Correio da Cidadania

Os zapatistas e os partidos políticos: o princípio da escuta

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As últimas eleições legislativas, como inclusive já foi descrito em recente artigo no Correio da Cidadania (1), apontaram para o perigo de o Partido Revolucionário Institucional (PRI) retornar ao poder no próximo pleito presidencial. Esse temor poderá incendiar o debate no México entre forças de esquerda sobre a questão sempre complexa da necessidade de se conquistar o poder ou não para se mudar o mundo. De um lado, temos os zapatistas que, desde a sua fulminante aparição no início de 1994, vêm apostando e praticando o lema "mudar o mundo sem tomar o poder". Do outro lado dessa instigante equação, encontramos algumas guerrilhas de esquerda ainda defendendo a tomada de poder via revolução.

 

No entanto, a polêmica acentuada, com essa recente vitória do PRI, vai em direção aos possíveis limites e perspectivas da democracia representativa naquele país. A postura dos zapatistas, diz a esquerda mais ortodoxa, tende a afastar os possíveis eleitores do Partido Revolucionário Democrático (PRD) das urnas, o que abriria espaço para o PRI vencer as eleições e retornar ao poder.

 

Para os zapatistas, no entanto, as forças políticas do México encontram-se hoje no mesmo nível de equivalência. De uns tempos para cá, vem dizendo constantemente o subcomandante Marcos, não há diferencial algum entre partidos cujos espectros ideológicos se encontram, pelo menos no discurso, em posições opostas, como acontece justamente com o PRI e o PRD.

 

Em diversos comunicados, o subcomandante tem reiterado que os partidos políticos estão no mesmo patamar de degeneração e de corrupção, não importando quem esteja no poder. Segundo ele, as ações impostas contra movimentos sociais de resistência por ambos os partidos, quando estão no poder, estão se dando igualmente pela repressão e o não-diálogo.

 

Caminhando então para essa perspectiva, a vitória do PRI perde a sua importância quando se trata de uma representatividade real, ou seja, mesmo que o PRD alcançasse o poder, o povo não estaria sendo verdadeiramente representado. A proposta zapatista, nesse contexto, está inscrita na atual crítica ao modelo liberal de representatividade política.

 

De acordo com os zapatistas, existem hoje dois projetos para o México. Um deles é o do poder, que limita a participação política ao voto. O segundo projeto, enquanto isso, é o do movimento, ou melhor, o da ação política e da organização da chamada sociedade civil, incluindo aí uma nova concepção sobre o que é ser igual e diferente no mundo atual.

 

Para pensadores mexicanos, como Luis Villoro e Luis Hernández Navarro (2), partidos historicamente de esquerda, como o PRD e o Partido do Trabalho (PT), estão atuando da mesma forma que as agremiações de direita. Estamos, segundo Villoro, vivendo o que ele chamou de "partidocracia (3)", caracterizada por uma espécie de privatização dos partidos políticos, que se perpetuam no poder em um mar de lama burocrático e corrupto. A manutenção do poder, nesse contexto, é o que importa, desconsiderando-se a existência do eleitor e de suas reivindicações.

 

A política estatal, diante disso, é desatrelada da sociedade civil passando a ter vida própria e independente, a não ser em períodos eleitorais, quando se produz uma série de retóricas para capturar o eleitor tendo em vista a perpetuação do poder. Aquele que vai às urnas de tempos em tempos, por sua vez, é muitas vezes levado a pensar que está fazendo parte de uma suposta festa cívica e democrática.

 

Logo após o ato do voto, o eleitor tende a retomar a sua rotina diária e cai no imobilismo político e na frustração de que seu voto só valeu para colocar alguém no pedestal do poder, aquele que supostamente falou em seu nome e depois quebrou qualquer possibilidade real de vínculo, ignorando o próprio ato de votar do seu fictício representado.

 

Ora, se o eleitor deposita todas as suas esperanças naquele que está sendo votado, o seu poder de transformação vai ser transferido para alguém que ele mesmo considera intocável. Quando a mudança esperada não vem e as expectativas são quebradas, os eleitores, envolvidos em uma insustentável desilusão, tendem ao conformismo e à aceitação passiva do cinismo da política. É nesse momento que o "político profissional" entra no vácuo dessa que já foi chamada de "síndrome de carência e captura" e, através do marketing eleitoral, produz novos desejos e sonhos de uma vida melhor sempre para o futuro próximo, ou seja, após as eleições seguintes.

 

É nesse contexto que podemos inserir o que os zapatistas chamaram de "Outra Campanha". Desarmado, o subcomandante Marcos partiu de Chiapas e foi enviado para uma longa caminhada pelo México. Metaforicamente, ele começou esse percurso com uma moto, talvez fazendo uma alusão à célebre viagem daquele que se tornaria Che Guevara.

 

No entanto, o objetivo da chamada "Comissão Sexta" (4) não foi o de assumir o papel de vanguarda política e muito menos de procurar conscientizar os oprimidos de seu papel histórico de promover a revolução. No primeiro dia de janeiro de 2006, a caravana zapatista embarcou por uma trilha, para muitos inédita, tendo como meta o princípio da escuta, ou seja, ouvir os anseios do outro.

 

Não para dizer "vote em tal partido político" ou "ouça a voz dos que têm a legítima consciência de suas necessidades". Os zapatistas não pretenderam falar em nome dos necessitados e prometer que no futuro eles serão felizes, mas apenas com uma condição: o de seguir uma vanguarda dona do saber político, seja ela materializada pelo partido político ou por algum movimento organizado de esquerda.

 

O que os zapatistas desejavam, e continuam desejando, é a exaltação e a potencialização da diversidade cultural e humana. Não tencionavam que uma idéia, plataforma política ou proposta de sociedade se sobrepujasse a outras, estabelecendo-se aí o que Foucault denominou como luta de verdades contra verdades. E muitos menos que as diferenças se isolassem em guetos.

 

O recado zapatista foi: organizem-se de uma forma autônoma e lutem por democracia, justiça, liberdade e dignidade. Não esperem a redenção por intermédio de algum salvador da Pátria qualquer, em uma postura passiva de resignação e de vitimização. Trata-se aqui de positivar as diferenças no que podemos considerar como uma nova cultura política, mais transversal e menos vertical.

 

Como têm dito insistentemente os zapatistas, não importa quem esteja no poder. Não se trata também de pensar que um suposto voto consciente venha redimir a já falida democracia representativa, além de imaginar que uma simples mudança revolucionária no tabuleiro do xadrez traga a redenção na terra. O fundamental é que a sociedade civil esteja sempre alerta e resistente. A transformação social, não se cansam de enfatizar os zapatistas, só virá com a organização autônoma dos "de baixo" e não com "os de cima", os que se proclamam detentores de uma verdade dogmática inquestionável e irredutível, apontando para uma inexorável luz, muitas vezes profética, no final do túnel.

 

1 - Ver "A conservação do imobilismo: as eleições democráticas no México 2009" (1 e 2), escrito por Eduardo Silveira Netto Nunes.

 

2 - Ver "Si no es ahora, ¿cuándo?, xojobil.blogspot.com .

 

3 - Ver "Decir no", Xojobil.blogspot.com .

 

4 - Uma alusão à Sexta Declaração da Selva Lacandona. A "Comissão Sexta", por sua vez, foi formada por uma equipe de comandantes e comandantas que agiram alternadamente na coordenação e seguimento da "Outra Campanha". O subcomandante Marcos, com o nome de Delegado Zero, fez parte dessa comissão.

 

Guga Dorea é jornalista e cientista político, atualmente integrante do Instituto Futuro Educação e pesquisador colaborador do Projeto Xojobil.

 

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