Cessão do Pré-Sal, incongruências e Piketty

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Paulo Metri
30/06/2014

 

 

Sete áreas de petróleo foram entregues à Petrobras, em 2010, para ela descobrir os cinco bilhões de barris necessários para a concretização da operação de cessão onerosa, que iria possibilitar a desejada capitalização da empresa. Em algumas delas, descobriu-se muito pouco petróleo. Contudo, por ser eficiente e graças também à prodigalidade do Pré-Sal, no final, ela encontrou em quatro destas áreas uma reserva recuperável de 15 a 20 bilhões de barris. Depois de serem retirados os cinco bilhões da cessão onerosa, ainda sobraram de dez a 15 bilhões, que pertencem à União, pois o contrato não dá a posse do petróleo excedente descoberto à Petrobras. Notar que, nas sete áreas, não consta Libra, campo descoberto também pela Petrobras no Pré-Sal trabalhando para a ANP, e que possui entre oito e 12 bilhões de barris, já leiloado.

 

Passaram-se meses, desde que ocorreram estas descobertas, que acredito terem sido de intensas disputas da riqueza dentro do governo. As empresas estrangeiras devem ter feito pressão imensa para que ocorressem leilões destas áreas, com o argumento de que a Petrobras está com dificuldade para investir, devido à sua crise financeira, e elas iriam suprir a deficiência de recursos. Crise esta advinda da promoção exagerada de rodadas de leilões pelo próprio governo, no quais a Petrobras tem participado heroicamente, frustrando a intenção das multinacionais de ficarem com muitas áreas. Leilões estes também desnecessários para o abastecimento do país, que está garantido pela Petrobras por cerca de 60 anos.

 

No caso das quatro áreas, as empresas estrangeiras queriam acrescentar às suas reservas bilhões de barris conhecidos de petróleo por um preço baixo, uma vez que a Petrobras estaria forçada a não participar destes leilões e elas formariam cartel para apresentação das propostas. Notem que elas estão querendo um leilão de petróleo existente, e não um leilão de áreas que talvez possam ter petróleo. Notem também que nenhuma delas, que possui ou possuía áreas no Pré-Sal, fez grande descoberta, inclusive a Shell furou um poço em Libra e devolveu a área porque achou que não tinha petróleo.

 

Por outro lado, a presidente Dilma teve queda na intenção de voto, em passado recente, e especula-se que uma das causas foi ter leiloado Libra. Entre os sindicalistas, petroleiros e pessoas que prezam as questões de soberania, ela certamente perdeu votos. Este fato pode ter pesado na balança, desta vez, para ela tomar a decisão correta de entregar as quatro áreas de dez a 15 bilhões de barris à Petrobras, sem necessidade de leilão, como manda o artigo 12 da lei 12.351 para as áreas estratégicas.

 

O consumo de petróleo e gás natural em 2006 correspondeu a 59% do total de energia consumida no mundo. Inclusive, o parque industrial e os transportes em nível mundial são movidos, basicamente, por derivados ou gás. Os excedentes de petróleo e gás dos países exportadores são disputados, tanto que o preço do barril se mantém estável, há anos, acima de US$ 100, mesmo com a entrada do gás e óleo de xisto na matriz energética mundial. Os Estados Unidos não poderiam exercer sua política de coerção de outros países se faltassem derivados para suas forças armadas. O abastecimento de petróleo e gás a países pode ser utilizado como elemento de persuasão em negociações internacionais, haja vista o que faz a Rússia de Putin. Assim, insumo mais estratégico que petróleo e gás é difícil encontrar.

 

No caso específico do Pré-Sal, qualquer área é estratégica, dado o índice de acerto da Petrobras na busca por petróleo e gás na região ser acima de 70%. Contudo, Libra era igualmente estratégica, carecendo, portanto, de uma explicação a presidente ter tomado duas decisões opostas, ao leiloar Libra: o leilão coube a um consórcio com a participação de multinacionais e, agora,  entregaram-se quatro áreas à Petrobras sem leilão. Inclusive, os dois atos estão relacionados a reservas de petróleo mais ou menos equivalentes.

 

Na época de Libra, falava-se que o governo precisava de recursos para fechar a conta do superávit primário. Agora, fala-se que, como a Petrobras já está no campo de Franco, atual Búzios, graças aos cinco bilhões de barris da cessão onerosa, e as áreas da atual entrega à Petrobras formam um campo único, contendo inclusive Búzios, fazer leilão destas áreas iria gerar processos judiciais de imediato, porque haveria as polêmicas unitizações. Mas o importante é que a decisão foi correta e estes novos bilhões de barris de petróleo poderão ser bem usufruídos pela nossa sociedade.

 

A atividade de exploração e produção de petróleo é extremamente lucrativa. Mesmo o petróleo do Pré-Sal, com razoável grau de dificuldade de extração, onde o barril pode vir a custar US$ 45, dará lucro. O royalty, quando comparado ao lucro do negócio, é uma parcela pequena. Hoje, minha preocupação é que este superlucro não se destine a objetivos sociais e vá para os caixas das empresas, quer sejam privadas ou da Petrobras.

 

O monopólio estatal do petróleo, que existiu de 1953 a 1995, dirigiu muitos recursos para a Petrobras, que passou a possuir, segundo dados de 2008, 16 refinarias, cerca de 17.000 km de dutos, mais de 100 plataformas próprias, além das arrendadas, terminais portuários, estações de bombeamento, o maior centro de pesquisas da América Latina e inúmeros outros patrimônios. Além disso, cumpriu bem sua missão de abastecer o país. Portanto, não foi dinheiro jogado no lixo. No entanto, não obstante as produções passadas terem sido pequenas quando comparadas com as esperadas agora, não existiram grandes obras sociais oriundas dos recursos do petróleo no período do monopólio.

 

Veio o período das concessões petrolíferas, graças a FHC, e o lucro fabuloso só não foi totalmente transferido para as multinacionais porque a Petrobras arrematou muitas áreas, tolhendo o plano delas de se locupletarem com o petróleo brasileiro. A possibilidade de uso de parcela deste enorme lucro no interesse social só ocorreu em 2010 com a aprovação do novo marco regulatório do setor, que inclui a existência de um Fundo Social.

 

Entretanto, a ida de quantidades razoáveis de recursos para este Fundo requer a definição de uma boa parcela do lucro líquido que deve ser remetida para ele. Esta definição varia conforme os editais dos contratos de partilha. Portanto, não é garantido que, sob tal tipo de contrato, as remessas para o Fundo Social serão necessariamente altas. No caso de Libra, a parcela a ser remetida para o Fundo foi definida no edital como função do preço do barril no mercado internacional e da produtividade do campo, que é uma vergonhosa transferência do risco das empresas para o Estado. No caso das quatro áreas, não consegui descobrir esta parcela em nenhum jornal ou site. Tenho a impressão de que, como os contratos ainda não foram firmados, há a possibilidade de se influir nos textos dos mesmos.

 

De qualquer forma, o fato de ficar só a Petrobras nas quatro áreas significa também que o petróleo produzido irá para onde o Estado brasileiro definir. Todas as argumentações contrárias que proliferaram na mídia nestes dias buscavam defender os interesses das empresas estrangeiras e não faziam sentido, não merecendo comentários. A única crítica destes dias que tem fundamento é que a Petrobras está em uma fase com grande número de investimentos simultâneos. Mas, para corrigir esta dificuldade momentânea da empresa, considerando que o governo deve atender aos interesses superiores da nossa sociedade, basta dar uma ordem para a ANP permitir a dilatação dos prazos de implantação de campos que a Petrobras desejar. Ou a ANP está subordinada a outro país?

 

Finalizando, Piketty veio, em excelente hora, lembrar o que já era sabido e estava esquecido. Ele recomenda que a política tributária deve compensar a tendência natural à concentração excessiva de riqueza nas mãos dos muito ricos. Ele lembra que, a partir de 1974, o capitalismo iniciou um novo ciclo concentrador de renda e riqueza, quando se distanciou do Estado do bem-estar social. Ao se lutar por grandes remessas para o Fundo Social, está se agindo na direção contrária à de se deixar o lucro abissal da atividade petrolífera ser acumulado por quem já tem enorme riqueza.

 

De forma complementar, se estes recursos chegarem ao Fundo Social, ele poderia garantir escola de tempo integral para todas as crianças brasileiras, desde tenra idade até 18 anos, com três refeições na escola, durante gerações a fio. O Brasil advindo dos adultos destas novas gerações certamente seria um país melhor. Minha geração ficaria feliz por ter produzido este Brasil superior. E tudo graças à utilização social da riqueza do Pré-Sal.

 

 

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Paulo Metri é conselheiro do Clube de Engenharia e colunista do Correio da Cidadania.

Blog do autor: http://www.paulometri.blogspot.com.br/

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