Correio da Cidadania

A “chilenização” e a “nacionalização pactuada” de Frei Montalva

0
0
0
s2sdefault

 

 

Em 1964, Eduardo Frei Montalva, como candidato e depois como presidente, rejeita a proposta da esquerda de nacionalizar a grande mineração de cobre. Replica que o país carece de capacidades técnicas e financeiras e insinua que tal medida poderia provocar reações de Washington, semelhantes ao bloqueio a Cuba. Como alternativa propõe a associação entre o Estado e as multinacionais.

 

Na realidade, a joint venture foi sugerida pela própria empresa Anaconda Cooper co, política praticada em outros países (1). A associação produziu magros resultados para o Chile e foi, sem dúvida, uma oportunidade perdida.

 

As importantes reservas de cobre chilenos, estimadas em um quinto das reservas mundiais, já foram exploradas no século 19: em 1869, o Chile era o primeiro produtor, com 51.800 toneladas, 60% do consumo mundial. Mas a falta de esforço da oligarquia fez retroceder a 27.715 toneladas em 1905 (5,5%).

 

A oportunidade é aproveitada pela Braden Cooper co. que adquiriu a El Teniente em 1905 e se transformou em 1916 na filial da Kennecott Copper co. A Chile Exploration co., propriedade da família Guggenheim, adquiriu Chuquicamata em 1912; a Andes Copper Minig, fundada também pelo engenheiro William Braden, compra a Potrerillos em 1913. E a Anaconda Cooper co. adquiriu ambas em 1923. Assim, a Kennecott e a Anaconda, com suas filiais, formam a “grande mineradora”, à qual se somaram a Exótica e Andina nos anos 1960. As multinacionais aumentam a produção até alcançar quase meio milhão de toneladas em 1944 (18,9% do total mundial), ajudadas pelos subsídios e outras compensações acordadas por Washington durante a II Guerra Mundial e a guerra da Coreia (1950-1953), que compensam o preço de venda rebaixada que foi imposta. O Estado chileno deve se contentar em registrar a baixa renda.

 

Em 1953, o Estado consegue o direito de comprar 20% da produção a preço de mercado interno e exportar a preço de mercado. Levantam-se vozes que reclamam do “aperto do cobre”, o monopólio estatal das vendas, e os senadores comunistas Salvador Ocampo e Elias Lafferte apresentam o primeiro projeto de nacionalização. Mas as companhias e a própria Casa Branca exercem pressões sobre os clientes para que se abstenham de comprar cobre do Estado.

 

Em 1955, Ibanez opta pelo “novo trato”: as companhias recuperam o investimento de venda de câmbio para aumentar a produção, facilitadas por vantagens tributárias e aduaneiras. Em 1970, a grande mineradora participa com quatro quintos das 692.000 toneladas produzidas no Chile (11% do total). Dos 930 milhões de dólares ingressados pelas vendas, 727 milhões provêm da grande mineração e retornam ao Chile cerca de 650 milhões. O Estado recebe US$ 120 milhões por tributos e outros 138 milhões por participação. Estes 258 milhões representam 19% da receita (2).

 

A “chilenização”

 

Recém-instalado em La Moneda em 1964, Frei encomenda a Raúl Sáez e a Javier Lagarrigue as negociações com a Kennecott e a Anaconda. Em poucos meses chegam a um acordo: o Estado compra uma parte das ações e concede um pacote excepcional de franquias, liberações de impostos e medidas preferenciais. Em troca, as multinacionais se comprometem a aumentar a produção – o governo fala em duplicar e chegar a 1.200.000 toneladas anuais – e a refinar e fabricar no Chile uma parte importante do cobre.

 

Os projetos, anunciados com nutrida propaganda, são enviados à Câmara em 1965. Lá, a Democracia Cristã é maioria e no senado se entende com o Partido Radical (PR). A oposição da esquerda adverte sobre o risco de perdas, insiste na nacionalização total e, em todo caso, pede o monopólio estatal do cobre. Mas Frei mantém o sistema de exportações nas mãos das companhias. Os contratos-leis são promulgados em 25 de janeiro de 1966, com uma vigência de 20 anos (3).

 

Em 1967, o Estado adquire 51% das ações da Braden Cooper, proprietária da El Teniente, com promissórias de US$ 80 milhões. Seu valor contábil era só de US$67 milhões, mas aceitam as avaliações da firma estadunidense The American Appraisal Company. A gerência e a programação caem nas mãos da Braden (4).

 

São constituídas também duas sociedades mistas com filiais da Anaconda: a companhia mineira andina, com 70% de capitais da Cerro Corporation co., e 30% do Estado, mais eletricidade a preço de custo. A segunda é batizada Companhia mineira Exótica com 75% da Chile Exploration co. e 25% do Estado.

 

Esta última é uma ampliação de Chuquicamata inscrita com o nome de Chilex (outra filial da Anaconda), mas o convênio firmado com a Chile Exploration permite obter as vantagens fiscais acordadas com as novas sociedades: no lugar do imposto de 50%, paga só 15%.

 

A principal objeção é que os acordos foram baseados em uma estimativa incorreta do preço do cobre, de US$ 0,29 por libra, embora em 1965-1966, antes que o projeto fosse lei, era negociado pelo dobro deste valor. Isto teve graves consequências financeiras.

 

De fato, em 1964, as companhias vendem a libra na Bolsa de Metais de Londres ao valor médio de US$ 0,44; em 1965, a 0,59; e, em 1966, a 0,70. Como o sistema de vendas impõe aos produtores chilenos um preço mais baixo, o Estado chileno coloca, em 1964, o preço de US$0,35; em 1965, em 0,38; em 1966, aumenta a 0,62; e meses depois, a 0,70, alcançando o preço londrino. Depois abaixa a 0,54 (5). Com este sistema de vendas, a alta do metal aporta benefícios exorbitantes às companhias.

 

A “nacionalização pactuada”

 

Os escassos resultados da “chilenização” que contrastam com os impressionantes lucros das multinacionais impactam os dirigentes da DC. Se, em 1964, os partidários da nacionalização, como R. Tomic, G. Valdés ou J. Ahumada, foram apartados das negociações, agora o tema é debatido na convenção do PDC, em janeiro de 1968. Ali, os deputados Maira e Sota propõem reservar para o Estado as somas que excedem o preço de venda de US$ 0,40 a libra. Mas Frei encarrega Andrés Zaldívar de rejeitar a ideia, argumentando o cumprimento dos contratos (6).

 

Em resposta às crescentes demandas de nacionalização, Frei negocia com a Anaconda a participação do Estado nas minas El Salvador e Chuquicamata. Em julho de 1969, anuncia, com abundante propaganda, a “nacionalização pactuada”; o Estado adquirirá os 51% das ações e, mais adiante, os 49% restante. Nestas condições se constitui a Companhia de Cobre El Salvador com a Andes Cooper Mining Co. e a Companhia de Cobre Chuquicamata com a Chile Exploration Co.

 

O valor de caderneta da Chuqui era de US$ 181 milhões; mas, por 51% das ações da Anaconda, recebe US$ 175 milhões. Quando se pagasse 60% do capital, o Estado poderia adquirir os 49% restantes, ainda que não antes do fim de 1972 (7). Seu preço devia ser calculado segundo um complicado sistema que valorizava as reservas – em princípio a propriedade da nação –, que resultaria em um alto preço, injustificado.

 

Além disso, o governo firma com a Anaconda contratos de assessoria técnica e vendas, por 1% das vendas, e entrega a gerência da nova sociedade (8).

 

As “sociedades mistas” mantêm o papel ouro, ou seja, paga as remunerações em dólares a cerca de 1.500 empregados estadunidenses e altos funcionários chilenos, o que provoca a renúncia de Enrique Silva, diretor da El Salvador. E, nos últimos anos, a Anaconda explora a empreitada, concentrando-se sobre as vendas de alta qualidade, sem reparar adequadamente os equipamentos, nem evacuar 28 milhões de toneladas de estéreis (9).

 

O balanço da “chilenização” e da “nacionalização pactuada” foi resumido por Salvador Allende em Rancagua, em 7 de julho de 1971, dia da nacionalização. Entre 1930 e 1970, os ativos das empresas ascendem a US$ 1.576 bilhão, mas o investimento foi só de US$ 647 milhões. O essencial se fez a crédito. As companhias devem US$700 milhões ao governo; mais 100 milhões de dividendos; 71 milhões a Codolco e 31milhões a clientes estrangeiros (10). De 1960 a 1964, quando El Teniente, El Salvador e Chuqui eram proprietárias de todas as ações, obtiveram lucros de US$ 213 milhões; de 1965 a 1970, com os 49% das ações, possuem ativos de US$ 552 milhões. Mais que o dobro.

 

Em 1970, Radomiro Tomic, em seguida candidato à presidência pela DC, constata a oportunidade perdida: “Durante estes cinco anos o cobre foi vendido a um preço superior a US$ 0,60 por libra, contra um custo de produção de US$ 0,22. A nacionalização legal e integral nos teria permitido já pagar o valor total de todas as instalações da Anaconda e da Kennecott no Chile e ter financiado o programa de expansão. E ter disponíveis no futuro centenas de milhões de dólares ao ano – chilenos, nossos, sem empréstimos ou dívidas – para acelerar massivamente o desenvolvimento industrial do país. É uma oportunidade que não voltará jamais” (11).

 

Como explicar a obsessão do governo de Frei por manter as “sociedades mistas”, tão pouco favoráveis ao país? Além de se opor à nacionalização, negou-se a adaptar os contratos à alta dos preços do metal; descartou o monopólio estatal das vendas, assim como a ideia de reservar ao Estado os valores superiores a preço de venda de US$ 0,40 a libra, e deu aval a empréstimos contraídos pelas companhias com  resultados onerosos ao Chile, como veremos no próximo artigo.

 

Os motivos devem ser diversos, mas o apoio dos EUA a sua candidatura, em 1964, não pode estar ausente deles. O relatório Covert action no Chile, revela que a CIA investiu US$ 3 milhões (12) para “influenciar o resultado das eleições presidenciais de 1964” e garante: “mais da metade da campanha do candidato democrata cristão foi financiada pelos Estados Unidos e cerca de quatro milhões de dólares foram gastos em cerca de 15 projetos de ação encoberta”. Além disso, em 1965, a Central apoiou com US$ 175.000 a 22 candidatos a parlamentares; e em 1969, financiou 12 candidatos com US$ 135.000 (13); 10 deles foram eleitos.

 

Tal ingerência tem objetivos e, visto que na política são raros os gestos gratuitos, a retribuição ao doador deveria ser parte das opções de quem então dirigia o país.

 

Notas:

1. Martner Gonzalo, 1988, O Governo do Presidente Salvador Allende, 1970-1973. Uma avaliação, Programa de Estudos do Desenvolvimento Nacional e Edições literatura americana reunida, p 107 e Novoa, 1972, 40.
2. Novoa Eduardo, 1972, A Batalha do cobre, Quimantú. 13-14.
3. Novoa, 1972, 45; 74.
4. Novoa, 1972, 50; 82.
5. Novoa, 1972, 57; 63.
6. Novoa, 1972, 64-65
7. Mena Basualto Horacio, 8/4/1971, Superintendência de aduanas, ofício 10. do chefe da unidade DIA de Antofagasta, o chefe de investigações aduaneiras.
8. Mena, 1970, 1 y Novoa, 1972, 70.
9. Max Nolff in Martner, 1988,110.
10. No total uns 40,5 milhões de US$ atuais.
11. Revista Ercilla de 7 de janeiro de 1970.
12. Uns 135 milhões de US$ atuais.
13. 7,9 e 6,1 milhões de US$ atuais.

 

Leia também:

O Parlamento, a Corte Suprema e a Controladoria contra a Allende: o conflito institucional

O governo de Salvador Allende: um legado inspirador?

A greve de outubro de 1972: a primeira ofensiva para derrubar o governo da Unidade Popular

Quanto apoio tinha a Unidade Popular?

A utilização da lei pelo governo de Salvador Allende

O Chile de Allende: uma tentativa de política internacional independente

A Unidade Popular e as Forças Armadas

O Chile de Allende: a greve de outubro de 1972 e a impressionante reação popular

 

Jorge Masasich é historiador chileno e leciona em Bruxelas. Série de artigos originalmente publicada pelo Le Monde Diplomatique francês e espanhol.

Tradução: Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

0
0
0
s2sdefault