Correio da Cidadania

A água como mercadoria

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Na capital do Haiti, água vale ouro

Um dos mais importantes bens naturais, um bem comum, é hoje o centro de disputa de grandes empresas transnacionais: a água. Correndo livre na natureza, gerando vida por onde passa, desde algum tempo vem sendo observada e usada como uma potencial mercadoria. Essa transformação da água em objeto de negócio começou devagar, quase sem que as pessoas notassem. Até uns 30 anos atrás era comum alguém chegar num bar e pedir um copo de água, que era oferecida com prazer pelo dono do estabelecimento. Hoje, isso parece impensável. Quem quer água tem de comprar. E se a gente insiste em pedir uma da torneira, por solidariedade apenas, as caras se enfarruscam.

As primeiras águas engarrafadas para a venda datam do século 18. Uma das mais conhecidas é a francesa Perrier. Diz a lenda que a fonte dessa água mineral foi encontrada em 218 A.C., pelo exército romano. Ela foi famosa durante muito tempo, e as pessoas podiam usar suas águas borbulhantes livremente, até que por volta de 1793 as terras onde elas brotavam passaram para as mãos de Alphonse Granier, um homem de negócios. O primeiro nome dado a essa água envasa foi “Bouillens”, por conta de sua forma gasosa.

Em 1863, Granier fundou a Société de l’Etablissement Thermal des Eaux Minérale de Vergezé, e foi aí que a água passou a ser vendida. Em 1869, com a chegada de um novo sócio, o Dr. Louis Perrier, a água passou a ser oferecida como tendo propriedades medicinais. Começa assim a saga das águas engarrafadas para a venda. Eram águas “mais iguais” que as outras. Ofereciam saúde. Mais tarde, essa água ficou tão famosa quanto o vinho da região e tomar uma Perrier passou a ser sinônimo de status. Não era para qualquer um.

Com o sucesso da água francesa outras empresas começaram a atuar nesse mercado, afinal, águas termais e minerais existem em todo canto. E o discurso de que uma água poderia conter mais benefícios para a saúde do que a natural, da torneira, acabou valendo como valorização da mercadoria. Em pouco tempo, a água mineral engarrafada virou coisa corrente.
 
Nos últimos anos a praga se espalhou, e com um agravante. O envase já não era mais de vidro, como as primeiras, mas de plástico. Isso piorou ainda mais as coisas, pois além de vender a água como uma mercadoria qualquer, o processo com plástico é tremendamente antiecológico. Produz um lixo não biodegradável que leva milhares de anos para decompor na natureza. Segundo dados recentes, o plástico acumulado no mundo, se enfileirado, poderia dar cinco voltas ao planeta.

Hoje é bastante comum as pessoas tomarem a chamada água mineral. E envasadas no plástico. Para a indústria isso é ótimo, pois além de lucrarem com um bem que deveria ser comum e gratuito, ela ainda ajuda a provocar doenças que serão tratadas pela outra indústria, a farmacêutica. Isso quando não é a mesma empresa que comercializa as duas coisas. E o corpo humano é esse espaço de disputa de mercado.

As famosas garrafinhas que as pessoas ostentam em vários modelitos coloridos são feitas de um composto chamado tereftalato de polietileno (PET). É um polímero, um elemento químico que, segundo vários estudos, pode transmitir à água muitos elementos nocivos à saúde. Além disso, ele altera a composição da água. Vejam quais as partículas que podem ser liberadas pelo PET:

1 - Ftalatos: é um componente que serve para dar flexibilidade ao plástico e se chegarem ao organismo podem causar problemas endócrinos. Os fabricantes dizem que a porcentagem liberada é pequena, que não causa dano, mas como acreditar em quem quer vender?

2 - Antimônio: é um catalisador essencial para preparar a PET. Pode causar câncer e problemas respiratórios. Os fabricantes dizem que a OMS controla os índices. Mas, como crer? E quem controla a OMS não são os interesses comerciais das transnacionais?

3 - Formaldeído e acetaldeído: compostos que fazem com que a água tenha o “sabor de plástico”. Caso a garrafa fique no sol, esses compostos passam para a água e eles também podem causar problemas no organismo.

Ainda que a indústria negue os efeitos à saúde é preciso conhecer o processo para se proteger. O consumidor comum pouco sabe dessas “particularidades” da água que está sendo consumida, cada vez mais no plástico, e pela qual ele paga, muitas vezes caro, já que a água de torneira é vista como ruim e nojenta.

Diante dessa realidade, as populações enfrentam vários problemas. Além da saúde em risco com o uso da água em plástico, o negócio privado cada vez mais rentável da água faz com que os cuidados no trato da água pública, essa que sai da torneira, comecem a ser negligenciados. O Estado investe pouco no tratamento da água e isso leva as pessoas a buscarem a opção privada. O resultado é bastante útil para o capital. Cada vez mais pessoas compram a água em vez de tomarem o líquido que sai da torneira de casa, o qual também tem um custo, mas bem mais baixo. Nesse sentido o uso da água também passa a ter ligação visceral com a condição de classe. Os pobres tomam a água suja e os que têm condições de pagar tomam a água teoricamente melhor.

Mas a coisa ainda piora. Não bastasse essa jogada de engarrafar a água e torná-la mercadoria, as grandes empresas transnacionais que utilizam muito a água para a produção de seus produtos realizam outra guerra de classes nos mais variados países. Para garantir a matéria prima sob seu controle compram terras onde existem grandes lençóis de água e privatizam os mananciais. No Brasil empresas como a Nestlé, Ambev e Coca Cola estão nessa lista. Mas há muitas outras.

No último mês de março isso ficou bem claro durante mais uma edição do Fórum Mundial da Água que aconteceu em Brasília. Paradoxalmente, ou não, o encontro que era para discutir a crescente privatização da água no mundo teve a presença maciça – e também o patrocínio -  dessas empresas que utilizam a água como mercadoria.

O governo decidiu criar, além do espaço dos debates, um espaço de “exposição” para as empresas para que elas pudessem “dialogar” com a população. Até a Confederação Nacional da Agricultura, que reúne os latifundiários, esteve no encontro. Isso porque é a agricultura extensiva e monopólica que acaba consumindo 70% da água do planeta. Mais um momento singelo de cinismo explícito tanto do governo brasileiro como das empresas que privatizam a água.   

 
A luta contra a privatização é em todo mundo

Assim que, enquanto as gentes lutam para garantir seus mananciais de água, muitas vezes com suas lideranças sendo assassinadas ou presas, os empresários garantem espaços privilegiados para enganar a população e reforçar a propaganda de que a água boa é só a que vem nas garrafinhas, com selinho e grifes. Com isso, vai sendo criado um consenso cada vez mais sólido de que a água é um líquido mágico que brota em algum lugar não sabido e que são as empresas as que se encarregam de distribuir. A água da torneira passa a ser usada apenas para lavar a roupa, a louça ou a calçada.

Mas, apesar de muita gente embarcar nessa historinha para boi dormir, para a maioria das comunidades empobrecidas e periféricas ou as populações ribeirinhas em todo o mundo, a água é hoje o problema principal. Com o avanço da agricultura extensiva, das petroleiras e das mineradoras, são justamente os mananciais de água que mais sofrem com a poluição provocada por essas produções. Um caso recente no Brasil, que ainda reverbera na memória, é o da minerado Samarco, da Vale. A explosão da barragem de dejetos provocou um dos mais graves acidentes ambientais, responsável pela morte de um rio inteiro e pelo surto de febre amarela que veio depois.

O fato é que a água como negócio é algo que precisa ser combatido agora mesmo, e não apenas pelas gentes que vivem nas beiras de rios ou lagos. É uma luta que precisa ser incorporada pelos sindicatos e movimentos sociais de toda ordem, pois sem água o ser humano não sobrevive. E, caso ela se privatize ainda mais, não tardará o dia em que os povos precisarão matar-se entre si para garantir o precioso líquido. A água é um recurso natural que pode se esgotar.

Dizer não à privatização é urgente e necessário. E isso passa também pela postura individual de não mais consumir a água em garrafinhas. Não que um protesto solitário resolva o caso, claro que são as lutas coletivas que mudam o mundo. Mas, na medida em que cada pessoa vai aceitando a ideia de que comprar água é natural, mais difícil fica quebrar essa ideologia – bombardeada há séculos pelo capital - de que água que vem no plástico é melhor.

Hoje nos impõem as garrafinhas coloridas. Amanhã, quando os mananciais estiverem todos nas mãos privadas e a água não for mais considerada um bem público, o que acontecerá?

Não precisa ser muito esperto para saber.

Elaine Tavares é jornalista e colaboradora do Instituto de Estudos Latino-Americanos da UFSC, onde o artigo foi originalmente publicado.

Elaine Tavares

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