Correio da Cidadania

La Higuera: 50 anos depois, repensando Che

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Para visitar Vallegrande, o lugar onde Ernesto Che Guevara passou as últimas semanas da sua vida, deve se fazer uma longa viagem. Primeiro há de se chegar a Santa Cruz, a cidade mais populosa da Bolívia e dali tomar um dos velhos e maltratados ônibus que correm por uma sinuosa estrada de montanha que se encontra em péssimo estado.

Ainda assim, nestes dias, Vallegrande esteve cheia de militantes (especialmente jovens) que vêm de muitas cidades do país, assim como das mais diversas nações, pelo motivo do quinquagésimo aniversário do desaparecimento do revolucionário latino-americano.

Muitos se aproximam do hospital Nuestro Señor de Malta, em cuja lavanderia foi fotografado e exibido ao público pela última vez o corpo de Che, já sem vida, mas com olhos ainda abertos. Aqui, com em outras províncias da Bolívia, trabalham grupos de médicos cubanos que exercem na Bolívia graças a um projeto solidário concebido por Fidel Castro depois da eleição de Evo Morales, que tem como objetivo a criação de centros de saúde para melhorar os níveis de atenção e assistência da região.

A poucos quilômetros do centro da cidade se encontra a fossa comum – recentemente tornada museu -, aonde, na noite entre 10 e 11 de outubro de 1967, Che, que tivera suas mãos amputadas, foi enterrado em segredo junto com outros seis guerrilheiros de sua coluna. O lugar dista algumas centenas de metros da pequena pista de aviação e do quartel militar desde que os rangers bolivianos, ajudados por agentes da CIA, levaram a cabo as operações de rastreamento para capturar Guevara. Seus restos apareceram apenas 30 anos depois, graças às investigações de uma equipe cubano-argentina. Hoje se conservam em um mausoléu em Santa Clara, cidade onde, em dezembro de 1958, Che dirigiu a batalha decisiva que marcou o fim do regime de Fulgencio Batista e o triunfo da revolução em Cuba.

Além de visitar esses dois lugares, as pessoas que encheram as ruas de Vallegrande participaram de apresentações de livros, debates, exposições fotográficas e uma manifestação final, com a presença de uma ampla delegação cubana – incluindo a família Guevara (o programa dos eventos pode ser consultado em https://50aniversariochebo.bo)

Demora-se três horas em viajar de Vallegrande a La Higuera. Só se pode chegar de jipe porque o caminho que conduz a este pequeno povoado de apenas cinquenta casas, situado a mais de 2000 metros sobre o nível do mar, não está asfaltado, mas cheio de curvas. É um lugar desolado, ainda hoje longe do mundo.

No caminho, tropeça-se com alguns camponeses. Cruzam a estrada cheia de buracos, caminhando lentamente, tristes, com suas ferramentas de trabalho às costas. Não parece que tenha mudado muito desde que Che atravessou estes vales, em uma tentativa de derrubar a ditadura militar do general René Barrientos.

Guevara escolheu a Bolívia não porque lhe dera na telha, como às vezes se atribui injustamente, a ideia de reproduzir mecanicamente as estratégias políticas e militares aplicadas em Cuba. Estava convencido, de todo modo, da necessidade de vislumbrar um processo revolucionário que afetasse todo o Cone Sul. Um projeto supranacional que desde a Bolívia fosse capaz de se estender ao Peru e Argentina, para evitar que os Estados Unidos interviessem e pudessem aniquilar um foco único, e portanto o mais frágil, de resistência local. No centro do continente e rodeada por cinco países, a Bolívia parecia o lugar mais adequado para iniciar a formação de um grupo de quadros a quem confiar, uma vez treinados, a tarefa de organizar diferentes frentes de luta em toda a América Latina.

Che fundou o exército de Libertação Nacional da Bolívia com apenas 45 guerrilheiros. Na introdução ao Diário da Bolívia, Fidel Castro escreveu: “impressiona profundamente a proeza realizada por este punhado de revolucionários. Só a luta contra a natureza hostil em que desenvolviam sua ação constitui uma insuperável página de um heroísmo. Nunca na história um número tão reduzido de homens empreendeu tarefa tão gigantesca”.

A morte tocou a muitos deles no improviso, 11 meses depois do início da guerrilha. Em 8 de outubro de 1967, de fato, Che, surpreendido em Yuro junto a 16 companheiros, foi ferido na perna esquerda e capturado depois de três horas de combate. Transportado à vizinha La Higuera, foi assassinado no dia seguinte, por ordem de Barrientos.

Depois da execução, o exército boliviano se apoderou da mochila de Che e todos os seus documentos. Os cadernos com o Diário da Bolívia puderam rapidamente ser devolvidos a Cuba. Pelo contrário, outro monte de textos curtos apareceu muito mais tarde e foram publicados em 1998, com o título Antes de morrer: apontamentos e notas de leitura. Nestas páginas, Guevara copiou as passagens mais importantes de suas leituras e resumiu alguns dos estudos que estava fazendo, apesar das difíceis condições em que se encontrava.

Tais notas foram escritas durante os raros momentos de descanso e constituem uma prova mais de sua extraordinária determinação. Assim, critica a falta de profundidade da análise do sociólogo Charles Wright Mills, cujo “Os marxistas” Che leu e resumiu, definindo-o como um “claro exemplo da intelectualidade liberal da esquerda norte-americana”. György Lukács, ao contrário, lhe foi muito útil, já que o ajudou a entender “a complexidade da filosofia hegeliana”.

Como guia para seus estudos de filosofia, Che utilizou o manual editado pelo cientista soviético Miguel Dynnik e o Antidüring de Engels, do qual apreciou mais que qualquer coisa “seus pensamentos inconclusos sobre a dialética”. Dedica várias partes à História da Revolução Russa de Trotsky, às vezes criticada, mas que, em sua opinião, era uma “fonte de importância essencial” sobre o nascimento do poder soviético. Por último, Guevara também se dedicou ao estudo dos autores locais e, ao comentar um livro intitulado “Sobre o problema nacional e colonial da Bolívia”, assinala que defendia “uma tese interessante”, já que considerava esse país “um Estado multinacional”.

Completam essas anotações um roteiro de um projeto de estudo sobre os diferentes modos de produção, desde os pré-capitalistas até o socialismo. Neste, afirma que “Marx tinha razão” em relação à pauperização do proletariado, mas também que “não previu o fenômeno imperialista. Atualmente, os trabalhadores dos países imperialistas são sócios minoritários do sistema”.

Além do estudo teórico, em suas últimas notas Che copiou três poemas do escritor nicaraguense Ruben Dario. Nos versos finais do último deles, Litania de Nosso Senhor do Quixote, descreve-se um personagem que, em muitos aspectos, é como ele: “cavalheiro errante dos cavalheiros (...) nobre peregrino dos peregrinos, que santificaste todos os caminhos, com a passagem augusta de sua heroicidade, contra as certezas, contra as consciências, contra as leis e contra as ciências, contra a mentira e a verdade (...) Que de força alentas e em sonhos vistes, coroado de áureo leme de ilusão, que ninguém conseguiu vencer ainda, pela amarra no braço, toda fantasia, e a lança em riste, toda coração!”.

Isso é o que pensam dele todos os jovens que chegaram a la Higuera no início de outubro, para lembrar de Che e deixar novas pegadas na longa e difícil estrada que trilhou.

Marcello Musto é professor de teoria sociológica na Universidade de York, Toronto, Canada.
Traduzido por Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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