Correio da Cidadania

O renascimento da tensão russo-americana

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O tema principal da última reunião do G8, que congrega os sete países mais ricos do globo e a Rússia, estava previamente relacionado com a questão ambiental, ao buscar-se estabelecer um percentual comum na emissão de gases provocadores do efeito estufa. Sediada na Alemanha, a proposta havia sido originada pela primeira-ministra do país, Angela Merkel, ela mesma ministra do Meio Ambiente entre 1994 e 1998.

De acordo com a proposta germânica, o G8 teria condições de cingir a dois graus Celsius a ampliação da temperatura até 2050, o que significaria diminuir o nível de liberação de gases à metade do de 1990. Contudo, os Estados Unidos não aceitam a fixação de meta alguma sem a inclusão de, ao menos, Índia e China, a segunda emissora de gases do globo.

Na visão estadunidense, um compromisso poderia ser apenas estipulado se se agregassem os quinze maiores países poluidores, o que abarca o Brasil – desde 1990, enquanto a União Européia diminui suas emissões, tendo por parâmetro o percentual dos anos 90, ainda que modestamente, os Estados Unidos aumentam-nas.

Contudo, o assunto subjacente ao encontro seria a tensão crescente entre Estados Unidos e Rússia, ocasionada pela instalação de mísseis na Europa Oriental, cujas conseqüências poderiam atingir até mesmo o programa multilateral de cooperação espacial - iniciado na segunda metade dos anos 1990 - de bastante interesse para a União Européia, por viabilizar-lhe literalmente uma outra plataforma de lançamento para seus satélites, dentre outras considerações.

Conquanto afirme, de público, que a Rússia é assaz importante para a oposição ao terrorismo, propagação de armas de destruição de massas e fundamentalismo, a política externa norte americana desenvolve duas frentes, de modo que desgaste politicamente o governo Putin: por um lado,  propaga-se a visão de que o governo russo menoscaba rotineiramente os direitos individuais de seus cidadãos, restringe severamente o direito de livre informação dos meios de comunicação, coíbe implacavelmente as atividades de organização não governamentais e oprime ferreamente os seus opositores partidários.

Enfim, estar-se-ia diante de um renascimento do autoritarismo russo, de feitio externo distinto do passado, por não estar mais uniformizado com a estrela vermelha, porém de caráter estatizante, o que ocasionaria eventual afastamento do Ocidente liberal;

Por outro, na frente externa, cultiva-se a perspectiva de, em breve, talhar-se territorialmente a Sérvia, tradicional aliada russa, ao reconhecer-se o direito de independência do estado do Kosovo, atualmente sob supervisão européia; avança-se no projeto de instalar 10 bases antimísseis na Polônia e um sistema de radares antimísseis na República Tcheca, antigas áreas de influência russas durante a Guerra Fria, sob justificativa oficial de proteger a União Européia e os próprios Estados Unidos de ataques provindos de Estados renegados do Oriente Médio e adjacências, como o Irã, e, quiçá, Coréia do Norte.

Hodiernamente, três países apenas dispõem de tecnologia para o fabrico de mísseis intercontinentais: Rússia, Estados Unidos e China. Na avaliação russa, o Irã, na melhor das hipóteses, mal teria condições de lançar mísseis de médio alcance, o que, portanto, não embasaria a retórica estadunidense de justificar as instalações militares tcheco-polonesas.

Todavia, os Estados Unidos estimam que, desde 2000, o Irã tornou-se detentor de tal tecnologia, ao lançar o Sahab-3, com alcance entre mil e 500 a dois mil quilômetros. Desta maneira, o governo iraniano teria condições de, ao menos, bordejar a fronteira asiática da Rússia, além de poder atingir a maior parte do Oriente Médio. 

Saliente-se que os atritos amero-russos ampliam-se há alguns anos e não se restringem a tópicos militares. Desde meados de 2003, quando o governo russo confrontou-se politicamente com alguns dos potentados locais - beneficiados no generoso processo de privatização executado pela gestão de Boris Yelstin - conhecidos como oligarcas, o governo norte-americano interpreta o posicionamento como sinalização de uma ampla nacionalização vindoura.


Diante dos últimos reveses militares norte-americanos na região médio-oriental e cercanias, onde se almeja a privatização da exploração das reservas de petróleo e gás, a fim de manter-se a regularidade do abastecimento e dos preços, a postura do governo Putin é preocupante para o Ocidente, à medida que os recursos naturais do país são analisados dentro da tradicional política do poder, o que exclui tratá-los como meros produtos primários.

Desta maneira, explica-se a política de fornecimento de gás à Ucrânia e Bielorússia, vista negativamente pelo Ocidente em um ambiente em que a variação das cotações de gás e petróleo é significativa - relembre-se que, às vésperas da II Guerra do Golfo, em março de 2003, o preço do barril de petróleo situou-se no início da faixa dos 30 dólares, enquanto, nos dias de hoje, localiza-se por volta dos 65 dólares.

Por fim, o reviver da desinteligência amero-russa revela a percepção da política externa estadunidense de distanciar o Ocidente da Rússia, ainda que de modo atabalhoado, já useiro e vezeiro na gestão Bush, a fim de contrabalançar o êxito russo, mesmo incipiente, no Oriente Médio, rumo a um entendimento com a Arábia Saudita, aliada dos Estados Unidos – a Rússia já participa como observadora da Conferência Islâmica, em decorrência de sua população muçulmana.

 

 

Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.

 

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