Correio da Cidadania

Migração e evasão de cérebros

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A hipocrisia

 

 

Segundo o órgão da ONU responsável pelo apoio a refugiados (Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, ACNUR), havia, no final de 2014, 59,5 milhões de pessoas deslocadas involuntariamente de seus países de origem (1). Nem todos esses são considerados refugiados, pois esta classificação é reservada, por convenção internacional, àquelas pessoas que estão involuntariamente fora de seu local usual de moradia e apresentam uma razão bem fundamentada que justifique seu medo de perseguição. Com esse critério, os refugiados são estimados em vinte milhões pela ACNUR.

 

Entretanto, além daquelas quase 60 milhões de pessoas, há praticamente outros cerca de 50 milhões de migrantes que vivem nos países não industrializados, talvez muitos procurando uma vida melhor, mas muitos, certamente, fugindo de uma vida ruim. Há, ainda, um número próximo de 750 milhões de pessoas deslocadas vivendo nos países de origem, mas fora de seu local habitual de moradia (2), grande parte deles deslocada involuntariamente.

 

Seja o critério mais restrito, que leva à estimativa de 20 milhões de refugiados, na forma tecnicamente definida pelos acordos internacionais, seja a estimativa da ACNUR, de quase 60 milhões de deslocados involuntariamente, ou o número de migrantes nos países pobres, superior a 100 milhões de pessoas, ou, ainda, o número total de migrantes que, incluídas as migrações internas, pode chegar a um bilhão de pessoas, os números de pessoas deslocadas estão entre dezenas e centenas de milhões.

 

A crise humanitária, manifestada na forma de migração involuntária, não é nova, pois esses números citados não são consequências das recentes guerras, invasões, crises econômicas ou terremotos. Entretanto, essa expressão – crise humanitária – só foi incorporada abundantemente aos jargões políticos e apareceram nas primeiras páginas dos jornais em tempos recentes, quando dezenas ou centenas de milhares (milhares, não milhões) de pessoas começaram a bater nas portas dos países europeus.

 

Enquanto pessoas fugiam, aos milhões, do Iraque, Afeganistão, Síria, Somália, República Democrática do Congo, Paquistão etc. e centenas de milhões se deslocavam de seus locais originários de moradia por causa de guerras internas, fome, pobreza extrema etc., não se usava a expressão “crise humanitária”. Essa expressão só surgiu quando uma pequeníssima parte daquelas dezenas ou centenas de milhões de pessoas, talvez bem menos do que 1%, chegaram às fronteiras europeias.

 

Enquanto fugiam em seus próprios países, para países vizinhos ou se alojavam em campos de refugiados, não se falava em crises humanitárias. Essa pessoas eram invisíveis. Certamente, há aí uma mistura de cinismo com hipocrisia, talvez viabilizada pelo fato de que a grande maioria das pessoas no mundo todo não tenha nenhuma ideia de quantos são os migrantes, os deslocados ou os refugiados.

Evasão de cérebros

 

A migração involuntária, a fuga dos países de origem, os pedidos de asilo, o deslocamento forçado etc. são, certamente, problemas daqueles que passam por alguma dessas situações. Entretanto, não têm sido considerados vários outros aspectos ligados àquelas condições, como a perda de pessoas mais escolarizadas por parte dos países mais desfavorecidos.

 

Embora os deslocamentos forçados afetem todas as pessoas, os deslocamentos para os países mais ricos são feitos, principalmente, por aqueles que têm recursos para pagar as despesas, seja para traficantes de pessoas, seja para companhias aéreas. Além disso, só têm alguma chance de integração em um país mais rico as pessoas com uma capacidade de trabalho minimamente sofisticada, o que exclui os analfabetos, os trabalhadores sem ofício definido, grande parte dos agricultores – mesmo porque a maior parte dos agricultores dos países mais pobres é formada por analfabetos –, os idosos, as pessoas deficientes etc. Em resumo, migram, em especial para os países industrialmente desenvolvidos, as pessoas melhor escolarizadas.

 

Os dados de migração de pessoas que podem ser consideradas altamente escolarizadas para os padrões educacionais dos países de origem são impressionantes. Vejamos alguns. Oitenta por cento ou mais dos imigrantes do Haiti e da Guiana têm pelo menos um ano de ensino superior (3). Se considerarmos que nesses países pequeníssimas frações da população chegam até aquele nível escolar (no Haiti, mais do que a metade das pessoas com 15 anos ou mais é analfabeta), conseguimos perceber a intensidade e dramaticidade da migração de pessoas escolarizadas.

 

Outro tipo de dado que serve para exemplificar a gravidade da evasão de quadros profissionais dos países mais pobres em direção aos países mais ricos é o número de médicos originários dos países da África subsaariana nos EUA: 11.800. Esse número é maior do que o número de médicos em 34 países daquela região, da ordem de 11.500 (4).

 

Esses poucos exemplos citados são suficientes para ilustrar o fato de que o dano e o sofrimento causados pela migração, especialmente a migração involuntária, carregam outros aspectos, além daqueles vistos por meio dos (e sofrido pelos) migrantes. Os que ficam, por não terem condições financeiras, pessoais ou educacionais para migrar, são privados dos quadros profissionais que seus países formaram, agravando ainda mais as condições de vida nos países mais pobres.

 

Frente a essa situação, a melhor ação internacional seria na forma de uma cooperação desinteressada de qualquer aspecto econômico, militar, político ou geopolítico por parte dos países mais ricos. Entretanto, o que ocorre é exatamente o inverso disso: em lugar de cooperação internacional, o que vemos é o aproveitamento das fragilidades políticas e econômicas dos diferentes países e regiões por parte dos países dominantes (5) e das grandes empresas.

 

Conclusão

A hipocrisia, comentada no começo deste artigo, não está completa. O direitista primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, tem declarado – e agido em consonância com tais ideias – que a Hungria não está disposta a aceitar a migração de muçulmanos, mas apenas de cristãos. Essa prática e esse tipo de discurso são seguidos por outros países, como a Eslováquia, a Bulgária, a República Tcheca e a Estônia, segundo notícias veiculadas pela imprensa.

 

Evidentemente, esse tipo de postura tem como possível e provável consequência o reforço do preconceito e do racismo na Europa. E quando uma afirmação feita por um chefe de Estado tem uma possível consequência, é porque se quer que essa consequência venha a ocorrer.

 

Os países mais ricos tratam de forma diferente os vários imigrantes, pois preferem preencher suas cotas humanitárias com profissionais da área da saúde (6), pesquisadores com mestrado ou doutorado, pessoas com curso superior altamente especializadas, especialmente em engenharia, tecnologias, ciências e matemática (essas profissões, títulos e áreas de formação são explicitamente citadas como facilitadores para a concessão de vistos de permanência definitivos na legislação de migração dos EUA). Assim, um migrante que seja um trabalhador especializado terá maiores chances de conseguir asilo do que um menos escolarizado.

 

Não é na crise de migração que a hipocrisia encontrará seu limite. Assim, não devemos nos surpreender se, em algum momento, para justificar a não aceitação de um número maior de migrantes, os países centrais argumentarem que a concessão de abrigo aos refugiados está promovendo uma fuga de cérebros dos países mais pobres e, portanto, deve ser restringida.

 

Enfim, muitos dos países mais ricos são os responsáveis ou, pelo menos, corresponsáveis pela crise que afeta profundamente muitos países africanos, asiáticos, do Oriente Médio e da América Latina, especialmente pela combinação de invasões, bombardeios, financiamento de grupos oposicionistas, organização e promoção de golpes de Estado e exploração predatória de recursos naturais por parte das grandes empresas. Quando essa crise se manifesta na forma de enormes levas de migrantes e deslocados, os países mais ricos, em lugar de atuar na direção de colaborar com os países desfavorecidos no sentido de minimizar a crise, têm tirado proveito dela, agravando-a, portanto. Evidentemente, boa coisa não virá.

 

 

Notas:

 

 

1) As informações sobre a quantidade de migrantes têm como principais fontes os sítios da ACNUR, em especial

http://www.unhcr.org.uk/fileadmin/user_upload/pdf/July_2015/PDF_Displacement_Facts_and_Figures_2014.pdf e http://www.unhcr.org.uk/about-us/key-facts-and-figures.html

2) http://www.un.org/en/development/desa/population/publications/pdf/technical/TP2013-1.pdf

3) http://data.worldbank.org/indicator/SM.EMI.TERT.ZS/countries?page=2&display=default

4) As informações sobre o número de médicos africanos nos EUA e na África têm como fonte o artigo “Monitoring Sub-Saharan African Physician Migration and Recruitment Post-Adoption of the WHO Code of Practice: Temporal and Geographic Patterns in the United States, Tankwanchi ABS, Vermund SH, Perkins DD. PLoS ONE 10(4): e0124734. doi:10.1371/journal.pone.0124734

5) Essa prática dos países mais ricos atraírem pessoas altamente escolarizadas dos países mais pobres deu origem a um código de prática, por parte da Organização Mundial da Saúde, com o objetivo de promover posturas mais éticas. Entretanto, “devido à natureza privatizada do sistema de saúde dos EUA o recrutamento de pessoal da área de saúde do país enfrenta desafios para implantar o código de prática da OMS” (M. Wakefield e N. Dalaire, “WHO Global Code of Practice: Implementation in the U.S”, em http://bhpr.hrsa.gov/healthworkforce/data/international/implementationintheus12142011.pdf).

6) Por exemplo, médicos estrangeiros que tenham diplomas reconhecidos nos EUA e trabalhem legalmente por pelo menos cinco anos em regiões nas quais há deficiência desses profissionais – existe um programa do tipo Mais Médicos nos EUA – estão habilitados a solicitar sua permanência definitiva naquele país.

 

 

Leia também:

A notícia viva em Mytilene - Fernando Moura, de Lesvos, Grécia, para o Correio da Cidadania (texto e fotos)

Refugiados: toda a miséria do mundo

 

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um diagnóstico da Educação Brasileira e de seu financiamento”.

Blog: www.blogolitica.blogspot.com

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