Correio da Cidadania

Argentina: turbulências e mentiras

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A Frente para a Vitória liderada por Cristina Kirchner teria sofrido a maior derrota de sua história nas eleições primárias destinadas a escolher os candidatos que no próximo 27 de outubro disputarão os cargos de deputados e senadores, no processo de substituição parcial de ambas as casas do Parlamento argentino. O kirchnerismo e seu projeto nacional teria entrado em colapso e um novo período histórico estaria começando na Argentina.

 

 

Inimigos midiáticos acérrimos – políticos do oficialismo, e não poucos superficiais e apressados analistas - se lançaram a celebrar com enorme alegria e estrondo o que seria o final do pesadelo de dez anos. A ofensiva espetacular de mentiras, distorções e omissões que vive o país, na verdade uma resposta habitual às políticas do partido no poder, conseguiu contaminar a opinião pública com um clima de derrota do governo de Cristina. Desejos adiados e ódios amargos encarnam em uma produção discursiva que consegue confundir algumas pessoas.

 

Novo Estudo

 

Enquanto isso, hoje, domingo 18 de agosto, será exibida na Página 12 um artigo do grande jornalista Horacio Verbitsky, que, com base em um estudo realizado na Universidade di Tella, sobre os resultados eleitorais, chega a conclusões muito diferentes daquelas que a grande imprensa monopolista, que em grande parte controla os seus comentaristas de televisão e jornalistas assalariados, pretende impor. Considere o seguinte:

 

 

- O partido no poder Frente para a Vitória ganhou mais de 31% dos votos, porcentagem maior do que a obtida nas eleições de 2009, confirmando sua condição de força majoritária e única implantada em todas as jurisdições do país;


- Em segundo lugar, com 25,9%, aparece um conjunto de partidos distribuídos em várias áreas das províncias que compõem o peronismo não kirchnerista,  cujo candidato, na província de Córdoba, perdeu quase metade dos votos obtidos pelo atual governador, pertencente a esta corrente;


-Em terceiro lugar, com 25% do total, um pouco abaixo desses partidos anteriores, aparece  a velha União Cívica Radical e Aliados;


- Em quarto lugar, e com apenas 7, 7%, aparece o direitíssimo PRO e seus aliados, de quem não se ouvirá que perderam um número significativo de votos em seu maior reduto, a cidade de Buenos Aires.


Precipitados analistas da suposta débâcle oficialista alegaram falsas explicações, como a que afirma, contra todas as evidências, que o governo tenha esgotado suas possibilidades de responder às exigências econômicas da população, omitindo-se de um conjunto de fatos que menciono abaixo. Terei que abusar de alguns números, o que, ainda que  não seja dos mais agradáveis, manifesta algumas nada  insignificantes verdades da realidade.

 

Atividade Econômica e Social

 

- A atividade econômica avançou 6,4% em junho em relação ao mesmo mês do ano passado; nos primeiros seis meses de 2013, o aumento foi de 5,1% relativamente aos primeiro semestre de 2012;

 

- Entre janeiro e junho do ano corrente, o governo “esgotado” investiu 6,5 bilhões de pesos para a construção de casas através do Pro.Cre.Ar.: contribuição à expressiva recuperação da construção, evidenciada em uma elevação de 78% no despacho de cimento;

 

- Aumento de 1,807 bilhão de pesos no programa Atribuição Universal por Filho e vários abonos de família, o que, somado à alocação para gravidez, ao Plano de Trabalho argentino e às pensões não contributivas, atingirá 45,13 bilhões de pesos, 31% a mais que em 2012;

 

- Aumento de transferências e recursos a províncias e municípios em 3,18 bilhões de pesos, duplicando de fato o orçamento do Plano Federal de Habitação;

 

- Incorporação à capacidade aquisitiva da população da soma de 30,9 bilhões de pesos, através da política de aposentadoria;

 

- Aumento de  27,2% nas vendas dos supermercados em relação ao mesmo período do ano passado.

 

- Inicialmente estimado pela câmara empresarial em cerca 5%, o crescimento da construção civil em 2013 está sendo reavaliado para cerca de 6,5%, impulsionado pela construção civil e uma forte inversão em  obras viárias, com aumento estimado em 4,9%, comparado com números de um ano atrás.

 

Maior Produção

 

Um dado não menor é a produção agrícola recorde de 105 milhões de toneladas, o que vai acarretar um aumento de 20% na exportação de matérias primas com relação ao ano anterior, ao lado de um notável pico na exportação de veículos automotores ao Brasil: 879 milhões em junho.

 

E para não abusar da paciência do leitor, uma última informação: o governo está concedendo a um consórcio encabeçado por uma empresa chinesa a construção dos complexos hidrelétricos na província de Santa Cruz, com financiamento parcial do Banco de Desenvolvimento da China.

 

Conclusão: o governo de Cristina Kirchner continua operando com o máximo vigor suas políticas de estímulo ao mercado interno, que tem sua contraparte no maior poder aquisitivo da população, o que se evidenciou,  nestes dias de feriado prolongado, na enorme massa de pessoas que saiu para desfrutar de rápidas férias de inverno. A débâcle, colapso e encerramento do projeto kirchnerista estaria conhecendo sua manifestação mais eloquente só nas mentes mais doentias, que transformam seus desejos e ódios em supostas verdades.

 

Ofensiva Midiática

 

É óbvio que não cabe menosprezar o efeito de uma ofensiva midiática – política difamatória e mentirosa (a mais formidável e prolongada de que se recorda a história do país), que conseguiu confundir milhões de pessoas honestas (sobretudo as camadas médias), cujos conhecimentos da realidade se nutrem do veneno cotidiano que derramam os grandes diários e a maioria esmagadora de canais de TV, sem esquecer a contribuição feita por boa parte das emissoras de rádio.

 

É bom lembrar que até mesmo os mais abomináveis sistemas de dominação sempre conseguiram seus propósitos colonizando as subjetividades coletivas, até conseguirem que, com seu comportamento cotidiano, os dominados se convertam nos principais instrumentos da dominação a que estão submetidos. Um recurso de primeira ordem de todo sistema de dominação é o manejo da memória coletiva, tema que exige algo mais que um artigo para ser desenvolvido. Tantos milhões de argentinos parecem ter se esquecido de que, em 2001/2002, o país estava à beira da fragmentação, e sua retirada do buraco negro é um crédito que deve ser atribuído à extraordinária coragem e lucidez política de Nestor Kirchner e sua viúva, a atual presidente.

 

Em uma breve nota, não se pretende detalhar explicações que são multifatoriais. Mas não se pode omitir que a forte presença demográfica das classes médias, salvas da miséria em que caíram em 2001 pelas políticas que se vêm instrumentando desde 2003, representa um universo de prejuízos antipopulares conjugados com egoísmos (alguém falou de individualismo possessivo), que sobrepõe o interesse pessoal ao interesse geral. Que o governo tenha rompido com a nefasta prática de transformar os pesos ganhos no país em dólares, para enviar aos paraísos fiscais, granjeou-lhe ódios ferozes. Entre os que manifestam sua oposição radical ao kirchnerismo, muitos não sentem o menor compromisso com os destinos coletivos, favorecendo cegamente a si próprios. Mas aqui devo repetir que a questão vai além dos limites deste artigo.

 

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A débâcle eleitoral do kirchnerismo: abre-se uma transição plena de incertezas

 

León Pomer, historiador argentino, reside em Buenos Aires.

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