Correio da Cidadania

Reino Unido votará saída da União Europeia

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Antes afligida por uma possível “Grexit” (saída grega da Eurozona), a União Europeia (UE) vive agora sob a sombra de uma “Brexit” (saída britânica da Eurozona). O vitorioso primeiro-ministro David Cameron deixou claro que vai realizar o referendo prometido durante a campanha eleitoral, para decidir se o Reino Unido continua na UE ou a abandona


Uma de suas primeiras medidas de governo depois de anunciado o resultado das eleições foi dialogar por telefone com líderes europeus. “A primeira coisa que devemos fazer é renegociar nossa relação. Em seguida, virá o referendo, em meados de 2017”, indicou Cameron


Em paralelo, o primeiro-ministro se reuniu esta segunda (11/5) com o poderoso Comitê 1922, a organização que reúne o núcleo da bancada conservadora, para buscar respaldo à sua estratégia e evitar o destino sofrido pelo último governo de maioria conservadora, do primeiro-ministro John Major, que terminou numa guerra civil entre deputados eurocéticos e eurófilos.



A renegociação com a UE será responsabilidade de dois pesos pesados conservadores: o ministro de finanças George Osborne e o chanceler Phillipp Hammond. Os conservadores querem que exista uma mudança de regras no bloco europeu para que o Reino Unido tenha mais autonomia e possa eliminar, entre outras coisas, o chamado “turismo social”


Segundo os conservadores, muitos imigrantes do leste europeu vão ao Reino Unido sonhando em aproveitar o sistema de seguridade social britânico. A proposta de Cameron é que tenham de esperar ao menos quatro anos para poder receber benefícios sociais, como o seguro-desemprego ou o acesso ao financiamento habitacional. Cameron – que afirmou querer a permanência na UE – disse que pretende convencer seus sócios europeus dessas mudanças para sustentar um referendo não vinculante, ou seja, com a garantia de que o resultado não termine em divórcio britânico do resto da Europa.



As nações do leste europeu reagiram à ofensiva britânica deixando claro que não aceitariam nenhuma mudança no direito à “liberdade de movimento” de seus cidadãos. Em declarações publicadas nesta segunda pelo jornal “Financial Times”, ministros da Hungria, Polônia e Eslováquia para a UE enfatizaram que esse era um tema inegociável. “Os trabalhadores húngaros são cidadãos europeus com plena liberdade de trabalhar em qualquer outro lugar europeu. Isso não vai mudar”, assegurou o ministro húngaro Szabolcs Takács


Devido à magnitude da vitória de Cameron, outros líderes europeus foram mais conciliadores. A chanceler alemã Angela Merkel cumprimentou o colega por sua vitória, lembrando também a sintonia ideológica entre os dois, enquanto o presidente francês François Hollande, preocupado pelos próprios eurocéticos franceses que também o criticam – a começar pelos da Frente Nacional, de Marine Le Pen –, o convidou para um encontro em Paris


Ninguém, nessa UE angustiada pelos perigos da crise com a Grécia, quer um “Brexit” (british exit). Portanto, haverá uma tentativa de acomodar as posições, mas também existem limites claramente estabelecidos pelos tratados assinados por todos os 28 membros.

 

Uma mudança profunda das regras exigiria uma renegociação dos tratados, que deveriam ser aprovados por unanimidade, receita perfeita para uma crise de proporções ainda maiores que uma “Grexit” e “Brexit” juntas.


Adeus aos direitos humanos e à Escócia


O problema para Cameron é que esses tratados não são toleráveis para muitos de seus deputados. David Davis, que foi derrotado em 2005 por Cameron nas eleições internas do Partido Conservador, deixou claro, neste fim de semana, que pelo menos 60 parlamentares votariam a favor de uma “Brexit” se Cameron não conseguir o acordo que proporá ao bloco


Davis quer que o Reino Unido possa ter a opção de adotar qualquer regra da UE, ou seja, exige “uma Europa a la carte” (na que cada um escolhe que pratos ou regras prefere), algo difícil de conseguir, porque abriria o caminho para que os outros 27 membros do grupo peçam o mesmo. Outro personagem decisivo na negociação que Cameron deverá ter com sua bancada é o presidente do Comitê 1922 Graham Brady, que solicitou um “voto livre” aos deputados conservadores no referendo, inclusive àqueles que também são ministros


Numa tentativa de apaziguar o furacão à vista, Cameron nomeou como ministro da Justiça, nesta segunda, o conhecido político eurocético Michael Gove, um jornalista de “mão forte, conhecido por sua campanha pelo retorno da pena de morte. Segundo a imprensa conservadora, que também é eurocética em sua maioria, Gove quer abolir a Lei de Direitos Humanos que, em 1998, incorporou a Convenção Europeia de Direitos Humanos à legislação britânica, e substituí-la por uma versão própria, uma proposta que deveria contar com a simpatia dos demais representantes eurocéticos.



Além disso, o primeiro-ministro terá que incluir os escoceses em sua gestão, para recuperar o apoio na região que hoje está dominada pelos separatistas do SNP, que ganharam 56 das 59 cadeiras que a Escócia tem no parlamento. Cameron prometeu uma “máxima retribuição” para a Escócia, com novos benefícios e prioridade orçamentária, mas a líder do SNP, Nicola Sturgeon, quer a autonomia econômica máxima, para manejar a dívida da região ou mesmo fixar seu próprio salário mínimo, num sistema federalista semelhante ao alemão.

 

Num Reino Unido tão desunido, ganhar as eleições com maioria absoluta parece, hoje, a parte mais fácil da realidade política. Ao menos é o que enfrenta Cameron.



Ganhadores e perdedores



A desunião não se limita à relação entre Escócia e Inglaterra. Uma rápida observação do panorama entre vencedores e perdedores desta eleição mostra as fraturas da sociedade britânica


As ações dos bancos, companhias energéticas, contratistas vinculados ao programa nuclear Trident, companhias de transporte e empresas provedoras de serviços ao Estado dispararam na mesma sexta seguinte ao pleito, e seguiram em sua via ascendente nesta segunda, quando começou oficialmente a primeira semana do novo mandato do conservador


Outros grandes ganhadores são os grupos imobiliários. Segundo a imobiliária internacional Savills, haverá um aumento de 10% no valor das propriedades em Londres durante este governo conservador.

 

Na capital, já intratável tanto para aluguéis quanto para compras, aprofundar-se-á o fenômeno da “generation rent”, os menores de 30 anos com nenhuma perspectiva de acesso à propriedade, algo que não sucedia nas gerações anteriores.

 

A lista de perdedores é numericamente mais extensa.

 

Politicamente, os grandes derrotados são os da esquerda trabalhista e da direita liberal-democrata, que deverão escolher seus novos líderes nos próximos meses. No primeiro caso, a situação aponta ao retorno do “blairismo” (setor do partido ligado à figura do ex-primeiro-ministro Tony Blair), que significa o fim do discurso de reformas para diminuir os níveis de desigualdade, em busca de uma estratégia mais centrista, pensando em recuperar os votos do sul da Inglaterra, fundamentais para o trabalhismo, agora que perderam a Escócia para os nacionalistas. No caso dos liberal-democratas, haverá uma tentativa de retomar a identidade opositora, para evitar a extinção de um partido cujas raízes vêm do século 17.


Outro perdedor é a BBC. A direita mais raivosa nunca tolerou do governo de David Cameron a ideia de uma corporação pública de rádio e televisão financiada por um imposto aos televisores (que todos os que têm um aparelho em casa devem pagar). A Carta Orgânica que regula a BBC deverá ser renovada em dezembro de 2016. Nesta segunda, Cameron nomeou o ultradireitista John Whittingdale como ministro da Cultura, cargo que o torna responsável pelo canal. Whittingdale é opositor ferrenho dos direitos dos gays, além de ser um lutador pela eliminação do imposto.


Mas os grandes derrotados estão além da BBC e dos partidos. Em seu discurso da sexta passada, David Cameron disse que uma maioria parlamentária absoluta garantia ao governo a possibilidade de cumprir suas promessas de campanha. Uma delas é o corte de 12 bilhões de libras dos programas sociais do Reino Unido

 

Esta promessa só poderia ser realizada com drásticos cortes orçamentários a dois setores sociais que, juntos, recebem cerca de 38 bilhões de libras anuais: os desempregados e mais pobres e trabalhadores que recebem salários baixos e necessitam benefícios sociais complementares. John Hills, especialista do Centro para Análise da Exclusão Social da Escola de Economia de Londres, calcula que, cortando um terço dos beneficiados desses programas, o resultado poderia chegar ao prometido em campanha.

 

“Mas isso significa cortar a ajuda de mães ou pais solteiros ou viúvos, ou aos deficientes físicos, gerando um forte impacto nos bancos de alimentos para os mais necessitados e uma deterioração social difícil de imaginar. Se não, o governo poderia diminuir as ajudas recebidas por quem tem trabalho, mas necessita desse dinheiro governamental para pagar o aluguel ou completar sua renda mensal. Isso seria muito cruel, já que muitos deles acabam de votar por este governo”, disse Hills ao jornal The Guardian.

 

 

Marcelo Justo é jornalista.

Retirado de Carta Maior.

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