Correio da Cidadania

1989: quatro lições de guerra-paz no continente

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Vivemos um momento dramático na história da luta de classes latino-americana. Além do recrudescimento neoliberal, nos deparamos com a morte do comandante Fidel. Os meios de comunicação reproduzem a imagem ditadora frente à liberdade-democracia burguesa liderada por Trump; o sucesso da modernidade do capital, frente às supostas ruínas do socialismo. E a mídia cumpre a função de projetar o linchamento público dos lutadores sociais do continente que reivindicam a vigência do horizonte revolucionário no continente.

 

A complexidade de Cuba deve ser explicada a partir da relação entre totalidade-particularidade, base sobre a qual suas ações se dão, em um mundo cada vez mais dominado pela dinâmica violenta do capital. Parte de sua pobreza-riqueza precisa ser entendida nos acontecimentos do capitalismo e do socialismo ocorridos fora da ilha entre 1940-1990.

 

A ofensiva capitalista sobre os Estados latino-americanos que realizaram políticas consideradas mais “brandas” ao longo do século 21 exige que elucidemos o conteúdo por trás da forma conservadora. Demarcaremos 1989 como um ano central de compreensão sobre a ofensiva do capital financeiro no mundo e na América Latina, com incidência marcante sobre o socialismo cubano.

 

Consenso de Washington

 

Marco estrutural dos processos de abertura comercial da América Latina e de condução do arrocho na política econômica assentado em elevadas taxas de juros. Condução que nos remete à explicitação da dependência estrutural atrelada à dívida como elemento estrutural dos processos de desenvolvimento no continente. Eric Toussaint em A bolsa ou a vida: a dívida externa do terceiro mundo, nos mostra que a dívida externa da A.L em 1970 era de 33 milhões de dólares; em 1980, passou para 257 milhões; 1985, 389 milhões; e em 1990, 475 milhões. A substância concreta da nova fase do imperialismo após os anos 1970 é a da dívida como instrumento de vinculação desigual entre economias débeis tecnologicamente, mas fortes em força de trabalho e recursos naturais. O consenso de Washington define-se, para a América Latina, como a demarcação política da transferência de valor do Sul para o Norte através do pagamento de juros da dívida e de políticas econômicas severas.

 

Muro de Berlim

O final da Segunda Guerra Mundial trouxe à tona o teor da guerra entre as grandes potências militares. No discurso de paz, delimitado pela economia de guerra, a construção do muro expôs os impactos para a economia mundial de uma retomada da hegemonia pelos supostos vencedores da guerra (EUA, Reino Unido, França e URSS). Em 1945, como faceta expressiva da atual dinâmica de um mundo cindido entre dois projetos societários – capitalismo (EUA) e comunismo (URSS). A separação alemã após a primazia da guerra contra o nazismo baseou-se na composição de pactos políticos da Guerra Fria, em alusão direta a uma ideia de paz, em plenos contextos de ofensiva tecnológica da indústria armamentista das duas potências. Os protagonistas desse pacto foram Roosevelt e Churchill (EUA) e Stalin (URSS).

 

Na década de 1960, a construção do muro explicitava ao mundo o mito da paz e o real termômetro da guerra que nada tinha de fria. Nesse período, a América Latina vivenciou os processos de desenvolvimento industrial-urbano-moderno, a partir da ofensiva estadunidense no continente, através da construção consensual acerca da ideia de modernidade, ordem do progresso. Onde os EUA e suas forças aliadas burguesas nacionais não conseguiram emplacar sua hegemonia no continente e o avanço comunista se desdobrava, a nação do Norte passou a protagonizar o aquecimento de sua coerção militar sobre o Sul.

 

As ditaduras militares no continente expressavam este duplo movimento: de um lado, a necessidade de controle econômico, político e social do continente latino pelos EUA, como território de projeção direta de seus múltiplos poderes; de outro lado, a ofensiva das revoluções, em especial a cubana e a nicaraguense, em pleno processo de radicalização das funções sociais dos Estados, a partir da perspectiva de cada força geopolítica mundial.

 

Entre 1945 e 1989, América Latina vivenciou tanto a nova ofensiva do capital financeiro, como a tentativa de freio a dita hegemonia pelo socialismo real. Mas em 1989, a partir do impacto mundial das novas tecnológicas, da concentração-centralização do capital e das novas disputas territoriais, a destruição do muro de Berlim torna-se um símbolo de projeção do poder dos EUA e de seus leais representantes mundiais, frente a todo tipo de ofensiva vermelha. A TV anunciava o fim do comunismo e o início de uma nova fase ditada pela invasiva e permanente força da automação no cotidiano da sociedade mundial.

 

Invasão do Panamá


Em 1989, com a escusa de “limpeza” ética e moral contra o narcotráfico, os EUA deflagram uma ofensiva coercitiva de ocupação do Panamá, com o objetivo de capturar um importante protagonista do suposto crime organizado mundial: Manuel Antonio Noriega. Desta justificativa produzida intencionalmente como forma de territorialização não somente de suas bases militares, mas de sua cadeia logística sobre o território, os EUA foram responsáveis por uma operação que culminou em mais de 3500 mortos segundo o relatório dos direitos humanos do Panamá de 1990. Em nome da defesa dos direitos humanos, os EUA enraizaram seu poder pelo continente e transformaram o Panamá em um dos principais pontos de referência logística de sua ação de exportar e importar para o mundo.

 

Eleições diretas no Brasil


Demarcadas por um processo de implementações importantes de reformas constitucionais em 1988, estas primeiras eleições se apresentavam como a disputa entre dois projetos societários: pela direita, a modernidade dos EUA e do consenso de Washington expressa por Collor, pela esquerda, o nacional-desenvolvimentismo revigorado de Brizola, e a luta operário-camponesa demarcada por Lula. Foi a primeira vez na história da política brasileira que a mídia aparecia de forma explícita com seu papel protagonista na construção de imagens midiáticas capazes de eleger, ou não, um candidato.

 

Bastam segundos para disseminar como verdades imagens, narrativas e estereótipos intencionalmente produzidos. As eleições no Brasil encarnaram a polaridade histórica vivida em todo o mundo entre 1945-1989, como se reproduzissem posições que haviam ficado no passado. A ditadura tornou pequenos capitais nacionais midiáticos em gigantes conglomerados financeiros bancados pelo Estado nacional. Os meios de comunicação deixavam de ser apenas veículos do poder internacional e local e passavam a encarnar o próprio poder do capital financeiro concentrado e centralizado em poucas mãos. Cabe destacar as novelas do ano de 1989, O salvador da Pátria, em que um matuto personagem se transforma em presidente da república e Vale tudo, em que as ideias da ética e da moral se apresentavam como princípios a serem defendidos pela nascente democracia do país.

 

Foi contra a ofensiva capitalista que a Cuba socialista lutou ao longo de todo o período em que a comandou Fidel. A morte de Fidel é vendida pelo capital como o fim do socialismo. No entanto, as lutas de resistências e revoluções seguem vivas no continente. O que faz de seu legado um processo vivo e permanente. O exemplo cubano, com seus acertos e erros, deve nos provocar para o dever militante de lutar por uma sociedade justa e igualitária. Isto exige a crítica e a autocrítica como princípios da práxis. Lutar contra o capitalismo, denunciar suas desigualdades e violências estruturais e anunciar, enquanto se luta, outros projetos de poder necessários e possíveis, sem perder de vista os inúmeros desvios a serem corrigidos ao longo de nosso caminhar tático, que acumule para o horizonte socialista.

 

A história da América Latina é a das resistências e das revoluções contra a permanência dos golpes. Todo golpe carrega torturas sob as quais se estruturam violentas construções geracionais que precisam revigorar o horizonte revolucionário nas lutas sociais. Enquanto existirem muitos trabalhadores condicionados à superexploração pelos pouquíssimos gigantes que decidem como lucrar às custas destes muitos, haverá luta de classes. Isto permite que a tristeza com a morte do Fidel seja superada pela beleza cotidiana dos povos em luta, verdadeiros guardiães da resistência mundial. Ante a violência da dependência estrutural, somente a luta organizada da classe trabalhadora será capaz de criar processos societários para além do capital.

 

 

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Roberta Traspadini é professora do curso de Relações Internacionais da UNILA e da Escola Nacional Florestan Fernandes.

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