Refugiados: toda a miséria do mundo

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Daniel Gatti
15/09/2015

 

 

Que imagem escolher para mostrar o tremendo drama que se está vivendo agora mesmo na Europa? A do menino sírio morto em um praia turca? A de uma mãe, também síria, agarrada ao seu bebê na plataforma de um trem em Budapeste, negando-se a ir a um campo ao qual policiais húngaros a conduzem? Ou aquela de junho, feita em uma praia na fronteira entre a França e a Itália, que mostra refugiados cobertos dos pés à cabeça com umas coberturas metálicas para driblar a chuva, enquanto perambulavam por umas pedras? Ou a dos corpos flutuando em círculo no Mediterrâneo? O cru ou o sugerido? A foto do bebê morto é mais forte do que a das roupas expostas das outras 11 pessoas que se afogaram com ele?

 

As redações de todo o mundo estão discutem sobre ética profissional cada vez que é colocada uma catástrofe desse tipo. Uma imagem vale mais do que mil palavras? Sim, dizia Nick Ut, o fotógrafo da Associated Press que captou aquela icônica menina vietnamita correndo pelada enquanto era queimada pelo napalm ianque. A guerra do Vietnã mudou seu rumo graças a essa imagem, pensava Ut.

 

Mudará o destino dos refugiados sírios, eritreus, kosovares e paquistaneses, após a publicação da foto deste menino sírio afogado na praia de Bodrum, na Turquia? Nada é menos certo, mas a reação de Manuel Valls, o robótico primeiro-ministro francês, que não mexeu sequer um palito enquanto expulsavam os ciganos a patadas, levanta uma piscadela de esperança de que o choque das imagens produza algum efeito. “Havia um nome, Aylan Kurdi. Urgência de reagir. Urgência de uma mobilização europeia”, escreveu Valls, em 120 caracteres.

 

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A história – mais que a foto de seu cadáver, ou a história e a foto de seu cadáver – de Aylan Kurdi, seu irmão Galip de 5 anos, e sua mãe, e de todos os afogados no mar Egeu, além de seu pai Abdulá, o único sobrevivente de uma família, é em todo caso representativa de muitas das dimensões deste drama.

 

Os Kurdi são originários de Kobane, a cidade do Curdistão sírio que não somente se converteu em símbolo de resistência ao Estado Islâmico, mas num eixo de uma experiência socialista. Kobane foi bombardeada e assediada pelos jihadistas, mas também pela aviação turca. De sua cidade reduzida em parte a ruínas, os Kurdi fugiram para a vizinha Turquia. Esperavam seguir viagem até o Canadá, onde tinham família, mas deveriam esperar pelo visto – que não veio – em um acampamento.

 

As Nações Unidas não os reconheciam como refugiados, o Canadá negou seu visto e os turcos, como a muitos outros curdos, os maltratavam. Assim, a família Kurdi agenciou um barquinho, buscando meios de chegar à Grécia. É preciso estar muito desesperado para entrar em uma embarcação precária buscando cruzar o Mediterrâneo, mas os Kurdi o fizeram, junto com outras 16 pessoas. Naufragaram pouco depois de zarpar. Até que apareceu a foto de Aylan e lhe puseram o devido nome Kurdi; os afogados foram apenas partes de títulos do noticiário nestes dias: “outros 12 sírios se afogam na costa turca”.

 

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Vale entrar até pelo Ártico. Centenas de milhares de sírios que tentam escapar de uma guerra que estão longe de haver gerado, centenas de milhares de afegãos que tentam escapar de um caos que estão longe de ter gerado, as centenas de milhares de iraquianos ou líbios, que também tentam fugir de seus países desmembrados, fazem o que faria qualquer um em sua situação: buscar chegar a um lugar em que a vida seja menos horrorosa. Ao menos a princípio.

 

Para isso, fazem o que também faria qualquer um na sua situação: ignoram as fronteiras, as destroçam. Muitas vezes serão eles os destroçados: ficarão no limbo entre um muro e outro, de cimento ou arame, que a Europa levantou para eles. Se afogarão nesse aterro humano em que se converteu o Mediterrâneo; cairão do trem de aterrissagem de algum avião. Se conseguirem saltar os muros ou atravessar os mares, terminarão asfixiados em algum caminhão frigorífico.

 

Mas seguirão batendo na porta até que se abram todas as fronteiras. A da Grécia com a Macedônia; da Turquia com a Grécia; da Itália com a Eslovênia; da Itália com a França; da Macedônia com o Kosovo; da Sérvia com a Hungria; da Macedônia com a Bulgária; da Bulgária com a Sérvia; da Hungria com a Áustria; debaixo da terra, pelo túnel da Mancha, tratarão de passar da França para a Inglaterra. E seguirão fluindo a pé ou em embarcações de mala e cuia para a Grécia e a Itália.

 

Nas últimas semanas, somou-se à lista outro passo: o do Ártico. Longe demais (a mais de 4 mil quilômetros de Damasco, por exemplo) e gelada, a fronteira entre Rússia e Noruega – uma das poucas fronteiras diretas entre leste e oeste durante a guerra fria – se converteu agora em um novo ponto de entrada na Europa, sobretudo para os sírios.

 

Não são infinitas as fronteiras e estão cada vez mais cercadas e vigiadas, “mas algumas seguem sendo porosas e até nas mais supostamente impenetráveis é possível encontrar formas de burlar e atravessar”, diz Estrella Galán, secretária geral da Comissão Espanhola de Ajuda ao Refugiado (Cear). “Essa é a lei dos movimentos de massa da população: quando em um lado há guerras e miséria e, em outro, se supõe que há prosperidade, trata-se de passar de um lado ao outro. O que já fizeram todos os povos do mundo, incluindo os europeus que hoje bloqueiam a entrada dos seus territórios”.

 

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Ao ex-primeiro-ministro da França Michal Rocard se atribui a frase que diversos governantes de toda a Europa logo se fizeram, confrontados com a chegada massiva de refugiados e imigrantes às suas fronteiras: “Não podemos receber toda a miséria do mundo”. Corriam os anos 90 e Rocard pretendia fazer passar a ideia de que a Europa era a zona do planeta que mais acolhia imigrantes e refugiados, e mais do que isso não se poderia exigir dela. A ideia em boa parte foi impulsionada e transformou-se em senso comum. Nas últimas semanas outro político francês, o direitista Alain Juppé, retomou a frase rocardiana: “a Europa não pode seguir acolhendo toda a miséria do mundo”, repetiu.

 

O problema com a frase está longe, muito longe, de refletir a realidade. Nem a dos anos 90, nem a dos tempos atuais. Segundo informes das Nações Unidas de junho passado, citados pelo diário Liberátion, a Turquia, o Paquistão e o Líbano recebem, cada um deles, mais refugiados que os 28 países da União Européia juntos: quase 1,6 milhão o primeiro, algo mais que 1,5 milhão o segundo e um 1,15 mil o terceiro; na União Europeia, somam 1.090.000, não muito mais que no Irã (982 mil). Dos 14,4 milhões de refugiados no mundo inteiro, que contabilizou o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) em 2014, cerca de 50% estão na Ásia, e mais de 4 milhões na África.

 

A guerra no Afeganistão obrigou a saída de 2,6 milhões de pessoas, que foram repartidas fundamentalmente entre Paquistão e Irã. No Líbano, os refugiados representam um terço da população total. Dos 4 milhões de sírios desabrigados pela guerra desde 2011, a grande maioria foi parar nos países vizinhos, sobretudo na Turquia, onde muitos, de origem curda, não recebem nenhum tipo de ajuda e a vida se faz impossível. Uns 2 mil por dia tentam chegar à Grécia, como pretenderam Aylan, seu irmão e seus pais.

 

“Os europeus não podem se fazer de surpreendidos de que muitos dos que vivem mal na Turquia ou no Líbano e pretendam ir embora”, disse a deputada da Esquerda Unitária Europeia, Mariana Albiol. “Estes refugiados passam anos em acampamentos fundindo-se cada vez mais à miséria, ante a indiferença total da chamada comunidade internacional, que lhes nega um visto ainda que reúnam as condições necessárias para obtenção. A Europa não encara os problemas como deveria, na sua origem. Os toma de raspão, quando batem à sua porta, mas não vê que nas guerras das quais essa gente foge, a UE tem uma grande responsabilidade; não vê que contribuiu na divisão da Líbia, da Síria e do Iraque: não vê, ou se faz de cega, que se estes países, que foram suas colônias, estão destroçados, alguma responsabilidade ela também tem. A Europa por um lado se fecha e se faz de desentendida e, por outro, carrega sua culpa sobre terceiros. A culpa dos mortos no Mediterrâneo seria, assim, dos traficantes de pessoas, e na Europa ventila-se bombardear os barcos antes que zarpem. Claro que estes tipos – os traficantes de pessoas – são uns sacripantas, criminosos, mas é como o atacar o sintoma, não a causa. Alem de imoral, inútil”, disse Estrella Galán ao diário espanhol El Público.

 

Máfias

 

São as políticas europeias as que alimentam as máfias de traficantes de pessoas que estão enriquecendo com esse drama. Se os refugiados caem nas mãos dessa máfia é porque para eles são fechadas todas as outras portas legais nas quais poderiam perfeitamente bater. Se lançam-se ao mar, correndo os riscos que correm (somente em 2015 se afogaram aproximadamente 2500 pessoas no Mediterrâneo, e mais de 22500 em 15 anos), é porque não lhes resta outra alternativa.

 

“É preciso que haja uma mudança imediata no enfoque das políticas migratórias e de asilo, que estão centradas unicamente na vigilância e no controle de fronteiras”, propõe Galán. Miguel Urbán, eurodeputado do partido espanhol Podemos, que esta semana viajou à Sérvia e Macedônia para acompanhar os grupos de refugiados em sua travessia, disse que em cinco anos a UE gastou mais de 1,8 bilhão de euros para blindar suas fronteiras e menos de 700 milhões para prestar assistência aos refugiados.

 

“A suposta idéia de respeito aos direitos humanos e acolhida que sempre defendeu a União Europeia é pura maquiagem, borrada pelas lágrimas de milhares de imigrantes e refugiados que comprovam como o que a Europa lhes dizia era mentira. Com seus tratados, vendas de armas e geoestratégia, a UE é cúmplice das guerras que ocasionaram estes movimentos migratórios”, declarou Urbán, que integra o Anticapitalistas, o setor mais à esquerda do Podemos. “Ganharam dinheiro aos montes graças à política migratória da União”, conclui.

 

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Os próprios traficantes confirmam. Corina Tulbura, enviada especial do El Público à fronteira turco-búlgara, entrevistou um que disse chamar-se Ahmed e lhes explicou que o seu trabalho consiste em fazer com que os refugiados entrem em algum país da UE onde possam pedir asilo. “Necessitam alguém que os guie pelo trajeto, por bosques e vilarejos desconhecidos. Fugindo da polícia, não podem ir sozinhos”, explica Ahmed, que garante estar ali para ajudá-los. “A UE os chama de criminosos, mas como os refugiados só dão de cara com grades, e se veem obrigados a nos contatar”. Um pouco cínico, não é mesmo? Ahmed se considera um traficante barato. Cobra sim, afinal, “é o meu trabalho”, mas menos que os outros. E além de tudo também é sírio, passou por algo similar uns meses antes e tem família “lá”, que também quer fugir.

 

“Há traficantes e traficantes. Alguns são verdadeiros criminosos. Uns cobram menos, e outros são caríssimos. Mas na estrada ninguém nunca está seguro porque cada passo está controlado por distintos grupos. É como se contratasse uma agência de viagens, e o preço depende do pacote: a rota inteira da Síria até a Alemanha vale mais de 10 mil euros; da Turquia até a Bulgária pode sair 1500 ou 2 mil euros. Também há distintos preços em função de como se passa a fronteira: em caminhão ou caminhando duas horas, quatros horas, dois dias. Por mar, o caminho mais inseguro, alguns traficantes chegaram a exigir cerca de 6 mil euros e agrediram homens ou violentaram mulheres que tentaram subir a bordo de um barco sem pagar, pagando menos ou pretendendo colocar uma criança grátis. O problema dos traficantes de refugiados é como qualquer outro mercado negro: prospera onde há uma proibição prévia. O problema neste caso é que estamos falando de vidas”, disse uma francesa do Médicos Sem Fronteiras.

 

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Kinan Masalemehi é um adolescente sírio que chegou à Hungria com sua irmã mais velha. Esta semana ele foi entrevistado em Budapeste pelo canal árabe Al Jazeera, e a entrevista, de apenas alguns segundos, se converteu em viral nas redes sociais. “Não queremos vir à Europa. Apenas parem a guerra na Síria”, disse Kinan.

 

A pior

 

Ainda que não seja verdade que a Europa capte toda a miséria do mundo, se for, ela está confrontada com sua pior crise humanitária em décadas. Nem as que se formaram com o desmembramento da ex-URSS no final dos anos 80 e começo dos 90, nem a carnificina que foi a guerra na ex-Iugoslávia, nem o próprio genocídio ruandês de 1994, provocaram uma fuga em massa tão grande na direção da UE como a gerada pela guerra na Síria, a continuação dos enfrentamentos no Afeganistão e no Paquistão, as questões mal resolvidas no Iraque e na Líbia.

 

Somente a Alemanha prevê receber este ano umas 800 mil demandas de asilo, quatro vezes mais do que no ano anterior. Segundo a Eurostat, o escritório europeu de estatísticas, em 2014 as solicitações de refúgio nos 28 países da União não haviam alcançado as 360 mil, das quais 162 mil foram aceitas. Para este ano, superariam 1 milhão.

 

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É preciso falar de refugiados, não de imigrantes, pensa Estrella Galán. “Não estamos perante uma crise migratória. Na medida em que se confundem refugiados com imigrantes, os Estados justificam o não cumprimento dos seus compromissos, e nesse caso ele está diante de um drama humanitário de refugiados, causado fundamentalmente por guerras e perseguições políticas”, diz a secretária geral do Cear. “São pessoas que estão fugindo da Síria, da Eritréia e do Afeganistão, de conflitos armados muito violentos nos quais suas vidas correm perigo”.

 

Para Galán, ao menos 60% dos que tocam, hoje, as portas da Europa são pessoas vulneráveis, suscetíveis de proteção internacional e a União deveria se ver obrigada a recebê-los em função dos tratados internacionais que já firmou. Não é que a fome e a miséria não deem direitos a quem busca ser recebido em outro país. “Também, por suposto, vulneram direitos básicos. Mas não podemos confundir as diferentes mensagens, porque dessa forma estaríamos fazendo o jogo daqueles que dizem que se trata de um drama migratório que deve ser remediado segundo as leis migratórias, muito mais restritivas do que as que regem o direito ao asilo”.

 

Ao falar dessas massas de aspirantes ao refúgio como “imigrantes ilegais”, os responsáveis europeus “se colocam em um plano que lhes permite evadir responsabilidades”, coincide Miguel Urbán. A um solicitante de asilo não se pode exigir que tenha um contrato de trabalho prévio e garantido, como se prepara para exigir o Reino Unido aos sírios, eritreus e afegãos que estão chegando às suas fronteiras vindos de outros países a UE. O governo de David Cameron tem na gaveta uma reforma de leis migratórias que significa, na prática, uma violação dos acordos de Schengen, que desde 1995 asseguram a livre circulação de pessoas entre os 26 países que os assinaram.

 

A França se nega a deixar entrar em seu território os estrangeiros que se amontoam na fronteira com a Itália, em Ventimiglia. São uns poucos milhares, e nem sequer querem se estabelecer na França: pretendem utilizá-la como trampolim para o norte, como país de trânsito. É curioso que Estados que “demonstraram sua incapacidade de lutar contra os efeitos desestabilizadores da livre circulação de capitais tomem como objeto específico o controle desta outra circulação, a das pessoas, e como objetivo se apoiam na segurança nacional supostamente ameaçada por estes perigosos estrangeiros, que ao final poderão comovê-los com seu drama”, escreve o filósofo francês Jacques Rancièrre.

 

Segundo Rancièrre, é para bem próprio deste momento civilizatório que se entre em discussões entre refugiados e imigrantes, como se a fome não tivesse também raízes políticas. As boas intenções, pensa, às vezes fazem com que não nos demos conta de alguns horrores.

 

Não pode, não pode, não pode

 

Todos – os que se lançam ao mar, os que chegam por terra, os que cruzam por túnel – aspiram desembarcar na Alemanha, na Suécia ou no Reino Unido. Os países do Mediterrâneo não são os destinos mais apetecidos, ainda que sejam os que mais gente recebem. As cifras mudam – aumentam – toda semana, dia a dia. A ONU estimou na semana passada em 330 mil as pessoas que atravessaram, desde janeiro, o Canal da Sicília: algo mais que 200 mil chegaram à Grécia e algo mais que 120 mil à Itália. Tampouco são apetecidos como destino final os países ex-socialistas do leste, mas são zonas de trânsito inevitáveis no caminho por terra até o norte.

 

Não há política comum na Europa para tratar o tema. Há algumas semanas a Comissão Europeia quis fixar uma política para repartir proporcionalmente (segundo territórios e capacidade de acolhida) 40 mil pessoas entre os 28 integrantes da UE – 40 mil sobre uma massa de centenas de milhares que buscam chegar a um lugar onde há mais 500 milhões de habitantes – e todos correram para lados diferentes. A Espanha se fechou. A pediram para receber em torno de 4 mil, o que já seria uma mixaria, e não aceitou mais que a metade.

 

Germânicos

 

Não é que Angela Merkel seja insensível, no fundo ela é humana e capaz de comover-se. Comentou há algumas semanas para um jornalista da Tageszeitung, o jornal de esquerda berlinense, depois que a chefa do governo alemão fez chorar uma menina palestina cuja família tinha negada sua permanência em território alemão: “o que acontece é que os alemães são apegados às formalidades, aos papéis, a tratados e se não se enquadra nas regras tem de ir-se”, ironizou. De qualquer forma, a Alemanha é hoje o país que mais estrangeiros recebe e, junto da Suécia, o que parece estar disposto a acolher a maior quantidade. Não se sabe quantos, porque dependerá de como considere os que cheguem às suas fronteiras: se como demandantes de asilo ou como imigrantes comuns.

 

Os paquistaneses e os eritreus correm risco de não passarem nos filtros. Os sírios, ou alguns deles, talvez tenham mais sorte. Serão igualmente centenas de milhares os que esperarão nos refúgios alemães até que se decida sua sorte. Assim, é possível ver as duas caras da hegemonia europeia. Poderá acontecer como a dois sírios, um de 7 anos, outro de 15, aos quais um par de neonazistas, vestindo suásticas, urinaram sobre eles, literalmente, em um trem. Ou que seus refúgios sejam atacados (até agosto foram 200 os centros de acolhida incendiados), e até assassinados. Mas poderá acontecer também o outro lado: que uma parte da sociedade se mobilize em seu favor.

 

As redes formadas em Berlim e em outras cidades para auxiliar aos refugiados envolvem milhares de pessoas: lhes dão alimentos, roupas e pacotes de boas-vindas com cobertores, kits de higiene e frutas secas: tudo bastante alemão. Foram formados grupos nas redes sociais para reunir voluntários que possam recebê-los em suas casas (um deputado do partido de Merkel, jornalista da Tageszeitung, alojou cinco sírios). Há grupos de voluntários que se revezam para cozinhar nos refúgios, torcidas de futebol os convidam para assistir às partidas e assim por diante. Até mesmo o Bild, um diário sensacionalista vinculado às piores causas, mas o mais lido do país, diz que a “Europa lançou uma grande operação de ajuda”, titulando essa ajuda como manchete em seu portal: “O grande drama dos refugiados. Ajudemo-los”.

 

Os centros de refugiados alemães são os melhores da Europa, mas em alguns ainda faltam água, camas e carece-se de medicamentos. Também não estão totalmente coordenados com os serviços de saúde pública. Em outras palavras, ainda há muito a melhorar.

 

Dados

 

Mais de 400 mil pessoas pediram asilo em países europeus nos primeiros seis meses deste ano. Se as previsões forem cumpridas, 2015 superará largamente as 800 mil petições. Alemanha e Hungria somam mais da metade. Quatro de cada dez solicitantes na Europa o fizeram na Alemanha (170 mil) e, na Hungria, quase dois de cada dez (67 mil).

 

Solicitantes de asilo e refugiados não são a mesma coisa. Solicitantes são pessoas que registraram suas petições de proteção internacional, mas ainda não receberam uma resposta definitiva. Segundo os dados da Eurostat, há uma grande diferença entre os países europeus no que tange decidir favoravelmente uma solicitação. A Bulgária se situa na cabeça: nove de cada dez solicitações, em 2013 e 2014, em primeira instância, acabaram de forma positiva. Na Alemanha, as respostas positivas representaram 42% do total em 2013 e 43% em 2014. Na Hungria, apenas uma de cada dez solicitações é aceita.

 

A síria, em guerra desde 2011, encabeça o ranking de países com maior número de petições (200 mil), seguida do Kosovo (101 mil), território ainda em disputa, Afeganistão (82 mil), em guerra constante desde 2003, e Eritréia, que é acossada por um regime ditatorial no qual as violações de direitos humanos se multiplicam (Fonte: Eurostat através do Eldiario.es).

 

Cidades-refúgio

 

Manuela Carmena, Ada Colau, Kichi González, Pedro Santisteve, Xulio Ferreiro, Joseba Asiron e Joan Ribó são sete dos prefeitos eleitos na Espanha no último mês de maio através das listas da “Unidade Popular”, que aglutina vários partidos de esquerda. Carmena governa Madrid; Colau, Barcelona; González, Cádiz; Santisteve, Zaragoza; Ferreiro, A Coruña; Ribó é o prefeito de Valencia; e Asiron governa a cidade basca de Irún. Os sete fizeram um acordo na semana passada para, segundo eles mesmos, amenizar o drama dos refugiados. “Queremos cidades comprometidas com os direitos humanos e a vida, cidades das quais nos sintamos orgulhosos”, discursou a prefeita de Barcelona.

 

Para Colau, que durante sua vida foi militante social e construiu em sua cidade a Plataforma de Afetados pela Hipoteca, uma associação que resiste aos despejos, a atitude do governo de Mariano Rajoy dá nojo. “Pechinchar para receber refugiados é vergonhoso. A Espanha ficou para trás na UE, sendo que é mais rica que muito países, como a Grécia, que tem de fazer frente, com muito pouca ajuda exterior, a desembarques massivos de pessoas”, criticou Ada Colau. Se a Espanha tivesse aceitado os 4 mil refugiados que lhe propôs acolher a Comissão Europeia e os repartisse proporcionalmente pelo seu território, Madrid receberia 800 pessoas e Barcelona pouco mais de 500. “O que é isso? Nada. Uma ínfima gota de água. O que o governo do Estado não quer fazer, nossas cidades tentarão resolver na medida do possível”, completou Colau.

 

Alfred Bosch, porta-voz da prefeitura de Barcelona, lembrou que há 20 anos, durante a guerra na ex-Iugoslávia, a capital catalã serviu de asilo para uma enorme quantidade de bósnios. “O drama dos refugiados é uma questão de direitos humanos que não pode deixar impassível uma cidade diversa e acolhedora como Madrid”, declarou, por sua vez, Manuela Carmena, prefeita da capital espanhola.

 

Esta semana, em nova reunião, os prefeitos citados, junto a outros, discutirão novos pontos em comum para por estas políticas públicas em prática. Carmena anunciou no final de agosto que a cidade de Madrid destinará 10 milhões de euros para ajudas a refugiados, tais como alimentação e moradia. A comunidade valenciana, toda governada por uma lista da Unidade Popular, disse que se declarará “comunidade acolhedora” e “corredor humanitário” e que está disposta a receber, sozinha, 1500 refugiados.

 

 

 

 

Daniel Gatti é jornalista uruguaio e editor do site Brecha.

Texto originalmente publicado no site “Brecha”, do Uruguai.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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