Batalha da Ucrânia: EUA derrotam e humilham a Rússia

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Ramez Philippe Maalouf
26/02/2014

 

 

Os EUA são a maior potência militar e econômica do mundo. Seu orçamento militar alcança a cifra oficial de US$ 700 bilhões (o maior do planeta, equivalente à soma dos subsequentes 14 maiores orçamentos militares nacionais) e têm mais de 860 bases militares espalhadas ao redor do globo, o que o torna vizinho de quase todos os países de todos os continentes. Por meio destas bases militares, cercam alguns dos maiores Estados do mundo (Rússia, China, Brasil e Índia) e mantêm a humanidade sitiada. São, portanto, um poder militar inigualável.

 

De acordo com a mitologia de sua fundação, ainda no século XVIII, os EUA são o povo eleito por Deus com o propósito de submeter/subjugar/dominar a Humanidade. Desde o século XIX, sua classe/casta racial dirigente de proprietários brancos anglo-saxões protestantes (hoje, pós-protestantes) compreende que dominar o mundo é dominar a Ásia. Para isto, é necessário impedir o surgimento de qualquer coalizão de nações na Ásia ou que unisse a Europa à Ásia. Desta forma, a nação eurasiática por excelência, a Rússia, passou a ser vista pelo “povo eleito”, em decorrência do seu peso demográfico, localização geográfica, recursos humanos e minerais, como o maior obstáculo para a consecução da missão conferida por Deus. Segundo o geopolítico e ex-secretário de Estado do governo Richard Nixon (1969-74), Henry Kissinger, os EUA devem considerar a Rússia como inimigo independentemente das cores ideológicas de quem governe os russos.

 

Desde 1943, o geógrafo holandês-americano Nicholas Spykman afirmou que para dominar a Ásia era preciso conquistar as suas fímbrias, visando encurralar a Rússia (transmutada em União das Repúblicas Socialistas Soviéticas – URSS, a partir da Revolução de 1917), a fortaleza inexpugnável do poder terrestre. Com a desintegração da URSS, em 1991, configurando-se numa vitória da geoestratégia spykmaniana, segundo o falecido politólogo britânico Peter Gowan, a nova geoestratégia de contenção ianque da Rússia tinha como objetivo retirar a ex-república soviética da Ucrânia da esfera de influência russa, confinando a Federação Russa na Ásia. Ucrânia é o país de onde se originou o Estado russo. Portanto, desde 1991, os EUA estão se imiscuindo na política ucraniana para impedir qualquer manifestação de aproximação entre as duas ex-repúblicas soviéticas.

 

Uma das consequências desta intervenção foi a adoção de uma política econômica ultra-liberal, que esgarçou o tecido social ucraniano. Além desindustrializar o país eslavo e gerar altas taxas de desemprego, especialmente entre os jovens, o neoliberalismo na Ucrânia favoreceu o surgimento de grupos mafiosos que se apossaram do Estado. O resultado mais grave deste colapso civilizatório promovido pelos EUA e as políticas neoliberais na antiga república soviética foi e continua sendo a queda populacional sem precedentes na História recente a Europa. Em 1991, na época do colapso soviético, havia 52 milhões de ucranianos no país eslavo, enquanto que, no ano de 2013, a cifra foi reduzida para 45 milhões de pessoas.

 

A permanente intervenção ianque nos assuntos ucranianos não parou com a queda demográfica, sintoma do colapso civilizatório. Os EUA financiaram e promoveram a “Revolução Laranja” de 2004, eclodida em Kiev (capital da Ucrânia), uma versão atualizada da “Marcha da família com Deus pela Liberdade”, que deu a senha para o golpe civil-militar de 1964 no Brasil, patrocinado pelos EUA e Canadá. A “revolução colorida” ucraniana (outras “eclodiram” na antiga Iugoslávia, em 2000, na Geórgia, em 2003, no Quirguistão e no Líbano, em 2005, todas patrocinadas pela CIA) foi uma “mobilização popular” com o objetivo de levar à presidência Victor Yushchenko, liberal pró-Ocidente, em detrimento de Victor Yanukovich, considerado um liberal pró-Rússia. O primeiro mandato de Yanucovich como primeiro-ministro (2002 – 2004) foi marcado pela adesão da Ucrânia à coalizão pró-invasão anglo-americana do Iraque em 2003. Mesmo assim, Yanukovich foi rechaçado pela “revolução” e não conseguiu ser eleito presidente em 2005, perdendo para o rival Yushchenko, que governou o país até 2010.

 

Em 2010, foi a vez de Yanukovich ser eleito para a presidência. Em novembro de 2013, o então presidente ucraniano se recusou a assinar um acordo de “livre comércio” com a União Europeia (EU), preferindo um acordo com a Rússia, onde o presidente russo Vladimir Putin acenou com um empréstimo de US$ 15 bilhões, acendendo a “revolta popular”. Em pouco tempo, “oposicionistas” de Yanukovich tomaram praças e prédios do governo rejeitando a aproximação com a Rússia. Em pouco tempo também revelou-se que tal insurreição popular nada tinha de espontânea, muitos dos manifestantes formaram bandos armados, com fortes suspeitas de receberem instruções de embaixadas ocidentais, especialmente dos EUA. Há vários informes de que os ianques gastavam US$ 20 milhões semanalmente com a “oposição”. Os manifestantes agrediram e acuaram a polícia na praça da Independência em Kiev, enquanto as forças armadas, uma das maiores da Europa, não se manifestaram em momento algum.

 

Segundo a imprensa ocidental, o povo ucraniano é favorável à entrada do país na UE, vista como uma garantidora da paz, da prosperidade, da democracia e da liberdade (não se mencionou a profunda crise econômica decorrente do neoliberalismo imposto pela UE à periferia da Europa). Nada se falou também da violência que grupos armados nazistas e antissemitas anti-Rússia promoviam contra a população russa do país (uma “minoria” nada desprezível de mais de 8 milhões de pessoas, correspondendo a cerca de 18% da população do país). Na verdade, a chamada oposição a Yanukovich era formada por uma heterodoxa coalizão compreendendo nazistas (oriundos da II Guerra Mundial), movimento “gay”, liberais, católicos e trotskistas. Tal concertação política paradoxal só poderia ser fruto de uma ingerência internacional. A intervenção dos EUA foi tão acintosa que sequer levou em consideração seus parceiros europeus, a ponto de uma diplomata enviada a Kiev expressar seu desprezo pela UE com palavras chulas (“f..-se UE!”).

 

O desabafo nada polido da diplomata Victoria Nuland desmascarou a farsa da suposta “revolução popular” em curso na Ucrânia. Não se tratava de um mero golpe de Estado para depor um presidente pró-Moscou, tratava-se de uma geoestratégia para implodir a Ucrânia para retirá-la de uma vez por todas da órbita russa. Washington D.C. não está preocupado com a adesão ou não da Ucrânia à UE. Sendo assim, uma guerra civil aberta ou uma divisão territorial ou a formação de um governo pró-Ocidente na Ucrânia nada mais do que consolida um poder norte-americano na fronteira com a Rússia, a meros 750 km de Moscou, o que de fato acabou ocorrendo com a deposição de todo o governo de Yanukovich, no final de fevereiro de 2014. Desta forma, com o golpe de Estado em Kiev, os EUA neutralizaram as vitórias russas na Geórgia, em 2008, e na Síria, em 2013, de forma humilhante, uma vez que Putin (um ex-chefe do serviço secreto russo) não reagiu em momento algum diante da permanente ingerência estrangeira no país vizinho desde a queda da URSS, colocando em risco a população russa.

 

Certamente, a desestabilização da Ucrânia foi o trunfo que os EUA guardavam na manga quando emperraram as negociações da Segunda Conferência de Genebra (final de janeiro de 2014) visando a suposta paz na Síria, barrando até mesmo a participação do Irã nas negociações. Com a vitória na Ucrânia, o ditador dos EUA Barack Obama (que governa sob as leis de exceção do “Ato Patriótico” em vigência desde 2001) pode também neutralizar a fúria dos republicanos em decorrência da derrota na Síria, em setembro de 2013.

 

No momento, os EUA estão promovendo ao redor do mundo vários processos de golpes de Estado/mudanças de regime camuflados como “revoltas populares”: Venezuela, Bósnia, Síria e Tailândia, numa clara demonstração de que a “nação eleita por Deus” não recuará de sua missão sagrada. O espectro de um novo “roll-back” se lança sobre o mundo. Fortalecidos na fronteira com a Rússia, assegura-se aos EUA os planos para a limpeza étnica dos palestinos na Faixa de Gaza, dos muçulmanos xiitas no Líbano, dos cristãos na Síria, que pode ser balcanizada.

 

Prossegue ainda a guerra no Paquistão e a possível balcanização do país, assim como se aumenta o cerco à Armênia, a desestabilização do Iraque e a pressão para uma guerra ao Irã.

 

Tais são as consequências mais imediatas e graves da incapacidade de Putin de prever e reagir ao ataque ianque à Ucrânia e à Rússia, um duro golpe à geoestratégia eurasianista da elite russa, também liberal. Uma sombra negra volta a ser lançada sobre o mundo: o totalitarismo liberal promovido pelo supremo poder dos EUA e a sua promessa de uma III Guerra Mundial aberta e nuclear.

 

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Ramez Philippe Maalouf é historiador e doutorando em Geografia Humana pela USP.

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