosismo da direita aumentou. Todos esperavam que a reunião do PS com o PCP seria um mero ritual para que este último partido afirmasse que iria rejeitar liminarmente qualquer acordo com o PS. Mas o que aconteceu foi o oposto.

 

O partido disse estar pronto “para assumir todas as responsabilidades”, “incluindo governativas”, apresentando dez propostas para o programa do governo. Mesmo reconhecendo as dificuldades de encontrar uma convergência para este programa, o PCP afirmava que “continua a haver margem para soluções governativas que não permitam que PSD e CDS, contra a vontade popular, prossigam a sua ação política”, garantindo que em quaisquer circunstâncias um governo do PS teria “garantidas condições para a sua formação e entrada em funções”.

 

Depois deste terremoto político, os olhos voltaram-se para a reunião com o Bloco de Esquerda. Durante a campanha eleitoral, a líder do partido, Catarina Martins, já apresentara um reto a António Costa, afirmando estar disposta a negociar depois das eleições uma solução de governo, desde que o PS desistisse de algumas propostas do seu programa, mais contrárias aos interesses dos trabalhadores. O líder do PS nunca lhe respondera.

 

Assim, na segunda-feira, 12, quando terminou a reunião Bloco-PS e Catarina Martins anunciou que “no que depende do Bloco de Esquerda, fica hoje claro que o governo de Passos Coelho e Paulo Portas acabou” por estarem reunidas as "condições de consenso básico" para se encontrar uma "outra solução de governo", o terremoto ampliou-se. O líder do PS confirmou que a reunião fora “muito interessante”, tendo sido possível “identificar de modo positivo um conjunto de matérias passíveis de convergência entre os dois partidos”.

 

A direita, em pânico, começou então a denunciar um golpe que estaria em curso, porque o PS, que não vencera, queria assumir o poder. Ora o que a Constituição diz não é que tem de obrigatoriamente governar quem chegou à frente nas eleições, e sim que deve formar governo quem for aprovado pelo Parlamento. Aliás, esta é uma situação muito comum na Europa. Neste momento, há quatro países europeus cujos primeiro-ministros não saíram do partido vencedor das eleições: Luxemburgo, Dinamarca, Bélgica e Letônia.

 

Cenários possíveis

O futuro do governo está, assim, nas mãos do líder do PS. E os cenários possíveis são muitos: o Presidente da República, Cavaco Silva, indigita Passos Coelho, este forma governo, a moção de rejeição do seu programa não é aprovada (porque o PS, por exemplo, se abstém) e o governo da direita assume. Será um governo frágil porque não tem maioria garantida para nada; mas conta com o apoio passivo do PS. Também há o cenário de o PS chegar ainda a acordo com o PSD e o CDS e não só viabilizar o governo como dar-lhe apoio parlamentar. O cenário existe, mas parece pouco provável.

 

Se ocorre o cenário da rejeição pelo Parlamento do governo Passos Coelho, o presidente terá de chamar António Costa. Este poderá formar um governo viabilizado pelo Bloco e o PCP, que se comprometem a dar-lhe os votos para tomar posse e aprovar o primeiro Orçamento de Estado; pode também chegar a um acordo parlamentar entre os três partidos para sustentar o governo por todo o mandato; e pode finalmente formar um governo com a integração no ministério de membros do Bloco e do PCP.

 

As duas últimas alternativas parecem mais improváveis, dado o nível de divergências entre o PS e os dois partidos à sua esquerda em relação à dívida, à União Europeia e ao euro, só para mencionar algumas das diferenças mais importantes. Mas a primeira parece bastante viável.

Há ainda a alternativa de o presidente indigitar desde o início António Costa, por ser o único capaz de apresentar uma solução majoritária (difícil, porque Cavaco Silva é do PSD e tem demonstrado total ausência de independência).


Haveria também a possibilidade de o presidente da República, diante do impasse, convocar novas eleições, mas não pode fazê-lo porque a Constituição impede esta medida nos últimos seis meses de mandato do presidente, e as eleições presidenciais são em janeiro. Assim, novas eleições parlamentares só poderão ocorrer a partir de abril do ano que vem.

 

Que imbróglio, não?

 

Por que a direita, apesar de tudo, teve tantos votos?

Resta, porém, uma questão: mesmo perdendo 730 mil votos, como foi possível que a direita ainda tivesse 38,5% depois de tanto mal feito ao povo português? Esse é um tema que ainda fará correr muita tinta (ou muitos bytes), e este que vos escreve só pode adiantar uma opinião: na verdade, a direita não ganhou as eleições; o PS é que as perdeu.

 

Para se preparar para as eleições, António Costa chamou um grupo de economistas neoliberais para fazer o seu programa econômico. Estes, como seria de esperar, fizeram... Um programa neoliberal, que impunha novas medidas de austeridade, como congelar as pensões (aposentadorias) durante quatro anos, implicando numa perda de 1,6 bilhão de euros aos já depauperados aposentados, ou a facilitação das demissões, apresentadas como “por consenso”.

 

O programa, aliás, não escondia as suas consequências, pois apresentava também um estudo de impacto das medidas quando fossem aplicadas. Em resumo: enquanto a direita prometia prosseguir a mesma política de austeridade, garantindo que “o pior já passara”, o PS apresentava um programa também de austeridade. E isto porque se recusa a romper com os tratados da União Europeia, como o Orçamental, que impõe déficits de no máximo 3%, e sobretudo porque se recua a pôr em causa a dívida externa impagável.

 

Confrontado com os dados do “Estudo de Impacto” nos debates durante a campanha eleitoral por Catarina Martins, do Bloco de Esquerda, o secretário-geral do PS engasgou-se, não soube explicar-se e perdeu fragorosamente o confronto. Perdeu também o segundo debate com Passos Coelho pelo mesmo motivo. E não foram apenas estes os desastres da campanha do PS. Foram tantos que seria tedioso (e demasiado longo para a paciência do leitor) se enumerasse os tiros nos pés que António Costa deu durante a campanha. Só um anedótico: os primeiros cartazes da campanha do PS apresentavam o rosto de pessoas, identificadas como desempregadas, que na verdade estavam a trabalhar e não tinham dado autorização para o uso da sua imagem nos cartazes...

 

No final, quando o desespero tomou conta da campanha do PS, os seus responsáveis não encontraram melhor do que acenar o espantalho da vitória da direita, pedindo aos eleitores que não votassem no Bloco de Esquerda ou na CDU, porque eram “votos inúteis” (chegaram mesmo a dizer que cada voto no Bloco ou na CDU era um voto na direita), votando “útil” no PS. Em vez de propostas mobilizadoras que lhes trouxessem votos, os dirigentes do PS, porque não as tinham, optaram pela arma do medo.

 

Não funcionou. A CDU consolidou a sua votação e o Bloco de Esquerda foi o grande vitorioso das eleições, passando de 8 para 19 deputados, com cerca de 550 mil votos no total e uma campanha alicerçada na denúncia da austeridade e das suas medidas, na proposta da renegociação da dívida, do aumento de salários, na reposição do que foi roubado em salários e pensões e na criação de emprego.

 

O furacão Catarina


Há dez meses, quando o Bloco de Esquerda reuniu a sua convenção, muitos “analistas” previam o fim do Bloco, que sofrera duas rupturas e estava muito dividido internamente. Mas, sob a liderança de Catarina Martins, o partido renasceu.

 

A “pequena Catarina”, 1,5 metro de gente e 42 anos de idade, ganhou todos os debates que travou com os líderes dos outros partidos, foi forte e serena, pôs o dedo na ferida e fez propostas, sempre com um sorriso nos lábios.

 

No final da campanha já fazia comícios espontâneos na rua, porque as pessoas se juntavam para ouvi-la mal a reconheciam, e no último dia, numa ação de propaganda numa das principais ruas comerciais do Porto, quase não conseguia andar tal era a quantidade de gente que queria cumprimentá-la, abraçá-la, fotografá-la. Só no Porto, onde ela era candidata, o Bloco de Esquerda passou de 2 deputados para 5!

 

Com 10,19%, o que corresponde a 550.892 votos e 19 deputados, o Bloco de Esquerda passou a ser a terceira força política do país.

 

 

Luis Leiria é jornalista do Esquerda.net

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