Correio da Cidadania

"É fundamental que as esquerdas condenem o regime de Ortega como criminoso e antidemocrático"

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A Nicarágua voltou à pauta da imprensa internacional no último mês de fevereiro após seu presidente, o autocrata Daniel Ortega, ordenar a desnacionalização de 94 opositores que se encontravam exilados sob a acusação de “traição à pátria”. Após décadas nas quais foi aos poucos tomando o controle da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e das próprias instituições do país, Ortega mantém seu regime vivo graças à mão de ferro das forças de segurança e Forças Armadas nicaraguenses. Frequentemente é usado de maneira retórica pela mídia liberal brasileira a fim de atacar a esquerda, invocando uma suposta reverência do presidente Lula e do próprio PT ao ditador, além de apontar que as esquerdas e seus governos desembocariam, inequivocamente, em regimes de violência e repressão, como o que a Nicarágua vive atualmente.

No entanto, como veremos a seguir, esse discurso que o aproxima de outras esquerdas continentais é justamente um dos elementos que alimenta os delírios e a sede de poder de Ortega, famoso por fraudar sua imagem de anti-imperialista e anticapitalista enquanto atende aos interesses mais obscuros das elites locais e internacionais. Quem nos diz isso é Mónica Baltodano, comandante da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) responsável pela libertação de importantes cidades da Nicarágua entre 1978 e 1979, quando o famoso movimento guerrilheiro derrotou a sanguinária ditadura de Anastasio Somoza, que perdurava por mais de 40 anos.

“Acreditamos que o respaldo que Ortega ainda recebe, mesmo pelo silêncio, de esquerdas de outros países, segue sendo um ponto a seu favor. Ainda que não haja uma manifestação contundente dos partidos e dos governos de esquerda, ele sente que pode navegar fraudando o discurso de que é um paladino contra o imperialismo. É fundamental que as esquerdas internacionais condenem, de forma clara, o regime de Ortega como um regime criminoso e antidemocrático. Só colocando-o contra a parede é que o fará ceder e abrir espaço para uma transição. A história já nos mostrou isso. Foi assim que derrotamos Somoza. Em 1978 a Organização dos Estados Americanos rompeu com Somoza e o ditador passou a ser um pária. A vitória do sandinismo em 1979 nunca foi resultado das armas. Nunca tivemos a maioria das armas. Nossa vitória foi o resultado da somatória de apoio popular, da guerrilha e de um amplo isolamento internacional do regime”, avaliou.

Ao longo da entrevista, Mónica contou sua história, falou sobre os tempos da Revolução Sandinista e da queda de Somoza no final dos anos 70. Passou pelos anos 80, quando em plena Era Reagan, nos EUA, a Revolução teve de travar uma nova guerra contra os chamados Contras, financiados pela Casa Branca; e chega aos anos 90, quando a acaba a Revolução e a Nicarágua passam a conviver com uma série de governos neoliberais. É justamente nesse período que Daniel Ortega começa a articular seu projeto de poder até retornar à presidência em 2007. A partir daí, seu controle sobre tudo e todos na Nicarágua começa a escalar, e a preferência da repressão e da perseguição política recai justamente sobre os setores oriundos do sandinismo e dos movimentos sociais.

“Ortega faz um discurso mentiroso, como se fosse de esquerda. Aplica as políticas neoliberais mais brutais com um discurso supostamente anticapitalista e anti-imperialista. Ou seja, governa com o grande empresariado e entrega o país às mineradoras. Atualmente 40% das terras do país estão em concessão justamente para essas empresas. Mineradoras canadenses, dos EUA, da Europa e de outros lugares. Ele faz um governo que na prática é totalmente de direita, mais neoliberal do que seus antecessores dos anos 90, mas fraudando uma imagem de sandinista, de revolucionário e anti-imperialista. O regime mostra claros sinais de debilidade que podem ser vistos na escalada de repressão dos últimos anos. Ele sabe que está fraco e não tem respaldo da população. Por que proíbe que nos manifestemos? Porque sabe que somos a maioria. Por que não deixa que nos expressemos? Porque sabe que nosso ponto de vista tem impacto. O regime se sustenta somente pela repressão e pelo financiamento das burguesias interna e externa. Dessa maneira, as perspectivas de uma nova explosão estão sempre presentes”.

Leia a entrevista na íntegra a seguir


Mónica Baltodano e Walter Ferreti depois da libertação de Jinotepe, em julho de 1979. Arquivo pessoal/Mónica Baltodano

Mónica, você foi comandante da Frente Sandinista de Libertação Nacional na Nicarágua, um dos movimentos populares mais icônicos do século XX não apenas na América Latina, mas em todo o mundo. Quem é aquela jovem que vivia na Nicarágua de Somoza antes da Revolução e como a sua história se mistura com a da FSLN e a do próprio país?

Nasci em 1954 na cidade de León, em uma família de classe média que se opunha do regime de Somoza e frequentava uma escola de freiras. Resolvi me tornar uma ativista política, uma militante anti-Somoza, ainda aos 15 anos, quando era secundarista. Na época, me revoltei com o caso de Doris Tijerino que foi abusada sexualmente ao ser presa pelo regime. Não demorou muito até que eu me tornasse dirigente do movimento estudantil cristão na minha cidade. Em 1972, aos 18 anos e já na universidade, entrei para a Frente Sandinista de Libertação Nacional.

Em 1974 passei para a clandestinidade e fui nomeada a responsável pelas redes de apoio em Las Segovias, sobretudo nas regiões de Ocotal, Condega, Somoto, Estelí e Matagalpa. Nessa época, a FSLN já tinha sofrido algumas derrotas prévias do regime somozista e estava em um momento de fortalecer sua presença nos territórios. Sempre fui uma pessoa que valorizou muito a questão territorial, de estar ao lado do povo em sua casa, mais do que o tema das armas. Foi apaixonante, e perigoso, participar disso.

Em 1976, quando nasceu meu primeiro filho, tive de me separar dele logo aos 3 meses de idade. Era incompatível e perigoso conciliar o papel de mãe com a clandestinidade. Foi um dos momentos mais duros da minha vida. Só o reencontrei quando já tinha 3 anos, após derrotarmos a ditadura. Tenho outro filho e duas filhas.

Fui presa em 1977 e houve uma mobilização muito forte dos setores populares pelas libertações minha e de outros companheiros. Chegaram a me declarar inocente, mas não me soltaram. Me mantiveram presa ilegalmente por mais algum tempo, até que foi feita uma greve de fome e, nesse contexto, saí da prisão em 1978.

Entre 1978 e 1979 passei a ser a responsável político-militar de Manágua. Havia três tendências na FSLN, eu era de uma delas, a GPP (Guerra Popular Permanente). Quando se deu a Unidade, formamos um Estado-Maior das três tendências que dirigiu as operações insurrecionais de 1978 e de 1979, a ofensiva final que impôs a derrota política e militar de Somoza. Entre as estruturas que dirigiram a insurreição, eu conduzi a libertação de Jinotepe, uma cidade muito importante, e logo a libertação de Granada, que é a segunda cidade mais importante do país.

Na tomada de Granada, uma cena de machismo me surpreendeu. O então comandante da Guarda Nacional quando intimado por mim a se render, respondeu: ‘Não rendo para uma mulher’. Mas como sabemos ele teve que, sim, render-se. 

Das mulheres que haviam se destacado nessa campanha, três foram agraciadas com o título de Comandantes Guerrilheiras: Dora María Tellez, que acaba de deixar a prisão após ficar presa por quase dois anos por Daniel Ortega, outra companheira e eu. Além de nós, 28 homens se tornaram Comandantes Guerrilheiros.

Após o triunfo da insurreição que derrubou a ditadura de Somoza, fui vice-ministra da presidência, ministra de assuntos territoriais, e sempre estive muito vinculada ao tema territorial, ao poder local e no final das contas me tornei uma especialista em municipalismo. Estudei um mestrado em direito municipal. Sempre tive muito vínculo com a política territorial. Nos anos 80 essa foi a minha tarefa. Fui impulsionadora da descentralização do poder e da autonomia municipal que não existia durante o somozismo.


A comandante Dora Maria Tellez, durante a revolução sandinista. Créditros: Reprodução

Após a queda do somozismo, qual foi o principal papel do sandinismo na formação da sociedade nicaraguense?

O somozismo não era apenas uma ditadura brutal, que durou 40 anos basicamente com o apoio do Exército e da Guarda Nacional, como também proporcionou uma dependência absoluta do país em relação aos Estados Unidos. Todas essas teorias da dependência, dos anos 60 e 70, estavam claramente baseadas no que acontecia na Nicarágua. Nosso país era uma grande fazenda administrada por Somoza, que dependia totalmente dos interesses dos EUA. Esses, por sua vez, exploravam o país a partir dos setores madeireiro, bananeiro e da mineração, deixando a população em condição de pobreza absoluta.

A principal contribuição do sandinismo, na minha maneira de ver, foi ter recuperado o sentido de cidadania, que vinha nos nossos genes porque nossa principal referência de dignidade era Augusto Sandino. Ele enfrentou os Estados Unidos, em uma guerra desigual, com um pequeno exército que chegou a ser chamado de “o exército louco”. E toda a herança do anti-imperialismo de Sandino foi para a FSLN, que a transformou em um emblema revolucionário e marcou os anos 80.


O revolucionário nicaraguense do início do século XX, Augusto Sandino. Créditos: Reprodução

Mas por outro lado, encontramos o país com grandes diferenças sociais e econômicas. Um país que tinha 80% de analfabetismo no campo. Em média, contando as cidades, o analfabetismo chegava a 70%. Assim fizemos uma campanha de alfabetização que reduziu esses números para 12%.

Também fizemos importantes transformações na Saúde que permitiram que a Nicarágua reduzisse a taxa de mortalidade em quase metade em 10 anos. Tudo isso foi reconhecido por organismos das Nações Unidas.

Lamentavelmente, a Revolução coincidiu com a ascensão de Ronald Reagan nos EUA e a sua política de recuperação da hegemonia mundial. Ele determinou que deveria sufocar a Revolução da Nicarágua e isso nos submeteu a uma nova guerra. Foi uma guerra terrível, desgastante e mortífera. Passamos os dez anos seguintes em outra guerra.

Em 1985, Daniel Ortega chega ao poder, em meio a essa guerra e aos avanços que a Revolução proporcionou. Quem era Ortega naquele momento?

A definição da FSLN em tendências permitiu que uma delas resultasse hegemônica, e era a tendência onde estava Daniel Ortega. E ela foi hegemônica justamente porque conseguiu mais financiamento, mais acesso a armas, fuzis e isso favoreceu com que ele ficasse na junta de governo que fazia a transição. Paralelamente, seu irmão Humberto tornou-se o chefe do Exército.
Humberto e Daniel Ortega. Créditos: Reprodução

A figura de Daniel Ortega não era a mais conhecida, nem a mais carismática. De fato, era bastante desconhecido, porque ademais, depois que ele sai da prisão, não volta ao país e não dirige nenhuma das frentes territoriais na Nicarágua – e havia várias frentes como a Ocidental, Oriental, Norte. Ele não dirige nenhuma dessas frentes, permanece na Costa Rica e não é reconhecido pela população, pelos militantes. Não tinha qualquer presença.

Seu ingresso na junta de governo ocorre porque a maioria dos dirigentes históricos já havia morrido. A luta contra Somoza foi muito sangrenta e morreram os principais líderes da formação da FSLN. Depois, já estando na Junta, e formando parte da direção nacional da FSLN, é escolhido o candidato nas primeiras eleições livres, que ocorreram em novembro de 1984. Ele ganha e toma posse em janeiro de 1985.

Naquele momento estávamos muito influenciados por aquilo que chamo de uma “doença de esquerda”: o caudilhismo. E digo que é a doença da esquerda porque ainda que o tenhamos herdado da direita, a sobrevivência do caudilhismo tem sido possível sobretudo pelas repetidas formas equivocadas de escolher as lideranças na esquerda. Influenciados pelas imagens de Cuba, em que estavam Fidel e Raul Castro, aqui estavam Daniel e Humberto Ortega – um no governo e outro no Exército.


Enterro de um combatente na Escola Sagrada Família, em Manágua, 1979. Presentes Carlos Núñez, Oscar Lino Paz Cubas “Julio”, Rolando Orozco “El Manchado”, Mónica Baltodano “Isabel 104” e Oswaldo Lacayo. Créditos: CHM-EM

A partir de janeiro de 1985, esta figura já não era mais um membro da Junta de Governo, mas o presidente, e em um regime demasiadamente presidencialista, começa a perfilar-se como um caudilho. E outra vez, em 1990, volta a ser lançado como candidato utilizando uma campanha muito caudilhista. Como canção principal da campanha eleitoral, por exemplo, ele usou El Gallo Enavajado, ou seja, um galo com navalhas amarradas, utilizado em brigas de galo. Era uma música não apenas caudilhista, mas extremamente machista. E embalados por essa canção, fizeram uma campanha que já não girava ao redor do partido ou da Revolução, mas de Daniel Ortega.

Foi assim que ele enfrentou a figura de Dona Violeta Chamorro que, ao final, ganha as eleições. E a partir daí começa o que chamo de culto ao personalismo de Ortega, que vai se fortalecendo nos anos 90, quando a derrota eleitoral faz com que a maioria dos membros da condução colegiada [órgão interno da FSLN que garantia a participação política das bases] comece a ter um papel muito secundário na FSLN. Daniel, que além de ser candidato e secretário-geral – as figuras partidária e governante se fundiram –, passa a ter uma pensão equivalente ao salário de presidente, por meio de uma lei que foi feita rapidamente durante a Transição.

Ele então ganhava muito dinheiro nessa época e não precisava trabalhar. Ao contrário do que se espera, que a pessoa deixe a função pública e vá trabalhar ou tocar a vida de alguma forma, ele não fez isso. Mesmo quando foi deputado seguia com a pensão. Ganhava muito dinheiro. Isso o favoreceu na dedicação total ao labor político. Nesse momento desaparece a condução colegiada, que foi um dos nossos aportes dos anos 80. Ainda que houvesse uma figura presidencial, sempre funcionou uma direção coletiva dentro da FSLN. Mas a partir de então, isso foi sabotado.
Mónica e Hugo Torres em 1980. Arquivo Pessoal/Mónica Baltodano

Era plena Era Reagan nos EUA, e o sandinismo enfrentou uma verdadeira guerra de resistência à contrarrevolução. Vieram os anos 90 e o fim da Revolução. A Nicarágua saiu do radar global, assim como Ortega deixou o poder e a própria FSLN passou por essa crise que você descreve. Como esse processo, que começou nas batalhas contra os Contras e se estendeu pelos governos de Violeta Chamorro (1990-1997), Arnoldo Aleman (1997-2002) e Enrique Bolaños (2002-2007) desembocou no retorno de Ortega?

Primeiro ele se apodera da Frente Sandinista. Isso ocorre no segundo congresso da FSLN em 1998. Depois que é formado o Movimento Renovador Sandinista, em 1995, ele decide controlar o partido sob rédeas curtas. Para isso, começa a intervir em sindicatos, organizações camponesas e outras, utilizando seu controle da FSLN para oferecer cargos. Dessa maneira, passou a construir uma engrenagem de poder da qual tinha total capacidade de controle.

Esse movimento, em 1998, coincide com uma onda de denúncias de abusos nessas organizações, incluindo abuso sexual do próprio Ortega contra sua enteada Zoilamérica. Naquele momento Rosario Murillo, esposa de Daniel Ortega, volta à cena política após dar-lhe respaldo contrário à denúncia de sua própria filha. Rosario, que sempre esteve completamente fora da FSLN ao longo de sua vida, passa a ser como a sombra de Daniel Ortega.

Quem ofereceu alguma resistência foram as organizações populares, que naquele momento faziam duras lutas contra as políticas neoliberais. Então para poder controlar essas organizações, Ortega aparece como aquele que pode mobilizar e desmobilizar as massas sandinistas. Assim, em 1999 faz acordos com o presidente Arnoldo Alemán. O então presidente se dá conta de que para evitar greves, piquetes, trancamentos de vias e ocupações contra suas políticas, deveria fazer acordos com Daniel Ortega.


No aeroporto de Holguin, em Cuba, em 26 de julho de 1979. Estão na foto Álvaro Baltodano “Pablo”, e os comandantes da guerrilha Mauricio Valenzuela, Mónica Baltodano, Manuel Salvatierra e Marcos Somarriva. Foto publicada no Diario Barricada em setembro de 1979.

Nesse momento Alemán e Ortega produzem o que depois definimos como o Pacto das Máfias. Repartem todos os poderes do Estado, reformam a Constituição, repartem as instituições, e modificam as porcentagens para que seja possível ganhar as eleições. Assim já não era mais necessário ter mais de 50% dos votos nas eleições, mas apenas 35%.

Durante todo o governo de Arnoldo Alemán, que tinha sido até então o presidente mais corrupto da história da Nicarágua, foram feitos esses acordos. Também repartiram propriedades que a Revolução tinha confiscado, o que foi um grande escândalo. E assim foi sendo conformada uma espécie de burguesia sandinista. A partir daí os interesses capitalistas passam a ser também representados por Daniel Ortega, e as organizações populares acabam subordinadas a esses interesses porque muitos líderes foram corrompidos pelo acesso a essas propriedades e recursos. É algo muito parecido ao fenômeno do PRI (Partido da Revolução Institucional, mexicano), tendo muitos orteguistas ido ao México tomar lições sobre como roubar eleições e comprar os mais variados setores políticos do país.

Em 2006, quando chegam as eleições, Ortega é novamente candidato e a FSLN jamais apresentou outro nome. Naquele momento já tínhamos consolidado no país uma outra FSLN e outro Daniel Ortega, muito diferente da que tínhamos nas décadas anteriores. Ambos apresentavam outros interesses, diferentes dos primórdios, e inclusive com uma campanha não estava centrada nas reivindicações populares. Ortega já havia respaldado os tratados de livre comércio (NAFTA/ALCA) e derrubado o aborto legal após fazer aliança com o Cardeal Miguel Obando, um dos líderes da contrarrevolução nos anos 80. Ortega terminou de construir seu pacto com a grande burguesia da Nicarágua depois que entra no governo, a partir de 2007. Os próprios empresários chegaram a dizer que nunca lucraram tanto como no novo governo de Ortega.

Em 2018 a Nicarágua viveu uma situação de conflagração, caos e violência de Estado, retornando ao cenário mundial. A partir de abril, quando começaram massivos protestos contra a reforma da Previdência Social, foram contados mais de uma centena de mortos decorrente de uma repressão policial brutal a mando do governo. Na ocasião, tivemos inclusive a notícia de que bandos paramilitares perseguiam manifestantes nos bairros. À época, você declarou em uma entrevista que Ortega representava os interesses dos ricos e do grande capital. Que interesses estavam em jogo e como esse episódio ajudou a escalar o autoritarismo do regime que acompanhamos nos dias de hoje?

De imediato, quando ele chega ao governo em 2007, eu era deputada de oposição e confrontei todas essas decisões na Assembleia Nacional. Houve uma série de reformas legais que ele fez para subordinar diretamente a polícia e o Exército. O que havíamos conseguido antes, de que essas forças fossem mediadas por um ministro de governo ou da defesa, simplesmente foi jogado fora. E usando métodos mafiosos para aprovar essas reformas, passou a controlar todos os poderes.

No princípio, os acordos feitos durante o governo anterior previam a repartição de influência nas instituições entre o então presidente Alemán, e Ortega. Depois de reeleito, Ortega se movimentava para ter o total do controle. Mesmo magistrados que em teoria seriam liberais, que não dariam muita bola para Ortega, acabaram comprados das piores e mais mafiosas maneiras que se possa imaginar. Isso favorecia sua relação com a burguesia e o grande empresariado, que encontravam facilidades de todo tipo junto a Ortega, incluindo no Judiciário. A partir daí não havia uma causa julgada na Nicarágua que não passasse pelo crivo de Ortega ou de sua esposa Rosario Murillo, que nesse momento tinha um papel ainda mais importante.

Quando ele faz a reforma da previdência por decreto – e estamos falando de uma reforma que insulta a população porque toca em questões de aposentadoria e seguridade social – isso é a faísca que faz explodir um acumulado de incômodos. Se não houvesse esse acumulado, a revolta não teria acontecido. Ele então faz uma concessão superonerosa para a população, a fim de entregar a um empresário direitos sobre os lagos, as terras dos camponeses, o céu, o subsolo e para a suposta construção de um canal subterrâneo.

Só que pela primeira vez foi organizado um movimento camponês autônomo a ele. Digo isso porque todos os movimentos independentes que já haviam surgido acabaram cooptados e desmobilizados. Mas nessa ocasião isso não foi possível de se fazer com os camponeses. Fizeram mais de cem marchas, e já tinham feridos a balas logo na primeira.

Esse incômodo vinha de outros episódios, como quando ele postergou eleições dando indícios de que não as faria. Ou ainda as execuções extrajudiciais no campo. Já havia reprimido movimentos de mineiros, de mulheres camponesas e nas universidades os estudantes não aguentavam mais o controle exercido pelas organizações orteguistas. Também no âmbito acadêmico cometiam fraudes e perseguições. Ou seja, havia um acumulado de insatisfação em diversos setores que explodiu com a aprovação da reforma da previdência em 2018.

Publiquei um artigo na Revista Rosa Luxemburgo explicando todos esses movimentos e como essas práticas deixaram a Nicarágua à deriva do autoritarismo, como vai sendo construído esse regime autocrático. Quando ocorre essa sublevação de 2018 ele pensa que após assassinar um par de manifestantes as coisas se acalmariam. E esse foi o erro do seu cálculo.

Pensou que apagaria o fogo, mas os mortos jogaram mais gasolina. Foi uma coisa impressionante. Eram dois mortos no primeiro dia, no segundo 14, no terceiro 35 e assim foi escalando. Isso era insustentável para as pessoas não reagirem e é o que provoca as barricadas e a greve geral à qual o país esteve submetido em todo o mês de maio de 2018 e parte de junho. Em junho começam as operações de “limpeza”, onde foram empregados policiais, paramilitares e alguns setores do Exército, ainda que neguem. Eles não reconhecem, mas havia muitos franco-atiradores do Exército.

Chegando aos dias presentes, em 10 de fevereiro o regime expulsou mais de 200 presos políticos do país. Apenas 6 dias depois retirou a nacionalidade de 94 deles, com a senhora inclusa, declarando-os “traidores da pátria”. Muitos deles sandinistas. O que comenta sobre esse fato e o que diz da atualidade da Nicarágua?

A saída de muitos sandinistas da FSLN, que para nós acabou se tornando o orteguismo, começou em 1995 com o Movimento Renovador, mas seguiu em ondas sucessivas. A minha foi a onda de 98/99 quando como deputada da FSLN me opus aos pactos com Arnoldo Alemán. E muitos que estávamos contra esses pactos, incluindo parlamentares como eu, saíram da FSLN naquele momento. Depois veio a grande saída em 2005, quando supostamente as candidaturas se definiriam em eleições internas e ao final decidiram que não haveria eleições internas pois teria surgido um candidato que podia derrotar Ortega. Milhares de sandinistas saíram nesse momento e formaram, junto com os anteriores, um movimento que se chamava Resgate do Sandinismo. Com esse movimento tivemos 9% dos votos em 2006, quando Daniel Ortega ganhou a presidência com 38% dos votos, ou seja, com uma minoria.

Quando se dá a sublevação de 2018 há milhares de sandinistas que não estão de acordo com as mortes e a repressão, e participam das greves e barricadas. Mas também participam setores da direita, da antiga contrarrevolução, gente sem partido e rapazes dos bairros que não militavam em nenhuma força. Obviamente, e essa é a minha tese ainda que as pessoas da direita não gostem, quem melhor lutava era quem vinha do sandinismo. Os oriundos do sandinismo eram os que melhor levantavam as barricadas. Sempre fizemos isso.
Quando acabam as manifestações, em junho de 2018, e aí começa uma nova mortandade, começam a voltar as marchas. Nesse momento, Ortega decreta que qualquer marcha é ilegal. A partir de setembro começa a capturar pessoas até o ponto de termos 800 presos políticos. Mas pressionado pela comunidade internacional e as possíveis sanções, é conseguido um diálogo onde no fim das contas consegue-se a liberação de muitos desses presos políticos. Nesse momento houve uma espécie de relaxamento, pois pensávamos que após a pequena vitória e com as eleições de 2021 chegando, o assunto iria se dirimir eleitoralmente.

O Estado Maior do Frente Interno: Joaquín Cuadra, Douglas Duarte, William Ramírez, Carlos Núñez e Mónica Baltodano. Creditos: CHM-EM.

Assim passamos todo o ano 2020 com a pandemia, que gerou outros tipos de problemas. E quando chegamos a 2021, as eleições simplesmente não acontecem porque todos que se prestavam a ser candidatos foram capturados. Não havendo eleições e voltando a perseguição a opositores, toda a direção do Movimento Renovador Sandinista, mais alguns que tinham sido do Resgate Sandinista, juntamente com líderes de organizações não governamentais e de movimentos sociais praticamente entraram em uma etapa de elevadíssima repressão que provocou uma onda de exílios a partir 2021.

Nessa onda eu tive que sair do país, rumo à Costa Rica, com meu esposo e minha filha, e conosco saem milhares de nicaraguenses que fugiam dessa repressão. Nesse momento não se podia fazer absolutamente nada na Nicarágua, nem mesmo sair à rua com a bandeira azul e branca, que tornou-se um símbolo dessa resistência contra o orteguismo.

Assim chegamos em 2022 onde de surpresa Ortega aplica esta medida que poderia ser um sinal de que estaria disposto a flexibilizar a situação dos presos políticos, libertando 122 deles, mas antes mesmo de chegarem ao destino final, ou seja, suas casas, tiveram a nacionalidade quitada de forma absolutamente ilegal. No dia seguinte já estavam desnacionalizando outros 94, nos quais estou inclusa.

Estou na lista com o meu esposo Júlio López, que milita desde os anos 60 e foi chefe de relações internacionais da FSLN, e minha filha, que foi assessora do movimento camponês contra o canal subterrâneo. Além de nós há muitos militantes históricos da FSLN que agora perderam a nacionalidade. Dentre os 94, eu fiz uma pesquisa e descobri que há 60 com antecedentes no sandinismo.

E não apenas nos tiraram a nacionalidade, mas nos apagaram do registro civil e de seguridade social. Tiraram as aposentadorias dos mais velhos e os bens de todos, móveis e imóveis que ficaram na Nicarágua. Aos mais velhos, que perderam bens e aposentadorias, Ortega os deixou em condições de indigência. São medidas que segundo os especialistas em direitos humanos não foram aplicadas nem pelas piores ditaduras da América Latina. A de Somoza a aplicou em dois ou três casos, mas não da forma generalizada como se vê na atualidade. Onde se viu isso foi na Alemanha nazista, que além de desnacionalizar e matar os judeus e os comunistas, também retirou seus bens pessoais.

Há futuro para a Nicarágua? Qual é o papel da esquerda em geral e dos movimentos de retomada e resgate sandinismo em particular?

Ortega faz um discurso mentiroso, como se fosse de esquerda. Aplica as políticas neoliberais mais brutais com um discurso supostamente anticapitalista e anti-imperialista. Governa com o grande empresariado e entrega o país às mineradoras. Atualmente 40% das terras do país estão em concessão justamente para essas empresas. Mineradoras canadenses, dos EUA, da Europa e de outros lugares. Quero dizer que ele faz um governo que na prática é totalmente de direita, mais neoliberal do que seus antecessores dos anos 90, fraudando uma imagem de sandinista, de revolucionário e anti-imperialista.

Como consequência disso, todos os setores que lutam e, em particular a juventude, acreditam estar enfrentando um governo de esquerda. Dessa maneira a construção de projetos políticos de esquerda resulta sumamente difícil no momento. Assim como a palavra “sandinista” e a bandeira rubro-negra, também a palavra “esquerda” está desprestigiada.

Do ponto de vista do movimento de oposição e anti-Ortega, estamos muito fragmentados porque os setores de direita resistem a fazer acordos antiditatoriais com os setores que vêm do sandinismo. Há muita resistência nesse sentido, mas também há interesses e diferenças de projeto, em especial sobre os debates que serão feitos após o fim da ditadura. Por exemplo, os setores mais à direita não querem debater o feminismo ou o ambientalismo com os setores provenientes dos movimentos sociais. São assuntos que eles não aceitam que sejam postos em discussão e assim travam a frente antiditadura. Precisamos achar um equilíbrio que possa trazê-los para o nosso lado e ao mesmo tempo abrir espaço para que possam debater esses assuntos, como se espera de uma democracia.


Mónica Baltodano e o presidente Lula nos anos 80

Por outro lado, os interesses materiais concretos do grande capital transnacional seguem oxigenando a ditadura. O Fundo Monetário Internacional dá as melhores notas para o regime. Não o interessa a democracia ou os direitos humanos. O que interessa é a macroeconomia e aí está ‘perfeito’, tudo ótimo. O Banco Centro-americano de Integração Econômica é o principal financiador do regime e os ricos seguem muito ricos.

Mas apesar de tudo, o regime mostra claros sinais de debilidade que podem ser vistos nessa escalada de repressão. Primeiro porque, se estivesse forte, por que não fazer eleições? O que esperamos em 2021 e em 2022 foram verdadeiras farsas. Ele sabe que está fraco e não tem respaldo da população.

Por que proíbe que nos manifestemos? Porque sabe que somos a maioria. Por que não deixa que nos expressemos? Porque sabe que nosso ponto de vista tem impacto. O regime se sustenta somente pela repressão e pelo financiamento. Então as perspectivas de uma nova explosão estão sempre presentes.

No ano passado teve uma onda de repressão, e uma série de pessoas foi presa porque qualquer um que esteja na Nicarágua e pense diferente é considerado perigoso. Isso é uma mostra de debilidade, mas mesmo diante disso nós da oposição não conseguimos colocar nossos músculos. Obviamente a situação é complicada. A oposição tem de ser secreta, velada ou clandestina, não pode haver organização legal porque é reprimida. A história mostra que ainda que enfrentados em guerra, sempre se abrem cenários de solução com diálogo. Mas até o momento, as amostras que ele deu são de zero diálogo. Acreditamos que o respaldo que ainda recebe, mesmo pelo silêncio, de esquerdas de outros países segue sendo um ponto a seu favor. Ainda que não haja uma manifestação contundente dos partidos e dos governos de esquerda, ele sente que pode navegar fraudando o discurso de que é um paladino contra o imperialismo. É fundamental que as esquerdas internacionais condenem, de forma clara, o regime de Ortega como um regime criminoso e antidemocrático.

A importância disso é simples: só colocando-o contra a parede é que o fará ceder e abrir espaço para uma transição. A história já nos mostrou isso. Temos o caso do Chile, que teve anos de ditadura até que se abriu um espaço para a realização de referendo – 'e que seja o povo que decida'. Mas para isso é preciso um espaço que só será criado com mais pressão e mais isolamento.

Foi assim que derrotamos Somoza. Em 1978 a Organização dos Estados Americanos rompeu com Somoza e o ditador passou a ser um pária. A vitória do sandinismo em 1979 nunca foi resultado das armas. Nunca tivemos a maioria das armas. Nossa vitória foi o resultado da somatória do apoio popular, da guerrilha e de um amplo isolamento internacional do ditador.

Raphael Sanz é jornalista, editor do Correio da Cidadania e repórter da Revista Fórum, onde esta entrevista foi originalmente publicada.

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