Os recursos do Pré-Sal para a educação

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Otaviano Helene
29/05/2013

 

 

Considerando os valores previstos no Fundeb para 2013, estados e municípios aplicarão, na educação básica, cerca de R$ 200 a R$ 250 por mês por aluno. Com tais valores, é, evidentemente, impossível fornecer educação de qualidade. Essa falta de recursos leva a uma combinação de problemas que incluem remunerações muito baixas para os trabalhadores do setor, salas superlotadas, poucas horas de permanência dos estudantes nas escolas, muitas “aulas vagas”, ausência de bibliotecas e laboratórios, impossibilidade de responder às necessidades específicas dos alunos que as exigem, entre muitos outros.

 

Os resultados desse subinvestimento são óbvios: professores com péssimas condições de trabalho, desvalorização das profissões ligadas à educação, estudantes com baixo desempenho, alta evasão escolar, não formação dos profissionais de que precisamos, entre vários outros.

 

Precisamos, e urgentemente, de mais recursos para a educação pública. Assim, deveríamos ver com bons olhos as propostas de uso de recursos provenientes da exploração do petróleo e de outros combustíveis fósseis para o setor (apelidado de royalties do Pré-Sal, embora não seja só do petróleo, nem só do Pré-Sal, nem apenas royalties, embora estes últimos correspondam aos maiores valores). Entretanto, devemos analisar os vários aspectos ligados a essa fonte de recursos para entender suas consequências práticas, suas limitações e contradições.

 

I - Quanto os royalties poderiam gerar?


Embora a legislação sobre a questão ainda possa ser alterada, a educação poderá receber recursos da exploração de petróleo e gás natural de duas formas diferentes. Uma delas é a remuneração dos investimentos feitos por um fundo social (FS), criado pela lei 12.351 de 2010, e outra é formada pelos royalties gerados por concessões de exploração posteriores a 3 de dezembro de 2012, Lei 9.478 de 1997, ambas alteradas pela Medida Provisória 592 de 2012.

 

Há, de início, muitas questões que deixam indefinidos os valores a serem transferidos para a educação. Entre as questões referentes ao FS (Lei 12.351) estão a remuneração que poderá ser obtida pelos investimentos feitos por esse fundo e o volume de recursos que ele acumulará.

 

Quanto aos royalties das concessões (Lei 9.478), uma questão diz respeito ao volume de petróleo e outros combustíveis que será explorado pelas concessões posteriores a dezembro/2012. Outra questão está associada aos royalties, pois a legislação define apenas valores mínimos, 5%, e máximos, 10%, calculados sobre o valor da produção. Mais uma questão: qual o preço do petróleo no momento da exploração.

 

Portanto, tudo o que é possível fazer no momento são algumas estimativas. Para entender os limites dessa política de atrelar o financiamento da educação à produção de hidrocarbonetos, vamos estimar os valores “por cima”.

 

Possíveis recursos gerados pela Lei 12.351


Pela Lei 12.351/2010, serão destinados à educação 50% da remuneração do FS que contará com 20% dos royalties, os quais corresponderão a 15% do valor da produção nas áreas do Pré-Sal ou estratégicas. A remuneração à qual a lei citada se refere será obtida com investimentos em ativos, preferencialmente no exterior.

 

Combinando essas informações quantitativas, concluímos que a educação contará com metade da remuneração conseguida investindo-se 3% da produção de petróleo e gás daquelas áreas. Quanto pode ser isso?

 

Para responder a essa questão, precisamos, primeiramente, estimar o volume da produção e a remuneração que aquele fundo pode receber. Com o objetivo de estimar os recursos, vamos nos restringir apenas ao petróleo.

 

Uma produção da ordem de dois milhões de barris por dia é uma estimativa razoável do nível de exploração. Isso corresponde a uma transferência, a cada ano, de cerca de 0,1% do PIB para o fundo social.

 

O passo seguinte é avaliar o possível rendimento desse fundo. Supondo um rendimento de 5% ao ano, a educação receberia um valor da ordem de 0,005% do PIB no primeiro ano, o dobro disso no segundo, o triplo no terceiro etc. Depois de 20 anos, talvez tenhamos chegado a um rendimento anual da ordem de 0,1% do PIB, valor irrisório considerando a necessidade atual de aumentar para 10% do PIB os investimentos na educação pública, atualmente em um patamar próximo aos 5%.

 

Mas essa estimativa está exagerada, pois os recursos gerados podem ser ainda bem menores. Dependendo dos ativos que farão parte do FS e da situação econômica internacional, a remuneração poderá ser nula ou mesmo negativa. A crise financeira iniciada na segunda metade da década de 2000 é um exemplo de que ativos podem se desvalorizar rapidamente e permanecer nessa situação por longos anos (e quando seus valores são deflacionados, esses longos anos podem se transformar em décadas). Portanto, aquele 0,1% do PIB estimado pode estar muito exagerado e o valor real ficar bem abaixo disso.

 

Cabe uma pergunta irônica. Como a lei diz que os recursos a serem transferidos à educação são os retornos dos investimentos feitos, se estes forem negativos, como teriam sido, muito provavelmente, nestes últimos anos, teríamos que retirar recursos da educação e transferi-los ao FS? Ou a lei só vale quando a subtração der valor positivo? Finalmente, dependendo dos banqueiros e investidores aos quais confiarmos os recursos do FS, a serem aplicados preferencialmente em ativos no exterior, o patrimônio poderá simplesmente desaparecer e nada será transferido para a educação.

 

Portanto, pela Lei 12.351, não apenas os valores possíveis são irrisórios, como os investimentos são de alto risco. Além disso, não há nenhum sentido em acoplar o financiamento da educação brasileira à flutuação do mercado financeiro internacional. Que sentido tem fazer com que jovens, crianças, pais, professores e professoras “torçam” pelo sucesso do mercado financeiro internacional para que suas vidas melhorem? Que sentido teria arrochar os salários dos professores brasileiros quando alguma bolsa de Nova Iorque ou de Londres for mal ou quando algum banco de “alto prestígio” quebrar?

 

 

Recursos provenientes da Lei 9.478

 

Pela modificação introduzida na Lei 9.478 (arts. 48-A e 49-A incluídos pela MP 592), a educação contaria com a totalidade dos royalties gerados pelas concessões posteriores a 3/12/2012. Esses royalties estarão entre 5% e 10% da produção.

 

Um primeiro aspecto refere-se ao acoplamento do financiamento da educação à privatização da exploração do petróleo, uma vez que os dois citados artigos referem-se às concessões, regime no qual as concessionárias se tornam proprietárias do petróleo, não a partilhas, regime no qual a União permanece dona do petróleo, ainda que este seja explorado por uma empresa privada, ou a outra forma de exploração dos hidrocarbonetos. Pergunta: pretende-se transformar educadores e educandos em apoiadores da desnacionalização e da privatização do petróleo nacional e de sua exploração? Afinal, segundo a legislação, quanto mais privatizadas e exploradas forem nossas reservas, mais recursos irão para a educação. Será que se pretende que os estudantes, professores, militantes da educação e muitas outras pessoas preocupadas com o desenvolvimento do país façam passeatas com faixas dizendo “privatização já” ou “o petróleo é deles”?

 

Mas, apesar de tudo isso, quanto poderia ser o valor transferido para a educação? Vamos supor que a produção feita como consequência das concessões posteriores a dezembro de 2012 atinja um milhão de barris por dia, o que é cerca da metade da atual produção nacional e, portanto, um valor superestimado. A um valor de cem dólares por barril isso corresponderia, quando a totalidade das concessões estiver sendo exploradas, a cerca de 0,15% do PIB destinados à educação caso os royalties sejam cobrados em seus valores máximos (10%). Se os royalties forem estabelecidos em seu valor mínimo, 5% da produção, teríamos 0,075% do PIB.

 

Qualquer desses valores está muito aquém dos cerca de 5% do PIB que precisaríamos adicionar ao financiamento da educação pública brasileira para atingirmos os necessários 10% do PIB. Nas melhores das hipóteses, se é que privatizar o petróleo brasileiro e explorá-lo de forma intensa, esgotando-o rapidamente, são boas hipóteses, os recursos destinados à educação estariam entre a trigésima e a sexagésima parte do que precisaríamos já hoje.

 

II – Onerar o petróleo é uma forma adequada de financiar a educação?


Um dos aspectos ligados à vinculação do financiamento da educação por meio dos royalties e outros encargos incidentes sobre a produção de petróleo, gás e outros hidrocarbonetos diz respeito ao encarecimento desses insumos. Caso não haja recursos destinados à educação, o custo do gás, do petróleo e de seus derivados, como o GLP (gás de cozinha), o óleo diesel (usado principalmente no transporte coletivo e de mercadorias), a gasolina, o querosene de aviação e o óleo industrial, seriam, evidentemente, inferiores em um valor exatamente igual aos royalties e outros recursos destinados à educação ou a qualquer outro setor.

 

Portanto, devemos ter claro que, sendo o petróleo um insumo fundamental na produção nacional, incluir em seu custo parte do financiamento da educação (parte muito pequena, como já mencionado) implica em aumentar o custo de todos os bens e serviços que dele dependem. O GLP será encarecido, afetando quem cozinha arroz e feijão da mesma forma que quem prepara um faisão ou um coq au vin; o encarecimento do diesel aumentará tanto o custo do transporte de alimentos como o de automóveis importados. O aumento do querosene de aviação, que pode parecer incidir apenas sobre os mais ricos, afetará a todos: mesmo nos países ricos, apenas cerca da quarta parte das viagens aéreas é por turismo; outra quarta parte é por viagens profissionais e que, portanto, são incluídas nas planilhas de custos das empresas ou profissionais que as pagam; outra parte equivalente é paga por governos e, portanto, seus custos recairão sobre a totalidade da população. (As demais viagens são feitas por razões familiares, de estudo entre outras.) Caso esses aumentos fossem progressivos com a renda, talvez tivesse alguma justificativa. Entretanto, grande parte desse custo adicional dos combustíveis afetará a totalidade das pessoas, independente da renda, e, portanto, tem o mesmo efeito dos impostos indiretos, tão criticados pela sua não progressividade.

 

Cabe, portanto, a pergunta. Não seria mais adequado cobrar royalties, ou impostos, ou taxas etc. diretamente do consumo de energia, mas discriminando quanto ao tipo de energia e, principalmente, a finalidade que ela terá?

 

Educação não é um setor demandante de energia


A educação é pouco demandante de energia, quer de forma direta, nas escolas, quer de forma indireta, nos insumos que ela usa. Portanto, por que acoplar seu financiamento à disponibilidade de petróleo, em especial se aplicados às novas fontes, como o Pré-Sal?

 

Para entender essa questão, vamos considerar um setor altamente demandante de energia, a habitação, aí incluídas moradias e infraestruturas urbanas (água, esgoto, saneamento, arruamento etc.), setor no qual o Brasil apresenta muitas e intensas carências. Neste caso, o encarecimento do petróleo por meio de recursos a serem destinados à habitação teria sentido, pois esse setor passaria a ter mais recursos para responder a suas demandas energéticas ao mesmo tempo em que os demais setores veriam o preço do petróleo e seus derivados encarecidos e, portanto, passariam a ter menor acesso a eles. Tal política poderia ser justificada, uma vez que o petróleo é um insumo cuja tendência futura é encarecer, na medida em que a demanda mundial aumenta, e seu resultado levaria à construção da infraestrutura habitacional em um momento em que o custo do petróleo não é ainda excessivamente alto.

 

O mesmo, entretanto, não ocorre com a educação, pois, como já dito, ela não está entre os setores mais demandantes de energia. Portanto, cabe a pergunta: não seria mais adequado aumentar os recursos para a educação pública usando outros mecanismos econômica e socialmente melhores, tais como alíquotas de impostos diretos mais elevadas para as rendas mais altas, impostos sobre grandes patrimônios, impostos sobre consumo de bens supérfluos, impostos mais elevados sobre heranças e outros equivalentes? Dessa forma, recursos seriam transferidos para a educação pública ao mesmo tempo em que seriam retirados de atividades, pessoas e setores sem afetar a qualidade de vida de ninguém.

 

III – Conclusão

 

Além dos valores estimados, há previsão de recursos para a área educacional provenientes de outras fontes ligadas à exploração de petróleo e gás, entretanto, em quantidades ainda menores do que as calculadas acima.

 

Em resumo, se privatizarmos a totalidade do petróleo a ser explorado por meio de concessões e deixarmos que ele se esgote o mais rapidamente possível, os recursos destinados à educação poderiam chegar, no máximo, a cerca 0,15% do PIB nos anos iniciais, atingindo, após cerca de duas décadas, quando a atual reserva provada tiver sido esgotada, a alguma coisa entre 0,20% e 0,25% do PIB. Esse valor é, grosso modo, a vigésima parte do que falta para atingirmos os necessários 10% do PIB. O preço pago – privatizar as reservas, deixar que a exploração e a produção sejam pautadas pelos interesses das empresas privadas que venceram as concessões e, portanto, do mercado internacional e esgotar as reservas atualmente confirmadas – vale a pena?

 

Há, ainda, mais questões. Uma política responsável de exploração de petróleo pode indicar que o melhor a fazer é deixá-lo guardado no subsolo enquanto usamos o petróleo disponível no mercado internacional, reservando o nosso para tempos mais difíceis. Afinal, as reservas provadas do Brasil (segundo informações divulgadas pelo Ministério de Minas e Energia em sua página eletrônica no final de 2012) correspondem a 1% das reservas mundiais (1). Como o Brasil consome cerca de 2,5% do petróleo produzido no mundo, se usarmos o nosso petróleo mais rapidamente, ficaremos, com o passar do tempo, em uma situação cada vez mais vulnerável no que diz respeito à dependência de importações desse insumo. Se o financiamento da educação depender fortemente do petróleo, o que faremos? Para educar as crianças e os jovens, vamos privatizar ainda mais nosso petróleo e deixar que ele se esgote rapidamente? Ou manteremos o petróleo no subsolo e oferecemos às crianças o atual padrão de subescolarização?

 

Finalmente, mas não esgotando todos os aspectos da questão, há uma sutileza de redação: toda a legislação citada se refere a recursos para a educação, não recursos para a educação pública. Isso não é um “pequeno detalhe” de redação: essa é uma das questões que estão em disputa na elaboração do Plano Nacional de Educação. A palavra “pública” após “educação” não existia na redação originalmente proposta de PNE apresentada pelo executivo federal quando ela fazia referência ao percentual do PIB a ser destinado à educação, foi incluída após intensos debates e embates enquanto tramitava na Câmara dos Deputados e pode ser retirada em sua tramitação no Senado Federal se esse item da proposta do relator for acatado.

 

Enfim, não é dessa forma que se trata a questão do financiamento da educação pública em um país.

 

Nota

 

(1) - Caso a reserva do Pré-Sal esteja dentro das estimativas mais frequentes feitas atualmente, as reservas brasileiras atingiriam mais do que 3% das reservas mundiais, criando um equilíbrio entre reserva e consumo.

 

Otaviano Helene, professor do Instituto de Física da USP, foi presidente da Associação dos Docentes da USP (Adusp) e do Inep/MEC.

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