Correio da Cidadania

Haiti: “missão cumprida”

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Os objetivos declarados da Minustah – enviada em 2004 pelo Conselho de Segurança da ONU para substituir as tropas estadunidenses que haviam invadido o Haiti meses antes – eram “estabilizar e pacificar o país desarmando grupos guerrilheiros e criminosos; formar um corpo policial profissional; promover eleições livres e democráticas; proteger os direitos humanos; fomentar o desenvolvimento institucional e econômico”. O único objetivo cumprido, dos declarados, foi a formação de um corpo de 15 mil homens da Polícia Nacional Haitiana, treinados e armados para reprimir com violência excessiva as multidões que participam de manifestações populares, abundantes no país ocupado: fenômeno catalogado pelos grandes meios de comunicação como “desestabilização”.

Não foi proposto, em troca, o desarmamento de organizações criminosas como narcotraficantes, paramilitares, sequestradores e estupradores, nem o desmantelamento das redes de tráfico humano, de adultos e crianças (algumas organizadas por membros da ONU), muito menos o desenvolvimento nacional e a defesa dos direitos humanos da população. A Minustah se constituiu como um dos piores violadores de direitos, introduzindo, como a próprio ONU acaba de reconhecer, a epidemia de cólera que segue matando até hoje – já foram contabilizadas mais de 11 mil vítimas –, e seus integrantes seguem violando crianças, mulheres e jovens. Tampouco colaboraram com uma eleição limpa e democrática, nem geraram a recuperação de nenhum nível de institucionalidade legítima. Contudo, à luz dos acontecimentos, a Minustah hoje estuda retirar-se com missão cumprida, claro, dos seus fins não declarados.

O golpe de Estado e o sequestro do presidente Jean-Bertrand Aristide em 29 de fevereiro de 2004, protagonizado por marines dos EUA com apoio das tropas da França e do Canadá, veio fechar um ciclo de “abertura democrática”, com direito a eleições, que a resistência do povo haitiano conquistou com muito sacrifício e sangue a partir de uma insurreição popular que começou em 1986. Esta revolta obrigou o ditador Jean-François Duvalier a fugir e refugiar-se na França, durante pouco menos de 30 anos, para regressar ao país sob proteção da Minustah nos dias prévios à ascensão de Michel Martelly, em maio de 2011, que o amparou em impunidade até a morte.

Aquele ciclo de abertura democrática que durou 18 anos, entre o século 20 e o 21, foi o único em que o movimento popular conseguiu se impor e abrir uma brecha importante de participação na permanente dominação política, econômica e militar estadunidense. Desde 28 de julho de 1915, dia da primeira invasão dos EUA, resistida durante quatro anos pelo povo e os cacos – guerrilheiros camponeses levantados em armas –, como reza o dito popular haitiano, “com botas ou sem elas, os Estados Unidos sempre estiveram aqui”.

Esta ocupação-dominação destruiu deliberadamente a produção camponesa, mudou o rumo e a vocação histórica do país como produtor agrícola e exportador de arroz, açúcar, mangas e cacau, fazendo-o perder a soberania e a segurança alimentar, e despejando o campesinato das terras, expulsando para as cidades e para o exterior. Um exemplo do legado da devastação que deixaram as grandes transnacionais estadunidenses no Haiti no século 20: a empresa Shada desflorestou mais de 130 mil hectares para o plantio de sisal para a indústria militar e cortou um milhão de árvores frutíferas que serviam para alimentar a população. Para isso, mais de 30 mil famílias camponesas foram expulsas como párias de suas terras.

A chegada de Aristide ao poder em 1991 causou tanto alarme no governo estadunidense e na alta elite haitiana que sete meses depois de sua ascensão, em setembro de 1991, Aristide foi derrubado. O chefe do Comando Sul, James T. Hill, declarou mais tarde no congresso de seu país que “as mais graves ameaças” que enfrentavam os EUA eram os populismos radicais de Aristide e Hugo Chávez, e aclarou que as “operações no Haiti têm o efeito de proteger os interesses dos Estados Unidos no Caribe”.

O movimento popular haitiano foi golpeado de maneira criminosa, e levou anos para se colocar novamente de pé. Também resistiu ao golpe eleitoral que entre 2015 e 2017 tentou “estabilizar” no poder uma série de governos surgidos de eleições fraudulentas.

A missão das Nações Unidas foi o último instrumento repressivo criado, com disfarce humanitário, para regressar o país ao ciclo de ditaduras sob controle estadunidense. O cantor Michel Martelly, com passado paramilitar, foi praticamente colocado no poder pela embaixada dos Estados Unidos quando Hillary Clinton era secretária de Estado. Martelly governou mediante ordens executivas, concentrando o poder em suas mãos, provocou a caducidade do parlamento, substituiu várias autoridades eleitas por pessoal proveniente do duvalierismo e não chamou eleições durante cinco anos.

Também perseguiu e encarcerou sem juízo dirigentes e líderes sociais e comunitários, além de jornalistas e cidadãos em geral que denunciavam o sistema de corrupção generalizado em que se encontravam seu filho e esposa. Praticou o desalojo forçado de camponeses para criar zonas francas agrícolas e industriais, zonas para turismo de luxo, e assim por diante. Limitou-se a isto a obra de “reconstrução” que empreendeu depois do devastador terremoto de 2010.

Em 2015 houve eleições que de tão descaradamente fraudulentas foram anuladas. O principal fraudador foi o candidato apoiado pelos EUA, Jovenel Moise, mas os responsáveis do Estado não se atreveram a penalizá-lo e afastá-lo do processo eleitoral. E com métodos semelhantes, triunfou nas eleições seguintes. “Foi votado” por 600 mil haitianos, uma décima parte do padrão eleitoral. Apesar disso seu triunfo foi reconhecido pela Minustah, a OEA e a ONU. Jovenel Moise conseguiu também a maioria nas duas câmaras legislativas.

A marca do governo de Moise foi denunciada pela Rede Nacional de Defesa dos Direitos Humanos do Haiti. Seu diretor, Pierre Espérance, publicou e apresentou às autoridades, antes da última eleição, uma longa lista de candidatos que deviam ter sido impedidos de se apresentarem ao processo eleitoral por terem profusos antecedentes criminais, vinculados à lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e homicídios. Entre eles figurava o atual presidente, que é investigado em 14 contas bancárias com depósitos milionários, cujas origens não pôde explicar. É a narcopolítica entronizada no poder com toda a ostentação possível e imaginária.

Um salto qualitativo na direção de um modelo de dominação que parece acompanhar o desenvolvimento mais alto do neoliberalismo, tanto no Haiti como em outros países da região. As novas formas de repressão e a impunidade do novo regime narcopolítico “eleito por via eleitoral” serão qualitativamente superiores. É a única forma de enfrentar um povo contra o qual comete-se um genocídio, ao que se pensa amordaçar e restringir para consumar o crime.

No Haiti, só foi possível chegar a este ponto graças à Minustah, que reprimiu manifestações por aumentos salariais, serviços básicos, contra a fome, a ditadura e a corrupção de Martelly, contra a ocupação e a “maldição” da cólera, contra a demissão de milhares de trabalhadores por conta de privatizações, em especial da empresa estatal elétrica. Sem a proteção dos capacetes azuis, Martelly poderia haver sido destronado várias vezes. Com ela, este presidente singular sabia que estava seguro.

Nestas últimas semanas, prévias à ascensão de Jovenel Moise, importantes manifestações contra o “golpe eleitoral” foram reprimidas tão violentamente pela Polícia Nacional Haitiana que provocaram a morte de três bebês por intoxicação com gases. Três jovens foram assassinados na semana anterior na localidade de La Saline, e outros em outras zonas populares. A imprensa silenciou estes fatos e a quantidade de vítimas que gerou o terror nos bairros, para que na terça-feira, 7 de fevereiro, o novo presidente pudesse se mostrar ao mundo de maneira triunfal e impoluta.

O futuro imediato se apresenta sombrio para o povo haitiano. A moderna “tríplice aliança”, integrada pelos mesmos países que arrasaram o Paraguai no século 19, liderada pelo império de turno, poderá retirar-se após haver cumprido sua execrável missão.

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Mónica Riet é jornalista e fotógrafa.
Texto publicado em espanhol no jornal Brecha, de Montevideo.
Traduzido por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

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