Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (3)

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Ramez Philippe Maalouf
06/10/2014

 

 

 

4. O Saddam Hussein foi o único responsável pela Guerra Irã-Iraque (1980-88)

 

Como foi exposto anteriormente, desde a Revolução Iraquiana de 1958, de genuíno caráter nacionalista e socialista, o Iraque foi atacado pelos EUA indiretamente até 1991, por intermédio de Israel, Irã e os curdos, com vistas a desestabilizar os governos revolucionários, esquerdistas e nacionalistas de Bagdá.

 

A partir da invasão anglo-americana de 1991, e, sobretudo, a partir do ataque de 2003 até os dias atuais, o objetivo é claramente desintegrar territorialmente o Iraque. Os EUA travam, portanto, uma guerra contra o Iraque desde 1958. Em 1970, incentivados pelos EUA, o Irã bloqueou o acesso do Iraque ao mar, através do controle militar do canal de Chat al-Arab, dando início à conquista do Golfo Árabe-Pérsico, enquanto ao mesmo tempo apoiava o separatismo curdo apenas no Iraque.

 

Saddam Hussein reconheceu a derrota frente ao Irã e aos curdos, por este motivo fez acordo com o PDC (Partido Democrata Curdo), em 1970, e aceitou as condições humilhantes do Acordo de Argel, que cedia o Chat al-Arab à soberania iraniana em troca do fim do apoio do aos curdos, em 1975. O do Irã Reza Pahlevi firmou o Acordo de Paz com o vice-presidente iraquiano Saddam Hussein sem consultar os EUA, pegando de surpresa e enfurecendo o então secretário de Estado ianque Henry Kissinger, o que certamente deve ter contribuído para o apoio ianque à derrubada do monarca iraniano, em 1979. Ainda como resposta ao acordo firmado entre Irã e Iraque, os EUA e Israel continuaram armando, treinando e financiando o PDC, visando desestabilizar o governo do Ba’ath.

 

Quando houve a Revolução no Irã, islâmica e nacionalista, em 1979, timidamente apoiada pelos EUA, Saddam Hussein também foi simpático ao fim do poder do maior inimigo do Iraque (excetuando Israel), o . Porém, quando o aiatolá Khomeini assume o poder no Irã, estabelecendo República Islâmica, com o objetivo explícito de levar a “revolução” para todo o Golfo Árabe-Pérsico, exortando a derrubada de todos os governos árabes da região, havia motivos de sobra para Saddam temer um novo ataque iraniano.

 

Ele acreditou, no entanto, que atacando de surpresa o Irã, mergulhado no caos revolucionário, conseguiria impedir o alastramento do sectarismo xiita apregoado por Khomeini ao seu país e, assim, conseguir tanto um melhor acordo para Chat al-Arab do que aquele imposto pelo Irã em 1975, quanto impedir o separatismo e o sectarismo do sul do Iraque.

 

Em setembro de 1980, o Iraque agrediu o Irã pela primeira vez. Em 1982, Saddam Hussein já reconhecia a derrota e pediu a paz ao Irã. Porém, Khomeini respondeu que só aceitaria a paz se o governo do Ba’ath fosse derrubado. Outras propostas de paz foram feitas por Saddam e todas foram rejeitadas por Khomeini, que exigia as mesmas condições.

 

Assim, a guerra prolongou-se, de forma ainda mais sangrenta, por mais seis anos, até que os EUA atacassem um jato comercial iraniano em julho de 1988, levando Khomeini a aceitar o cessar-fogo em agosto de 1988. Mais de um milhão de pessoas morreram na guerra que poderia ter sido encerrada com uma vitória do Irã e com menos derramamento de sangue, ainda em 1982.

 

5. Saddam Hussein era um aliado dos EUA e, por isso, um pró-imperialista

 

As relações entre EUA e o Iraque pós-1958 sempre oscilaram entre desconfianças mútuas e hostilidade aberta. É preciso lembrar que Saddam Hussein rompeu relações diplomáticas com os EUA assim que assumiu o poder, em 1968, assinando com a URSS um Tratado de Amizade e Cooperação, em 1972. Pela política socialista do Ba’ath e aliança com a URSS, Saddam e seu governo eram vistos pelo Ocidente e seus clientes regionais (Israel, Arábia Saudita, Turquia e Irã), ao longo de toda a década de 1970, como radicais de esquerda. Um dos motivos desta percepção era o seu indefectível apoio financeiro e militar à Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e a defesa radical do nacionalismo árabe, que se refletia nas nacionalizações/estatizações das companhias de petróleo.

 

Saddam enviou tropas para atacar a Jordânia, o único aliado tradicional do Iraque até 2003, em favor dos palestinos durante o Massacre do Setembro Negro, em 1970. Na Guerra árabe-israelense de 1973, Saddam enviou tropas em apoio à Síria. O apoio à OLP continuaria durante a Guerra Civil Libanesa (1975-90), quando o líder palestino Yasser Arafat e o presidente sírio Hafez al-Assad romperam relações e entraram em choque, entre 1976 e 1977 e entre 1983 e 1990.

 

Em 1982, quando Israel invadiu o Líbano, calcinando mais de 20 mil árabes (libaneses, sírios e palestinos), Saddam Hussein autorizou a Guarda Revolucionária iraniana atravessar o território iraquiano em direção ao Líbano para ajudar a formação de uma resistência libanesa contra os invasores israelenses, o que acabaria dando origem ao Hizbollah.

 

Durante a Intifada (levante popular em árabe) palestina nos territórios ocupados militarmente por Israel, eclodida no final de 1987, o líder iraquiano ordenou o pagamento de indenização às famílias de todos os mártires palestinos que resistiam à ocupação israelense. Israel jamais deixou de considerar o governo partido Ba’ath iraquiano sob liderança de Saddam Hussein como seu maior inimigo dentro do mundo árabe, não hesitando em enviar dinheiro e armas, com pleno conhecimento e consentimento dos EUA, para o Irã de Khomeini durante a guerra contra o Iraque.

 

Os israelenses foram ainda mais longe, em 1981: atacaram diretamente o Iraque, destruindo a usina nuclear de Osirak, alegando que os iraquianos fabricavam armas nucleares, quando o Irã tinha falhado nesta operação militar. Israel só começou a deixar de perceber o Iraque como seu maior inimigo no mundo árabe quando os EUA invadiram o país mesopotâmico em 1991, neutralizando o governo de Saddam Hussein. Assim mesmo, o Iraque só deixou de ser visto como inimigo de Israel quando, finalmente, em 2003, os EUA destruíram o país mesopotâmico. Desde então, os israelenses começaram a acusar o Irã de ser a maior ameaça à existência de Israel.

 

Israel não foi o único aliado estratégico dos EUA a apoiar com armas o Irã de Khomeini durante a guerra contra o Iraque; o Paquistão (Estado islâmico sunita aliado da Arábia Saudita) e a ditadura da Junta Militar Argentina foram outros sócios do regime dos aiatolás. Outros governos pró-ocidentais também venderam armas ao Irã, como o Brasil e o Chile.

 

Quando o Irã parecia ser derrotado pelo Iraque, a partir de 1985, os próprios EUA passaram a vender armas diretamente aos iranianos durante a Guerra. Quando os acordos militares entre EUA e Irã foram revelados pela imprensa libanesa e a notícia chegou à imprensa ianque, em meados de 1986, houve um escândalo nacional, o Escândalo Irã-Contras (Iran-Contras Affair), que passou a ser investigado pelo Congresso dos EUA, corroendo quase todo o segundo mandato do governo de Ronald Reagan.

 

Entretanto, o presidente ianque confessou publicamente, no final de 1986, que a venda de armas para o regime de Khomeini não tinha por objetivo libertar os reféns no Líbano, mas, sim, aproximar os EUA dos setores moderados da República Islâmica. Por muito pouco Reagan escapou de um processo de impedimento.

 

É neste contexto de ambiguidade da política externa ianque que Washington D.C. e Bagdá restabeleceram contatos em 1981, culminando na visita de Donald Rumsfeld, enviado de Ronald Reagan, a Saddam Hussein, no final de 1983, restabelecendo relações diplomáticas plenas em dezembro de 1984.

 

Certamente, a aproximação com os EUA foi um alívio momentâneo a Saddam Hussein, virtualmente derrotado na guerra contra o Irã e atacado pelos curdos, aliados de Israel, internamente. A URSS havia congelado a venda de armas para o Iraque, em 1977, por causa da repressão desencadeada ao Partido Comunista Iraquiano (PCI). Os soviéticos eram os principais fornecedores dos armamentos para os iraquianos. França, Brasil e Chile eram fornecedores secundários de armas.

 

A partir desta aproximação entre Washington D.C. e Bagdá, grande parte da esquerda mundial passou a acusar Saddam Hussein de ser pró-imperialista que combatia o governo “revolucionário” iraniano. Mas, a “revolução” que o Irã queria promover no mundo árabe era o sectarismo religioso e as relações entre EUA e Iraque nunca foram das melhores, pois as únicas armas vendidas pelos ianques aos iraquianos foram gás mostarda e alguns helicópteros. A ajuda financeira de US$ 200 milhões para Bagdá era tímida se comparada com os US$ 1,8 bilhão enviados por Israel ao Irã, com o consentimento dos EUA.

 

Ademais, o Congresso dos EUA não cansava de acusar o Iraque de usar armas químicas contra o Irã, mesmo sabendo que os iranianos também as usavam. Desde o início da guerra contra o Irã, Saddam sabia que aliados dos EUA, como Israel, Paquistão e Argentina, para citarmos os casos mais notórios e paradoxais, vendiam armas para o Irã com pleno conhecimento de Ronald Reagan, o que significava que ele consentia este comércio.

 

Mas quando o escândalo Irã-Contras estourou, no final de 1986, Saddam percebeu que os EUA não estavam verdadeiramente ao lado dos iraquianos e acusou os ianques de repassarem informações falsas tanto para o Iraque quanto para o Irã. Em maio de 1987, caças iraquianos dispararam um míssil contra a fragata ianque USS Stark no Golfo Árabe-Pérsico, matando 37 tripulantes. O governo do Iraque pediu desculpas pelo que chamou de “erro”, que foram aceitas pelos EUA.

 

O desgaste máximo foi alcançado, logo após o fim da guerra Irã-Iraque, em 8 de setembro de 1988, quando o secretário Schultz, sem apresentar evidência concreta alguma, acusou Saddam Hussein de usar armas químicas contra os curdos iraquianos no vilarejo de Halabja. Em decorrência da acusação, o Senado dos EUA aprovou unanimemente sanções contra Iraque.

 

Desde então, as relações entre os dois países se deterioraram sem jamais retornarem a bons termos. Em dezembro de 1988, o governo de Bagdá expulsaria diplomata ianque do país; em resposta, Washington D.C. expulsaria um diplomata iraquiano sem identificá-lo. Como se sabe, as relações entre os dois países se desgastaram até a invasão iraquiana do Kuwait, respondida com a primeira grande invasão anglo-americana do Iraque, em 1991, que exterminou mais de 150 mil iraquianos.

 

Por motivos expostos acima, tentar caracterizar as relações comerciais entre Iraque e EUA à condição de alinhamento e ou subordinação dos iraquianos a Washington D.C. não corresponde fielmente à política ambígua de ambos os países. Na verdade, o Iraque, ao se aproximar dos EUA, jamais abriu mão de sua política de bem-estar social, de sua economia fortemente nacionalizada e/ou estatizada, de seu apoio à OLP e a outros países árabes classificados como antiocidentais. De forma alguma esta aproximação fez o Iraque submeter suas políticas às determinações impostas pelas instituições financeiras internacionais do poder global dos EUA, como o FMI e o Banco Mundial.

 

Além disto, o país mesopotâmico não se envolveu em nenhuma outra guerra patrocinada pelos EUA ao redor do mundo, diferentemente do Irã, que enviou tropas para a guerra da Bósnia, ao lado dos ianques e dos sauditas, contra a Iugoslávia, em 1994, e contra o Afeganistão, em 2001. Por fim, Saddam Hussein não concedeu qualquer privilégio aos EUA em sua economia no que se refere ao petróleo. Além de não ter privatizado a exploração de petróleo, que continuou estatal.

 

Portanto, a aliança de Saddam Hussein com os EUA foi meramente tática e jamais se aprofundou numa aliança estratégica. Por outro lado, o fato de os EUA venderem armas tanto para o Irã quanto para o Iraque, simultaneamente, e terem autorizado seus aliados a fazer o mesmo, diz muito sobre as intenções de Washington. D.C. em destruir os dois países. Portanto, os EUA jamais foram aliados do Iraque, como Henry Kissinger deixou bem claro, ao falar sobre a política ianque na guerra entre iraquianos e iranianos:

 

(Nós, os EUA,) Esperamos que esta guerra dure o maior tempo possível e que haja o maior número possível de mortos em ambos os lados.

 

Por fim, as duas grandes invasões ianques do Iraque, em 1991 e em 2003 (que juntas exterminaram mais de 2,5 milhões de iraquianos), dizem muito sobre quem era o maior inimigo dos EUA no Oriente Médio e no mundo pós-Guerra Fria. A primeira guerra travada pelos EUA após a queda do Muro de Berlim e a Anexação da Alemanha Oriental pela Ocidental, entre 1989 e 1990, dois marcos do fim da Guerra Fria, não foi contra os governos comunistas de Cuba, China, Vietnã ou mesmo da Coreia do Norte, tampouco contra a República Islâmica do Irã ou contra a Síria; ela foi contra o Iraque e o governo esquerdista, nacionalista e socialista do Ba’ath, mostrando ao mundo que não haveria tolerância a governos nacionalistas e desenvolvimentistas, ainda mais que fossem bem sucedidos, após o fim da URSS e do bloco soviético.

 

 

Leia também:

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (1)

Os sete mitos criados pela mídia ocidental que ajudaram a destruir o Iraque (2)


Ramez Philippe Maalouf é mestre e doutorando em Geografia Humana – USP.


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