Correio da Cidadania

A Batalha de Gênova (6): a síndrome de Gênova

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O Correio da Cidadania republica a partir desta semana uma série análises de Gregório Maestri sobre a violenta repressão da polícia italiana aos protestos antiglobalização em Gênova (Itália), no encontro do G-8 realizado na cidade há 15 anos – entre 19 e 22 de julho de 2001 (e publicado à época dos acontecimentos). O autor elaborou suas análises, à época, a partir de uma incursão na história do país.

 

Revoltados, tristes, com um gosto amargo de derrota na boca, os manifestantes voltaram para casa. O estado de espírito reinante foi denominado de "síndrome de Gênova". Entretanto, entre os manifestantes, dominava a vontade de luta, não a lassidão. Logo, a batalha de Gênova torna-se a batalha de toda a Itália.

 

Por toda a Europa, explode vasto movimento de solidariedade com Carlo Giuliani, com os presos, com os agredidos, com os humilhados de Gênova. Apesar do calor e das férias, por mais de uma semana, centenas de encontros, reuniões, sit-in, transmissões de imagens etc. sucedem-se na Europa e nas pequenas e grandes cidades italianas.

 

De segunda-feira, 23 de julho, quarta-feira, manifestações convulsionaram o centro de Milão. Na maior, na praça Duomo, que reunia cem mil pessoas, o clima de emoção era indescritível. Milhares de visitantes concentraram-se nos centros sociais para expressar o desgosto e a revolta. Esses momentos de intenso sentimento político e humano são próximos daqueles vividos pela esquerda italiana nos míticos anos 1960 e 70.

 

Sobretudo na Itália, são pintados "grafites" e "tags" nos muros de edifícios públicos e privados que simbolizam o poder capitalista. Em Milão, centenas de jovens reunidos pelo centro social Bulk, de orientação anarquista, realizam enorme pintura em honra de Carlo na parede do prestigioso prédio da maior companhia elétrica italiana.

 

Indústria da informação

A população italiana destaca-se pelo consumo de informação. As televisões divulgam dezenas de jornais diários e mesmo as pequenas cidades possuem jornais e revistas. Dramatizados, os furos, polêmicas, notícias frescas alimentam incessantemente o milionário mercado midiático.

 

Essa verdadeira indústria consome a informação. Assuntos explosivos ganham as manchetes e desaparecem após vinte e quatro horas. No caso de Gênova, temia-se – e esperava-se – que os fatos fossem logo abandonados pela mídia, sobretudo devido ao período de férias, quando boa parte da população viaja para o mar.

 

Mais de quinze dias após a Sexta-Feira Negra, jornais, rádios, revistas e televisões continuavam comentando os acontecimentos. Cada dia apareciam novos elementos, fotos revoltantes, revelações clamorosas, histórias inacreditáveis.

 

Os manifestantes maltratados foram dezenas de milhares. Os que filmaram e fotografaram os fatos, também. Pela primeira vez na história, tanta informação iconográfica e escrita circula, graças aos meios alternativos de informação, pondo em xeque, parcialmente, o monopólio da mídia.

 

Com a mão na botija

A imprensa nacional e mundial não para de revelar imagens e depoimentos chocantes. Num dos últimos filmes veiculados, aparece Alessandro Perugini, vice-chefe da polícia de Gênova, não uniformizado – é um simples funcionário –, chutando, com quatro policiais, repetidamente, um manifestante, rendido.

 

Com a face transfigurada por um rito de prazer, Perugini bate com o joelho, várias vezes, no rosto do manifestante vergado, semicego por ferimento no olho. Enquanto o manifestante chora de dor, o vice-chefe da polícia chama outros policiais para participarem da festa. O jovem tentara proteger amigo batido sem motivo. Os dois estavam sentados, conversando, quando a polícia atacou.

 

As manifestações contra as violências sofrem salto de qualidade em relação às de Gênova. A neutralidade-dissensão da Oliveira da mobilização anti-G8 causou perplexidade e indignação. A credibilidade de sua acusação de que o Partido Refundação Comunista fora o responsável pela vitória eleitoral de Berlusconi foi corroída pela sua ausência no combate real à direita.

 

O direito de dissensão é tido como valor inalienável pela Itália democrática. Boa parte da juventude e da classe média considerava os direitos democráticos constitucionais como conquistas indiscutíveis. Os acontecimentos de Gênova demonstram a fragilidade das liberdades democráticas diante da ofensiva da direita.

 

Contra ou a favor

A população italiana e a socialdemocracia dividem-se entre o apoio à ação da polícia e do governo e a defesa dos manifestantes e das liberdades democráticas. A divisão agrava-se pela defesa da direita de uma ação que os próprios fatos explicitam o conteúdo.

 

O PRC e os Verdes exigiram a demissão do ministro Scajola e a formação de comissão parlamentar de inquérito. Procurando acordo com a "Casa das liberdades", Oliveira defendeu a ação da polícia em nome do "respeito às instituições" e aceitou a substituição da CPI por Pesquisa Parlamentar sem efeito jurídico e de curta duração – que se encerraria em 20 de novembro.

 

O PRC defende que, em Gênova, não ocorreram "erros" e "excessos", mas "crimes" de Estado, e mantém a exigência de CPI. O comportamento da Oliveira deve-se também à vontade de elidir sua responsabilidade na organização do aparato repressivo. Berlusconi lembra que seu ministro do Interior apenas implementou o plano de defesa herdado do governo findo.

 

O vice-primeiro-ministro Fini, líder de Aliança Nacional, envolvido no passado com o terrorismo negro, justifica a morte do jovem genovês como "caso de legítima defesa". Bertinotti, secretário-geral do PRC, definiu na câmara a "invasão da Escola Diaz" como "violação aos direitos constitucionais mínimos" e aproximou os fatos ao "Chile" da ditadura militar.

 

Perigosa impunidade

O GSF organizou uma rede de trezentos advogados voluntários para coordenar os processos contra a polícia e a defesa dos manifestantes. Em reuniões e através da mídia, procuram-se testemunhas que apoiassem processos contra os atos ilegais. Choveram centenas de denúncias de sevícias, ofensas e prisões ilegais.

 

A divulgação das violências contribuiu para que a grande maioria dos detidos fosse libertada por prisão ilegal, fragilizando a demagogia do governo. Porém, 51 manifestantes ainda encontravam-se presos. Oito processos, cinco contra a polícia, foram abertos pelos advogados do GSF. Apesar das fotos, filmes e declarações, nenhum policial foi denunciado e sequer um processo foi aberto contra os carabineiros (equivalente da polícia militar), que teve comportamento igual ou pior ao da polícia civil.

 

Um dos processos iniciados pelos advogados do GSF é sobre as relações entre a polícia e os Blacks Blocks. Ele é apoiado por documentos e por centenas de telefonemas de genoveses pedindo inutilmente a intervenção das forças policiais contra atos vandálicos.

 

A respeitada revista Diário exigiu oficialmente que os vértices da Polícia identifiquem o jovem dos Blocos Negros que abraçou alegremente amigos policiais. As nítidas imagens do filme foram transmitidas por várias televisões do mundo. Por ter mostrado essas e outras imagens, o governo pediu a demissão de jornalistas da Rai 3, um dos três canais estatais.

 

Leia também:


A Batalha de Gênova (5): Escola Diaz, a repressão a frio

 

A Batalha de Gênova (4): 20 de julho – a sexta-feira negra

 

A Batalha de Gênova (3): A antiglobalização em branco, vermelho e negro

 

A Batalha de Gênova (2): Os senhores da guerra e o povo antiglobalização

 

A Batalha de Gênova (1): uma cidade-símbolo da globalização

 

Gregório Maestri, arquiteto, é belga, italiano e brasileiro.

Leia a publicação original em nossa edição 263.

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