Correio da Cidadania

A notícia viva em Mytilene

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Para a grande mídia brasileira, a crise dos refugiados na Europa parece já ter acabado. Assim, tudo já teria voltado ao normal, todos já estariam alocados em seus destinos e, talvez por isso, o tema que dominou os noticiários internacionais nas últimas semanas tenha praticamente desaparecido das primeiras páginas. O tradicional motivo é o “desgaste da notícia”.

 

O jornalismo não poderia ficar preso a um único tema por tanto tempo. O que tinha de ser explorado já foi e a avalanche de cliques e audiência pode ter se dissipado. Só merece notícia alguma nova tragédia. Um novo naufrágio ou uma nova foto de corpo estendido na areia, principalmente em casos de corpos brancos. Realidades vivas passam a ser camufladas e desconsideradas como temas relevantes.

 

Enquanto isso, milhares seguem fazendo uma travessia bem sucedida diariamente à ilha de Lesvos e outras ilhas gregas. A pequena mochila escolar é o máximo que podem trazer. Se tentarem embarcar com algo a mais, os traficantes podem jogar tudo no mar, independentemente do que esteja dentro. “Eles têm a arma. Ele que mandam. Não podemos fazer nada”, diz o sírio Alaa Hindi, 32.

 

No barco, Alaa passou a tomar conta de dois irmãos de 16 e 11 anos que fazem a viagem sozinhos, sem falar nada de inglês. Construtor de interiores de residências, ele quer subir rapidamente ao norte e já percebeu as novas dificuldades. Seu passaporte todo carimbado por idas e vindas a trabalho ao Líbano e Irã já não lhe serve mais. Brinca que pode jogá-lo no mar. Não sabe como vai trocar o dinheiro no caminho nos países que não usam o Euro.

 

“Uma hora eles vêm com essa ideia de tirar o Assad, financiando terroristas. Agora que a gente está nessa situação, eles dificultam nossa entrada. Não entendo a Europa”, reclama. “Meu amigo, 90% dos países árabes não têm democracia! O que nós precisamos é de paz e ter a certeza, quando nossos familiares saem de casa, de que eles vão voltar”, explica sobre mais uma mal sucedida tentativa de “implantação da democracia” financiada e patrocinada pela OTAN.

 

Ao seu lado, um jovem de 16 anos mostra um grande corte de faca recebido na perna quando flagrado fumando pelo Daesh (Estado Islâmico). “Ele deu sorte que não cortaram seus dedos, a perna ou a cabeça”, sorriu, estranhando meu espanto. “Cortar dedos por fumar é muito normal! E cabeça, então, eles cortam e jogam futebol com elas”, conclui, com movimentos de embaixadinhas.

 

Já no acampamento, uma sorridente menina de uns oito anos corre para dizer, em árabe e com movimentos de nado, que é uma grande nadadora. Com os ombros, diz que não tinha outra opção. Famílias inteiras se alojam nos acampamentos, nas calçadas e nos parques da ilha. Às vezes em barracas, às vezes no chão. Todos perguntam ansiosamente por informações sobre as fronteiras e melhores caminhos a seguir. As atualizações, porém, se tornaram mais difíceis nos últimos dias, com menor atenção do noticiário internacional.

 

A curda-síria Kleshan Ali, 24, recém-formada em engenharia elétrica na Universidade de Aleppo, espera chegar à Alemanha, onde pretende seguir os estudos e virar professora. Junto com as três famílias que a acompanha, pretende viajar entre cinco e 10 dias. “A gente não consegue ficar nessa situação, com todas essas crianças, muito mais do que esse tempo”, diz, bastante apreensiva. No primeiro dia no acampamento Kara Tepe, em Mytilene, dormiram no chão e no frio. No dia seguinte, encontraram uma barraca vazia e compraram os bilhetes para Atenas para o dia posterior.

 

“Em todo esse tempo, a guerra não tinha chegado à minha universidade. Agora, ficou impossível”, diz sobre o motivo de ter fugido da Síria só agora. “Todos os meus amigos partiram e muitos já estão estudando alemão por lá”. Enquanto isso, seu cunhado, chefe de cozinha e fã do futebol brasileiro, explica orgulhosamente sobre o Curdistão e a forma como se autogovernam, perguntando, também, sobre a possibilidade de acolhimento em todos os países possíveis, inclusive no Brasil.

 

Não muito longe dali, outras milhares de pessoas, na maioria afegãos, tomam banho de mar e fazem todas as necessidades onde lhes parece viável. Às vezes no próprio mar, às vezes no parque. Poucos nos sujos banheiros dos acampamentos. A alimentação e hidratação são pagas, como para qualquer turista. Às vezes, porém, surgem garrafinhas de água, frangos frios e comidas estranhas pelos acampamentos, distribuídos por ONGs. Alguns desfrutam.

 

A pressa é gigante, mas ao mesmo tempo inexistente. Tempo há de sobra para esperar pela balsa que leva a maioria para Atenas e alguns para Karvala, já ao norte da Grécia. Assim, eles sentem uma longa conversa como um grande ato voluntário e ficam à vontade para mostrar cicatrizes de punições que sofreram do Daesh na Síria ou do Taleban, no Afeganistão.

 

Jovens afegãos até fazem uma própria entrevista com um africano que passa pelo porto. “Estou indo à Alemanha para estudar Relações Internacionais e voltar à Somália para poder acabar com a guerra que acontece por lá. Isso é um desastre”, afirmou o somaliano, com um inglês perfeito e certeza de sucesso, antes de seu amigo levá-lo rapidamente a outro local.

 

Todos fazem questão de explicar todos os tipos de sofrimentos à base de pouco inglês, muita mímica e constantes sorrisos. Um sírio, por exemplo, consegue dizer, desta forma, que perdeu o bebê e a mulher em uma queda de uma bomba na Síria e que fez uma vaquinha com muitos amigos e familiares para pagar os cerca de 1000 euros da travessia. Exalta-se bastante, porém, para falar de outra bomba. Desta vez, do pé esquerdo do Roberto Carlos, da seleção brasileira.

 

Entre todos, há uma onomatopeia unânime, presente em qualquer diálogo, a descrever muito bem a realidade de seus países: “Don’t go to ‘Siria’! There it’s boom, boom, boom”. “Don’t go to Afeghanistan! There it’s boom, boom, boom”. “Don’t go to Irak. There it’s boom, boom, boom” (Não vão para a Síria, Afeganistão ou Iraque. Lá tem bombas).

 

Os iraquianos Ayden e Zaid ainda vão além e apontam para o carro, repetindo a expressão de explosão e explicando que muitos morrem nestes casos. Ayden é fã de Neymar e Alexandre Pato. Enquanto Zaid sorri bastante ao falar sobre Ronaldo. Talvez todos perderiam o encanto se soubessem com detalhes a diferença entre o interesse brasileiro sobre as notícias destes “ídolos” e as dos carros-bomba que matam dezenas no Iraque frequentemente.

 

Eles ainda contam sorridentes sobre como fizeram uma travessia própria, tirando água de dentro do barco apenas absorvendo e torcendo seus casacos. O orgulho é grande, também, ao dizer que chegaram com o GPS do Iphone diretamente em Mytelene, mais ao sul, onde não há controle policial, enquanto a maioria dos barcos chega a 80 km ao norte da cidade.

 

Ambos poderiam muito bem dizer que têm entre 30 e 35 anos, mas têm 23 e 21. O mesmo acontece com diversos afegãos. São dezenas com aparência entre 30 a 40 anos que afirmam ter entre 16 e 25 anos. Os sírios, entretanto, têm uma aparência mais relacionada à idade, de acordo com um observador ocidental. Marcas evidentes de anos de guerra.

 

A guerra na Síria é mais recente e, por isso, chama mais atenção dos políticos e da mídia, facilitando as travessias de sua população e pedidos de asilo, com mais estudos na bagagem. Porém, sua manutenção parece ser longa, com potencial de chegar ao tempo em que as vidas afegãs e iraquianas já sofrem sem causar mais qualquer sentimento de culpa aos países ocidentais.

 

Assim, com a política de guerra atual da cúpula destes países, os que não morrerem, envelhecerão precocemente. Os poucos que tiverem asilo, talvez consigam uma vida melhor. Os que não tiverem, talvez retornem à mídia tradicional se sofrerem qualquer tragédia. Se a tragédia acontecer em uma possível volta a seus países, porém, voltarão a ser uma mísera unidade em meio a números cada vez menos importantes.

 

 

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Tsipras está destinado a fracassar: os verdadeiros vencedores na Grécia são os agiotas - artigo de Yanis Varoufakis, ex-ministro da Fazenda da Grécia.

 

 

Fernando Moura é jornalista

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