Correio da Cidadania

Argentina, entre indefinições e desafio

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Alberto Fernández inaugurated as president of Argentina | WLUK


O debate político argentino ganhou novos matizes nas últimas semanas com a desistência do ex-presidente Maurício Macri (2015-2019) e do atual presidente, Alberto Fernandez, de se apresentarem como candidatos. Macri abriu mão de sua candidatura diante de elevados índices de rejeição e com o passivo de um governo neoliberal que fracassou não somente na área social, mas na gestão econômica, que se costuma caracterizar como ponto forte do liberalismo. Fernández, candidato escolhido ad hoc pela ex-presidente Cristina Fernández de Kirchner (CFK) em 2019, em razão do descontrole inflacionário, dos impasses nas negociações com FMI, das críticas dos mais diversos setores oposicionistas e do isolamento político promovido pelo kirchnerismo “cristinista”. A desistência do último e do atual presidente representa mais que o fracasso de dois mandatos: sinaliza para o esgotamento de um certo consenso na opinião pública e de uma estratégia de inserção internacional que foi bem-sucedida após outra grave crise, a de 1999-2001.

O colapso econômico de 2001 e a crise política que levou à presidência Eduardo Duhalde e que teve como desdobramento a vitória eleitoral de Néstor Kirchner (2003-2007) foram contornados por uma nova política econômica. Política que gerenciou o fim da paridade do peso com o dólar, uma negociação consistente com o FMI e foi beneficiada pelo boom das commodities dos anos 2000. A presença de Roberto Lavagna no ministério da Economia, entre abril de 2002 e janeiro de 2005, deu ao país a confiança necessária para estabilização e para a geração de um certo consenso na sociedade argentina, ainda que temporário. Sua saída do cargo coincidiu com a mudança das condições econômicas do país e com a crescente ideologização dos problemas do país, parte da polarização que marcou a Argentina no período recente.

A política externa argentina acompanhou essa inflexão, por meio de diretrizes e ações como o estreitamento (recalcitrante) dos laços com o Brasil, a aproximação com Venezuela e Bolívia, então sob os governos de Hugo Chávez e Evo Morales, as críticas às políticas do FMI e à política externa dos Estados Unidos, como as que motivaram a realização, em Buenos Aires, da “anticúpula” das Américas, concomitantemente com a Cúpula da Américas realizada em Mar del Plata (2005). A ideologização da política externa argentina concorreria para o aprofundamento da polarização – la grieta, como lá a chamam – e para a diminuição dos espaços do debate, do embate político, da construção de consensos. Papel semelhante ao que foi desempenhado por setores à direita, em especial o macrismo, em sua apologia ao neoliberalismo.

A indefinição política pela qual passa a Argentina no atual momento sinaliza para um quadro menos incerto com as desistências de Macri e Fernández. Na ausência de um “partido militar” para animar a candidatura de Javier Milei, que procura emular algumas lideranças da extrema direita de países da região, a resiliência da polarização kirchnerismo-macrismo se fará presente, em favor de CFK e seus círculos mais próximos. A dificuldade da frente Juntos por el Cambio, macrista, de se definir entre Patricia Bullrich e Horacio Larreta, entre outros postulantes, impede um consenso político alternativo que, além de problemas internos, ainda terá que lidar com a herança negativa do governo Macri.

No âmbito da política internacional, se o macrismo nunca ocultou seus laços com os Estados Unidos, com o “ocidente” econômico e político, e a adesão aos princípios neoliberais, o kirchnerismo terá que enfrentar o desafio da inflação, os condicionantes interpostos pelo FMI e o diálogo com o governo Biden, pouco sensível aos apelos portenhos. Eventual candidatura de Cristina Kirchner, Sergio Massa (ministro da Economia), Daniel Scioli (embaixador em Brasília) ou outra neste campo terá que conciliar o antiamericanismo das massas, as críticas acadêmicas ao imperialismo e a militância identitária com o diálogo com Washington e a busca acelerada por dólares, além de conter temporariamente a tentação da aproximação com Pequim.

Nada que doses equilibradas de pragmatismo e realismo mágico não possam equacionar.

Carlos Eduardo Vidigal é doutor em relações internacionais e professor de história da UnB. Autor de Relações Brasil-Argentina: a construção do entendimento (1958-1986).

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