Correio da Cidadania

O futuro do México em jogo

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A história do México é uma história de resistência. Resistência dos povos originários à conquista e à empresa colonial espanhola, resistência da colônia ao controle metropolitano, resistência à invasão liderada pelos Estados Unidos, resistência à ocupação francesa. A revolução que teve início em 1910 contra o governo de Porfírio Diaz e que, a ferro e fogo, introduziu o México em sua modernidade, é a máxima expressão da rebeldia que marca o povo mexicano. Entretanto, as últimas décadas têm sido de fortalecimento do conservadorismo, de apatia e de desinteresse pela política. Nem mesmo a fraude nas eleições de 2006, que levaram o conservador Felipe Calderón à presidência da República, foram suficientes para fazer despertar a rebeldia do povo mexicano. Teria o México esquecido de seu passado?

 

Não é o que parece. As marcas da história seguem presentes na política mexicana. A própria existência do rebelde Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), bem como a força do Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país por mais de setenta anos, atestam isso. O México é, na verdade, um vulcão adormecido onde o antigo e o moderno, o clássico e o contemporâneo, o novo e o velho, convivem, muitas vezes sufocando tensões subterrâneas. E isso talvez seja o que mais chama atenção na campanha eleitoral que se encerra no próximo domingo.

 

Na disputa à presidência da República há três candidaturas principais. Josefina Vázquez Mota, do governista Partido da Ação Nacional (PAN), é ex-ministra da Educação e tem o apoio do atual presidente, Felipe Calderón. Como candidata da situação, Josefina representa a continuidade dos doze anos de domínio político de uma direita ultra-liberal, completamente subordinada aos ditames do capital financeiro e das grandes corporações. Com o aprofundamento do modelo econômico de dependência dos EUA e o agravamento da crise econômica mundial, o governo de Calderón deixará como legado a seu sucessor um país em profunda crise. O aumento exponencial da violência, relacionada principalmente ao tráfico de drogas, é a face mais tenebrosa desta realidade, mas não a única. Embora a taxa de desemprego divulgada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) esteja entre as mais baixas dos países membros da organização (5,33% da população economicamente ativa), o verdadeiro problema do emprego no México está no crescimento do subemprego e da informalidade: o emprego informal representa 29,14% da população ocupada em fevereiro deste ano. São mais de 45 milhões de mexicanos em situação de completa vulnerabilidade econômica. Além disso, as dezenas de greves que tomaram ruas e praças em todo o país (com destaque para a greve dos professores) são um sinal do aumento das tensões sociais aprofundadas pelos efeitos da crise econômica.

 

Em oposição à candidata do PAN, estão dois fortes postulantes. De um lado, o PRI, reivindicando a história e o legado da Revolução Mexicana e apoiado pelo Partido Verde, apresenta como seu candidato o advogado Enrique Peña Nieto, ex-governador do Estado do México. De outro, a coalizão de centro-esquerda encabeçada pelo Partido da Revolução Democrática (PRD), e que conta ainda com o Partido do Trabalho (PT) e o Movimento Cidadão, tem à frente novamente Andrés Manuel López Obrador como candidato. Com a candidatura de Josefina Vázquez Mota em franco declínio, podemos afirmar com segurança que um deles será o futuro presidente do México nos próximos seis anos.

 

Peña Nieto, um jovem político forjado pela liderança do PRI nos últimos anos, é um daqueles típicos produtos do marketing eleitoral. Vestindo sempre um impecável terno italiano, com seu topete de cantor romântico e uma retórica ao mesmo tempo populista e conservadora, Peña Nieto representa uma saída sem traumas ao desgastado projeto do PAN. Contando em seu currículo com o massacre na comunidade indígena de Atenco, em 2006, que deixou dezenas de mortos e feridos, além de incontáveis denúncias de desaparecimentos e abusos sexuais, o candidato do PRI tem sido alvo de uma onda de protestos que ganhou força a partir do movimento estudantil. Em um debate realizado numa tradicional universidade da capital mexicana, os estudantes presentes hostilizaram Peña Nieto, gritando palavras de ordem como Atenco no se olvida (Atenco não se esquece) e outras referências ao massacre de 2006. Impedido de falar, o candidato do PRI afirmou à imprensa que os manifestantes eram, na verdade, militantes da candidatura de Lopez Obrador infiltrados no debate. Em resposta, cento e trinta e um estudantes da universidade produziram um vídeo onde se identificam através de suas carteiras estudantis, jogando por terra os argumentos de Peña Nieto. Em solidariedade, milhares de jovens organizaram, através de assembleias, atos públicos e das redes sociais, o movimento #YoSoy 132 (Eu sou o 132º). O movimento, que começou como um protesto à atitude do candidato do PRI e à manipulação das informações por parte dos grandes meios de comunicação, transformou-se rapidamente num massivo levante contra o voto em Peña Nieto. Embora não tenha definido apoio à candidatura de López Obrador, o movimento assumiu nas últimas semanas uma postura de rechaço a qualquer voto nos candidatos da direita.

 

Paralelamente ao crescimento das ações estudantis, dois fenômenos chamam a atenção. Um é o relativo silêncio do Exército Zapatista de Libertação Nacional. Outro é um lento processo de reorganização política da esquerda revolucionária através da criação da Organização Política dos Trabalhadores e do Povo (OPT).

 

Em 2006, os zapatistas protagonizaram a chamada La Otra Campaña (A Outra Campanha), rechaçando qualquer voto nos candidatos existentes e defendendo, na prática, a abstenção eleitoral. Naquela ocasião, chegaram a afirmar que Lopez Obrador era um “espelho” do ex-presidente Carlos Salinas de Gortari, que governou o México quando do primeiro levante zapatista. Nestas eleições, porém, o EZLN parece alheio ao processo. O silêncio pode ter três explicações: a) a liderança zapatista quer evitar o desgaste com as organizações de esquerda que na sua imensa maioria apoiam Obrador; b) os zapatistas estão debilitados e não conseguiriam produzir uma ação das dimensões da Outra Campanha; c) ou ainda, estão simplesmente ignorando o processo eleitoral. Porém, há quem não descarte a possibilidade de um novo levante armado, o que não acontece desde 1994.

 

Ao mesmo tempo, tem ocorrido outro importante fenômeno: o processo de reorganização da esquerda socialista e combativa num instrumento unitário de ação política. Dispersa entre pequenos partidos e organizações – na sua maioria sem registro legal, logo, sem condições de atuar no cenário eleitoral – ou no interior dos partidos legais – como é o caso dos remanescentes do Partido Comunista, muitos deles atuando dentro do PRD –, boa parte da esquerda socialista está hoje agrupada na OPT. O objetivo é formular uma plataforma para a soberania popular e a independência política do México e uma estratégia de fortalecimento das forças políticas anticapitalistas. Ao contrário dos zapatistas, porém, a OPT assumiu lado claro na disputa presidencial: apoia López Obrador contra a continuidade das políticas neoliberais do PRI e do PAN.

 

Este apoio, porém, não é outorgado sem críticas. Na verdade, as opiniões sobre como seria um governo sob a liderança de Obrador são muitas. Há quem acredite que, uma vez no poder, ele atuaria rapidamente para acomodar os interesses da burguesia e assim evitar confrontos que possam impedir sua governabilidade. Em outras palavras, uma saída “à la Lula”. Há, porém, aqueles que vêm o programa de Obrador muito mais à esquerda que o do ex-presidente brasileiro. No que trata do controle público sobre os recursos naturais, notadamente o petróleo, Obrador realmente tem uma plataforma muito mais radical, prevendo reestatizações e revisão de contratos. Além disso, há quem avalie que, com a crescente radicalização do movimento social mexicano, um governo de conciliação teria limites tais que não restaria outro caminho senão avançar em reformas mais profundas e em enfrentamentos com alguns setores da burguesia. Seja como for, Obrador encarnou a última voz de resistência ao grande consenso neoliberal que segue dominando o México, razão pela qual, para a maioria das forças populares, não houve alternativa senão apoiá-lo.

 

Mas para aqueles que tomaram a decisão de somar-se à defesa de Obrador, o apoio à sua candidatura não é suficiente. Antes, há uma batalha muito mais complexa e difícil: a luta para evitar uma fraude como a ocorrida em 2006, quando os resultados foram manipulados para assegurar a vitória de Felipe Calderón com uma vantagem de 0,56%. Ainda que as pesquisas no México sejam muito menos confiáveis que no Brasil, os dados demonstram a evolução das candidaturas. No começo da campanha eleitoral, Enrique Peña Nieto tinha uma vantagem de mais de 20 pontos percentuais sobre a então segunda colocada, Josefina Vázquez Mota. Três meses depois, porém, Obrador não apenas ultrapassou a candidata do PAN nas pesquisas como se aproxima de Peña Nieto. Há institutos que já anunciam um empate entre os dois candidatos. Viajando pelo interior do México – já que a capital é um tradicional reduto da esquerda mexicana –, é possível atestar um apoio inédito a Obrador. Conversando com taxistas, comerciantes, estudantes, todos afirmam que a única mudança possível é aquela liderada pelo candidato do PRD. Levando em conta a recente história mexicana, não se deve descartar a possibilidade de outra fraude. Os compromissos assinados pelos candidatos em defesa da transparência do processo eleitoral não são uma garantia de que não ocorrerão novas irregularidades. Por isso, todo cuidado será necessário para assegurar que a vontade do povo mexicano seja respeitada.

 

De qualquer forma, o processo eleitoral no México não termina no dia 1º de julho. Seus desdobramentos devem ir muito além da eleição em si. No caso de uma vitória sem fraudes de Peña Nieto, caberá aos setores progressistas fortalecer a unidade contra as políticas conservadoras do novo governo. No caso de uma nova fraude, dificilmente as forças populares aceitarão o resultado oficial, tornando os desdobramentos imprevisíveis. Provavelmente, Obrador teria espaço para, passada a comoção inicial, aceitar passivamente o resultado de uma fraude como fez em 2006. No caso de uma vitória do candidato do PRD – cenário menos provável, haja vista a conhecida disposição das elites mexicanas em impedir a qualquer custo a vitória de um progressista –, será preciso impedir, através da mobilização popular independente, que seu governo se enrede em compromissos irreversíveis. Ademais, os recentes golpes em Honduras e Paraguai demonstram que, mesmo diante de governos moderados, a burguesia não hesita quando o assunto é preservar seus interesses. Por isso, neste domingo está em jogo não só o futuro do México, mas dos rumos da luta anti-imperialista em nosso continente.

 

Juliano Medeiros é membro da Direção Nacional do PSOL e da Fundação Lauro Campos. Editor do site internacionalista Unamérica, esteve recentemente no México acompanhando a campanha presidencial.

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