Correio da Cidadania

“Peru deve pôr fim ao Estado mafioso herdado do fujimorismo”, defende Jorge Pizarro

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Membro da Assembleia Nacional dos Povos e dirigente nacional do Movimento Novo Peru, Jorge Pizarro Pacheco diz que “modelo neoliberal está esgotado”.

O Peru tem sido palco de uma grave crise institucional nos últimos dias, agravada na última quarta-feira (7) com o “autogolpe do presidente Pedro Castillo”, logo destituído pelo Congresso. Castillo não contou sequer com o apoio do partido Peru Livre, pelo qual foi eleito. Afastado e detido, é acusado por “crime de rebelião”. Imediatamente foi empossada sua vice, a advogada Dina Boluarte.

Nesta entrevista, Jorge Pizarro Pacheco, dirigente nacional do Movimento Novo Peru e integrante da Assembleia Nacional dos Povos – que reúne partidos progressistas e movimentos sociais -, faz uma análise das expectativas em relação ao novo governo e a necessidade do enfrentamento à herança fujimorista, para superar a crise.

Para Pacheco, “há um esgotamento do modelo neoliberal, que não dá alternativas de solução aos problemas do país”. Diante disso, “enquanto a presidenta instala um novo gabinete com seus ministros, devemos levantar a Plataforma Nacional Constituinte, que tem entre suas demandas a reforma tributária, a renegociação dos contratos petroleiros – que entrega a estratégica riqueza nacional aos estrangeiros -, a segunda reforma agrária e o fortalecimento da saúde pública”. “Precisamos romper com o fujimorismo e com os outros partidos iguaizinhos, de ultradireita, abertamente neofascistas”, enfatizou.

O que levou o presidente Pedro Castillo a investir contra o Congresso sem o respaldo popular, nem das Forças Armadas, nem de parlamentares e nem do seu próprio governo?

Vivemos uma crise geral que além do esgotamento do modelo neoliberal, não dá alternativas de solução aos problemas do país. São graves e vêm de longa data.

É preciso fazer uma breve retrospectiva. Estão presos o ex-presidente Alberto Fujimori, que entre 1990-2000 governou um Estado mafioso, ao lado de Vladimiro Montesinos, um traidor da pátria; encontra-se detido por corrupção nos Estados Unidos, próximo à extradição, Alejandro Toledo (2001 a 2006) – [acusado de lavagem de dinheiro, conspiração e tráfico de influência, um dos envolvidos no escândalo Lava Jato, após receber milhões da Odebrecht]; Alan García (2006 a 2011) se suicidou quando estava prestes a ser capturado; Ollanta Humala (2011-2016) está a ponto de ser condenado a uma sentença de 20 anos; e Pedro Pablo Kuczynski (PPK), que tinha passaporte norte-americano e peruano, governou um ano e meio até março de 2018 e se encontra em prisão domiciliar, também envolvido com corrupção com a Odebrecht. [Posteriormente, tivemos ainda encurtados os mandatos de Martín Vizcarra de março de 2018 a novembro de 2020; os cinco dias de Manuel Merino, de 10 a 15 de novembro de 2020; e de Francisco Sagasti, de novembro de 2020 a julho de 2021].

É a crise de um sistema econômico que só serve para corromper e fez com que em abril e maio de 2021 o povo votasse contra os partidos tradicionais – houve candidatos por 18 siglas – e ganhasse Pedro Castillo com uma proposta de mudanças estruturais, de um processo Constituinte para uma Nova Constituição. Perdeu Keiko Fujimori, a filha do ditador, que representava mais do mesmo.

Desde que a ultradireita foi derrotada, disseram que as eleições tinham sido fraudadas, procuraram desgastar e menosprezar os órgãos eleitorais. Foi essa a alegação com que a deputada Lady Ramones, ex-presidente do Congresso peruano, tentou se armar. [Em setembro, Ramones foi afastada ao ser flagrada armando com a presidente do seu partido Aliança para o Progresso para que Castillo caísse “em dois ou três meses”]. Fica claro, então, que é uma luta de projetos, e que a ultradireita parlamentar age desta forma.

E como isso se expressa no cotidiano das pessoas?

Aqui no Peru temos sofrido mais de 250 mil mortos por Covid em 2020 e 2021, o que com 33,36 milhões de habitantes é a mais alta taxa per capita do mundo, resultado de um péssimo sistema sanitário, ao qual faltou desde camas nos hospitais até oxigênio, algo bastante grave.

Ao mesmo tempo, com o beneplácito da direita, havia clínicas privadas que cobravam diárias de 500 a mil sóis (US$ 125 a 250), fazendo com que as famílias tivessem que se endividar na tentativa desesperada de se salvar.

Nós temos gás natural, no entanto o consórcio Camisea exporta essa riqueza, pois os governos anteriores permitiram [a privatização e a desnacionalização]. Assim, mesmo o país necessitando gás, os estrangeiros preferem exportar, ampliando seus lucros com a guerra da Ucrânia com a Rússia.

Em Camisea os estrangeiros compram por US$ 0,5 centavos o metro cúbico e revendem ao Peru por US$ 4,5: nove vezes mais. Na própria cidade de Camisea, onde está localizado o gás, os moradores compram o gás de GLP a quase US$ 15 o galão.

Infelizmente, é exatamente o relatado. E isso ocorre porque a Constituição de 1993 – feita por Fujimori – permitiu os chamados “Contratos-lei”, contratos com cadeado, que, mesmo sendo abusivos, não podem ser modificados. Querem a vantagem absoluta, usufruir da privatização/desnacionalização com toda a corrupção que isso trouxe. Chegamos a um ponto em que é totalmente indispensável a modificação das normas constitucionais como as dos “Contratos-lei”.

Os exemplos são múltiplos. Temos o caso da empresa de fertilizantes no Norte, desmontada por Fujimori, e agora não temos nada, o que deixou o país completamente dependente para a nossa agricultura. Tínhamos uma empresa aérea nacional, aeroportos, e agora não temos nada. Tínhamos uma frota marítima para transporte e já não temos navios com bandeira nacional, é tudo uma desgraça.

Por isso as pessoas querem transformações e exigem mudanças profundas, por isso votaram em Castillo.

Como está a questão petrolífera?

Em Loreto, há dez contratos petrolíferos que estão para vencer. Em 2010 quando entregues ao setor privado, foram informados da necessidade do investimento na exploração de novos poços. Mas se passaram doze anos e nada. Não cumpriram absolutamente uma vírgula e agora, novamente, a direita parlamentar quer a sua prorrogação e a manutenção dos contratos com cadeado. É algo completamente absurdo.

Apesar de tudo, o Estado construiu uma refinaria moderna em Talara, que é um marco e deve ser fortalecido. Mas, como a direita peruana e os meios de comunicação que lhe fazem coro atuam contra o interesse nacional, buscam a sua privatização. Querem liquidar com a estatal e começaram uma campanha de que Talara é um “elefante branco”. O real objetivo é que o Peru importe petróleo.

Há vários aspectos da vida política e econômica peruana que precisam ser abordados, como a justa exploração dos recursos naturais. Nosso gás está em Cusco e é necessário que se promova a massificação da distribuição para as moradias, para as microempresas, para o desenvolvimento.

Precisamos fortalecer a Petroperu para termos combustível barato e a primeira coisa que Fujimori fez foi privatizar os postos de gasolina. Nossa empresa não tem sequer postos próprios, há apenas alguns intermediários. Na Repsol, a gasolina custa 22 sóis. Se vendêssemos a 15 sóis isso permitiria regular o preço interno, mas os entreguistas nos impedem. Tudo isso é o que está por detrás da luta entre o projeto golpista da direita e o que Castillo oferecia e pôde fazer.

Infelizmente, o professor Castillo, que tomou posse em 28 de julho de 2021, durou seis meses e em fevereiro de 2022 nomeou um primeiro-ministro que não queria mudanças, nem sequer cosméticas. Apesar disso, a direita continuou buscando afastá-lo. E agora temos este grave erro, em que Castillo tenta um autogolpe, dissolvendo o Congresso, dissolvendo o Tribunal Constitucional, afrontando todas as instituições do Estado. Tudo porque estava sendo acusado de corrupção e os parlamentares iriam votar estas denúncias. Não tinham os 87 votos para isso.

No entanto, ao afrontar o Estado de direito, Castillo permitiu à direita apresentar-se como porta-voz da democracia. Afastaram-no com 101 votos a seis e a Procuradora Suprema, sua opositora, que não é totalmente limpa, que permitiu a substituição de uma promotora que julgava a irmã por narcotráfico. Essa procuradora, contra quem pesam muitas denúncias de condutas extremamente críticas, agora aparece como a paladina da Justiça.

E como se encaixa neste jogo a nomeação da vice-presidenta Dina Boluarte?

A advogada Dina Boluarte é da serra, da região de Apurímac, no Sudeste. Há uma luta entre os que dizem que vai conciliar com esse Congresso golpista e os que afirmamos que é preciso ir à luta para resolver os inúmeros problemas pendentes. Temos uma alta inflação, uma seca muito forte no Sul, além da crise alimentar. Por isso acabamos de nos reunir e convocar uma mobilização para a próxima quinta-feira (15), a fim de exigir o cumprimento da nossa Plataforma Nacional de Luta, para que se resolvam os problemas nacionais.

E quanto a esse Congresso? Como tem agido após ter afastado a sua presidenta, Lady Ramones, e em relação aos dois Decretos Supremos de Castillo contra a terceirização e em defesa da negociação coletiva?

Lady Ramones foi eleita presidenta do Congresso e com o descobrimento dos áudios em que estavam tramando um complô para o impeachment de Castillo recebeu uma moção de censura, foi destituída e substituída por um general aposentado. Mas apesar da afronta, ela seguiu sendo congressista, porque entre eles se reacomodam. Até hoje há um parlamentar que é reconhecidamente um estuprador, que violou sua funcionária dentro do próprio Congresso e permanece aí, protegido.

Os Decretos Supremos 01 e 014 dizem respeito ao combate à terceirização e ao apoio à negociação coletiva e foi correta a iniciativa do governo. O Ministério do Trabalho limitava a terceirização e, embora não fosse perfeito, significava um avanço diante da ação de empresas que superexploram a mão de obra a ponto de chegar ao escravismo. Porém, o próprio governo permitiu que a direita os revisasse e, devido à pressão, acabou retrocedendo nas limitações impostas à terceirização.

O problema é que o Partido Peru Livre, pelo qual foi eleito Pedro Castillo, não dispunha de técnicos capazes e manteve tecnocratas, gente sem condições de enfrentar as manobras, e acabou sendo derrotado em suas propostas. E isso aconteceu em muitas estruturas do governo e ministérios.

Essa foi e é a grande limitação de Vladimir Cerrón, líder do Peru Livre: não deixar que profissionais com capacidade entrem e façam mudanças.

Qual a sua avaliação em relação às negativas de confiança dadas pelo Congresso ao presidente Castillo e que lhe permitiriam dissolvê-lo e chamar eleições, com base na própria Constituição?

O fato é que o próprio Tribunal Constitucional é eleito por esse Congresso, e são pessoas conservadoras, que fazem uso e abuso da interpretação das normas em favor do fujimorismo. O Tribunal Constitucional fez uma interpretação cautelar a pedido do Congresso e que vai demorar até março (risos). É uma política arbitrária, dura e crua. Portanto, não havia como enfrentar o Congresso por essa via – a destituição – prevista na Constituição peruana. Castillo cometeu um grave erro.

E quais seriam os próximos passos para a construção de uma grande frente de oposição ao fujimorismo?

Penso que a curto prazo, enquanto a presidenta instala um novo gabinete com seus ministros, devemos levantar a Plataforma Nacional Constituinte, que tem entre suas demandas a reforma tributária, a renegociação dos contratos petroleiros, a segunda reforma agrária e o fortalecimento da saúde pública.

É importante que Dina Boluarte assuma enfrentando os problemas reais que afligem o povo peruano e não sendo pautadas pelos defensores do passado, deixando claro que as coisas não seguirão como antes, mas que atenderá os problemas de todos: da costa, da selva e da serra.

A segunda questão é que necessitamos nos distanciar deste Congresso e adiantar as eleições, mas com novas leis eleitorais. Precisamos de uma modificação do sistema político porque as atuais regras são completamente viciadas em favor de um sistema antidemocrático, que não dá voz a todos, seja a nível municipal, regional ou nacional. É um jogo marcado para um parlamento de fujimoristas, corruptos e entreguistas. Há atualmente uma enorme desigualdade em prol de partidos caducos, em que a direita modifica as normas em plena vigência do processo eleitoral.

Precisamos romper com o fujimorismo e com os outros partidos iguaizinhos, abertamente neofascistas. Reitero a necessidade que a nova presidenta afronte os problemas reais, com profundidade, que haja novas normas e que se adiante as eleições, voltando a consultar a cidadania e dando-lhe poder soberano. Necessitamos de um referendo para que os peruanos se pronunciem se querem ou não uma nova Constituição. A direita quer uma lei para que não se possa sequer perguntar se as pessoas querem o referendo. É uma ruptura do equilíbrio de poderes e o Congresso assumiu muito poder, não só contra o Executivo, mas contra a cidadania. Para crescer e retomar a democracia, o Peru deve pôr fim ao Estado mafioso herdado do fujimorismo.

Leonardo Wexell Severo é jornalista.

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