Onde está Amarildo? Onde estão os “desaparecidos”?

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Fábio Alves Araújo
01/08/2013

 

 

O desaparecimento do pedreiro Amarildo Souza Lima, após abordagem dos policiais da UPP da Rocinha, não é um fato isolado. Ele voltava de uma pescaria quando foi levado pelos policiais para averiguação e desde então jamais reapareceu. Policiais alegam que após o depoimento Amarildo foi liberado, porém sua esposa afirma ter visto os policiais colocarem Amarildo dentro de uma viatura policial. O desaparecimento ocorreu no dia 14 de julho de 2013. São muitos os desaparecidos no estado do Rio de Janeiro e Brasil afora.

 

Acabo de realizar uma pesquisa acadêmica (1) sobre o desaparecimento forçado de pessoas. Encontrei vários casos similares. São muitos os Amarildos desaparecidos na região metropolitana do Rio de Janeiro. Cada favela, periferia, subúrbio, tem suas histórias de pessoas desaparecidas. Seria interessante construir uma geografia ou cartografia dos desaparecimentos. O caso de Izildete, ex-moradora de Queimados, Baixada Fluminense, é mais um que vem somar às estatísticas e compor o mosaico dos desaparecidos. Seu filho Fábio Eduardo Soares Santos de Souza é mais um que desapareceu após uma abordagem policial, ao sair de uma festa em um bar. Em outro caso, uma moradora de uma conhecida favela conta que seu filho desapareceu junto com outros doze rapazes, numa ação em que traficantes teriam alugado o caveirão da polícia para invadir uma favela rival. Segundo o relato dessa mãe, durante as investigações foram encontradas ossadas, sangue, roupas, partes dos corpos como dedos etc.. Essa mesma mãe sugeriu que, caso se deseje investigar os desaparecimentos, um bom início poderia ser a drenagem de todos os rios da região metropolitana do Rio de Janeiro, que muito provavelmente estão cheios de cadáveres.

 

Na zona oeste, numa área próxima a Campo Grande, uma mãe teve seu filho desaparecido e após meses depositaram uma ossada dentro de um saco preto no portão de sua casa. Era a devolução dos restos mortais de seu filho. Nesse caso, os acusados pelo homicídio e ocultação de cadáver eram milicianos. Há outros casos em que familiares encontraram apenas partes dos corpos como cabeça, pé... Os corpos são muitas vezes esquartejados.

 

É possível pensar, nesse sentido, em escalas de desaparecimento. Algumas vezes consegue-se encontrar vestígios dos desaparecidos, em outras se consegue encontrar partes do corpo, em outras o que se tem são apenas os rumores, o “ouvi dizer”. A rotina dos familiares passa a ser peregrinar por delegacias, Institutos Médicos Legais, hospitais, bocas de fumo. Onde houver informações sobre um morto ou um desaparecido lá estão os familiares buscando esclarecimentos.

 

Há que se lembrar do caso mais emblemático de desaparecimento forçado pós-ditadura: trata-se da Chacina de Acari, em julho de 1990. Nesta ocasião, onze jovens moradores da favela de Acari e seu entorno teriam sido sequestrados por um grupo de extermínio, formado por policiais, conhecido por Cavalos Corredores. Os jovens jamais apareceram para contar o que se passou. A luta das mães dos jovens ficou conhecida internacionalmente e foi inovadora ao abrir o caminho para uma nova forma de ação coletiva e protesto político contra a violência estatal. As mães ficaram conhecidas como Mães de Acari e só muito recentemente, quando algumas já haviam morrido ou encontravam-se em processos graves de adoecimento, começaram a ser emitidos os primeiros atestados de óbito. No atestado de óbito, o documento oficial emitido pelo Estado, consta causa mortis “ignorada”, e no local de falecimento está escrito “Chacina de Acari”.

 

O desaparecimento de pessoas compreende uma variedade de tipos, situações e circunstâncias, mas é possível afirmar que parte dos casos é composta por desaparecimentos forçados, muitos, como mostra o próprio caso Amarildo, envolvendo integrantes das forças policiais. Há desaparecimentos forçados que ocorrem durante operações policiais oficiais e outros em situações extra-oficiais.

 

Os casos por mim pesquisados indicam a participação de “policiais”, “milicianos” e “traficantes” em casos de desaparecimento. Sendo possível sugerir que há uma espécie de divisão do trabalho, em alguns casos, entre esses atores, no ato de desaparecer corpos. Pode-se também dizer que há uma espacialização dos desaparecimentos forçados, ou seja, eles ocorrem majoritariamente nos territórios da pobreza, sendo os jovens do sexo masculino as principais vítimas.

 

As possibilidades de tematização e enquadramento da problemática do desaparecimento de pessoas são múltiplas, sendo que, nos embates e disputas pelos usos destas categorias, ora o desaparecimento aparece construído como um “problema de família”, ora como “problema de segurança pública”, outras vezes ainda como “problema de assistência social”.

 

As categorias desaparecido e desaparecimento são categorias em disputa, e seus significados estão diretamente associados à pluralidade de vozes que falam, ou deixam de falar, sobre o assunto, envolvendo familiares, autoridades públicas, pesquisadores, movimentos sociais, mídia, entre outros atores.

 

Recentemente, o assunto tem despertado o interesse crescente de pesquisadores que vêm produzindo diferentes olhares e perspectivas sobre essa questão. A trajetória do debate sobre o tema, no Brasil, poderia ser enquadrada em dois contextos históricos: o primeiro refere-se ao desaparecimento político e o segundo diz respeito à forma contemporânea marcada por uma diversidade de percepções sobre o assunto. Enquanto o desaparecimento político é compreendido a partir da noção de desaparecimento forçado e reporta-se ao período da ditadura civil-militar, o segundo engloba modalidades diversas e remete-se ao período pós-ditadura.

 

A figura do “desaparecido” ficou associada nas memórias e na cultura política brasileira à imagem do desaparecimento político e localizada a um certo campo de protesto político, aquele referente à luta contra a ditadura. Uma das heranças que ficou do regime militar foi a polícia militar e todo um conjunto de práticas autoritárias e violadoras dos direitos civis mais básicos, por exemplo, a inviolabilidade do corpo e a integridade física. Essas práticas autoritárias, importante ressaltar, estão arraigadas não apenas na polícia, mas de maneira estrutural na sociedade brasileira, indo desde as relações afetivas às institucionais. E se a prática de fazer desaparecer corpos/pessoas foi um método de repressão da ditadura, permanece hoje como uma técnica de governar pessoas, grupos e territórios.

 

O desaparecimento forçado de pessoas corresponde atualmente a um dispositivo de governo-gestão e que há, por um lado, no plano dos perpetradores, um campo de continuidades, que envolve polícia/milícia/“traficantes”. Por outro lado, há um universo de vítimas possíveis que têm em comum sua vulnerabilidade a esse dispositivo de gestão, pela combinação de variáveis territórios/condição social/atividade/suspeição.

 

O ato de desaparecer corpos, enquanto prática-evento, fornece um denominador comum para atores que geralmente são colocados como distintos ou mesmo antagônicos. Esses atores se movimentam ora “colaborativamente” ora em disputa, mas compartilham de certos pressupostos comuns (por exemplo, que algumas pessoas sejam desaparecidas/“desaparecíveis”).

 

E a pergunta permanece: onde está Amarildo? Onde estão os milhares de Amarildos “desaparecidos”?

 

Nota:

1) Araújo, Fábio Alves. Das consequências da “arte” macabra de fazer desaparecer corpos: violência, sofrimento e política entre familiares de vítima de desaparecimento forçado. Rio de Janeiro: PPGSA/UFRJ, 2012. (Tese de Doutorado).

 

Fábio Alves Araújo é doutor em Sociologia/UFRJ, professor do IFRJ. É membro da Rede de Comunidades e Movimentos Contra a Violência.

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