A Lei de Geraldo e a Lei de Gerson

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Reginaldo Parcianello
08/02/2013

 

 

 

A Lei de Geraldo provém de uma frase do governador de São Paulo, quando puniu com rigor militar estudantes da USP que ocupavam a reitoria, em fins de 2011: “Ninguém está acima da lei”. Essa frase, como muitas outras do governador, infelizes porque são clichês, suscitou um vivo debate sobre os acontecimentos políticos internacionais, desencadeados pela Primavera Árabe e sobre a situação dos direitos básicos do cidadão, principalmente do artigo 5º da Constituição: será que todos são iguais perante a Lei?

 

A Lei de Gerson é: “O importante é levar vantagem em tudo”, que proveio de uma publicidade veiculada na década de 70, quando o jogador protagonizou a vitória do futebol brasileiro. Era uma “Lei” condizente com o período político ditatorial, na época em que Rubens Paiva foi torturado até a morte pelos militares, enquanto o “milagre econômico” era abençoado por mãos que acionavam eletrodos colocados nas partes íntimas dos subversivos (hoje os subversivos são os estudantes que ocupam as reitorias de universidades, como única ação política com visibilidade social).

 

A Lei de Gerson é contemporânea do “rouba, mas faz”, isto é, da política oficial dos governistas militares e dos grandes empresários que patrocinavam o regime autoritário. Naquela época, o importante era combater os “esquerdistas”, como diziam, para concentrar a renda, “fazer crescer o bolo”, conforme o ministro da Fazenda, Delfim Netto, e assim o desmantelamento das políticas públicas comprometeu até a base o plano da construção de uma sociedade com dignidade no trabalho, com educação e saúde de qualidade, além de outros direitos.

 

A Constituição Brasileira, art. 5, apresenta todos os direitos básicos do cidadão, desde o nascimento livre à igualdade entre gênero, etnia e credo. Do ponto de vista legal, não há como questioná-la, pois é uma herança da Revolução Francesa e do Código Napoleônico que combatia o Direito do Ancien Régime, assentado na distinção entre os três Estados (clero, nobreza, povo). No entanto, um mínimo de observação nos faz perceber que não há nenhum direito civil básico assegurado aos brasileiros, nem sequer o de domicílio inviolável, nem as vítimas de tortura e estupro são amparadas pela lei (como uma mulher que foi estuprada e torturada por policiais e foi enviada para a prisão por ter roubado uma bolsa: caso inédito na história, de uma vítima de duplo crime hediondo que foi presa por um delito).

 

Neste momento da História, procura-se apagar todo vestígio de pensadores e escritores que questionaram a arbitrariedade da lei e a ação política de cidadãos, em prol de uma causa justa. Cito abaixo alguns exemplos clássicos.

 

Thomas Morus, entre outros renascentistas, concebeu sua Utopia, mistura de ficção e realidade, como o primeiro grande passo da era moderna para a compreensão fundamental de que um país só se torna livre se pensa nas condições materiais e espirituais de seus cidadãos: a Utopia existe em qualquer lugar em que haja esperanças reais da felicidade, sobretudo coletiva, como herança da Grécia Antiga.

 

Blaise Pascal é um ilustrativo exemplo de homem de ciências e teólogo do séc. XVII, que se pôs a estudar a lei e a moral, e concluiu que a arbitrariedade, e não o juízo racional, é que fundamenta a opressão costumeira da lei e da ordem: “– Por que me matas? – Porque habitas do outro lado do rio; se habitasses desse outro, serias meu amigo”.

 

Rousseau foi o primeiro filósofo a desvelar a intrínseca relação entre a opressão legal e propriedade privada. Mas, como o próprio filósofo genebrino reconhece, a natureza humana, uma vez tendo saído de uma condição, não volta ao estado anterior. Por isso, os malefícios da lei, que são totalmente atrelados ao modelo econômico e ao nível de justiça social e distribuição das riquezas, é um problema que deve ser pensado, e não reprimido, por qualquer tendência político-econômica que esteja no poder. Marx aplicou os conhecimentos rousseaunianos de natureza humana e de política na sua crítica da sociedade burguesa.

 

Dostoievski, romancista russo do séc. XIX, revela todo o mal social e espiritual decorrentes do rigor da lei e da pena de morte. O julgamento de Mítia, em Os irmãos Karamazov, mostra como ocorre o simulacro que é a nossa Justiça, com fios invisíveis que ligam os promotores e os jurados. Ela é feita para apanhar os homens comuns, e as questões e diligências nos tribunais são para expor as fraquezas e vícios dos acusados que, por não terem dinheiro ou influência, foram apanhados pelas malhas da Lei.

 

Fernando Pessoa, poeta português do séc. XX, também exprime com clareza o que significa a Lei de Geraldo: é uma lei “restritiva para as classes menos abastadas e, particularmente, para os mais poupados e mais sóbrios dentro delas. Não há lei socialmente mais imoral que uma que produz estes resultados (...): o acréscimo de corruptibilidade dos funcionários do Estado e, ao mesmo tempo, o dos privilégios dos ricos sobre os pobres, e dos que gastam facilmente sobre os que poupam”. Quanto maior é o nível da corrupção, decorrente do legalismo ou Lei de Geraldo, menos ele é visível, porque ele cria uma rede de proteção entre os corruptos, que, ao mesmo tempo, são os agentes de aplicação do rigor da lei para punir os que a contestam!

 

É fácil perceber, pelas referências acima, que a Lei de Geraldo, ao contrário do jogador de futebol (que não é eleito pelo povo) rasga e queima toda a filosofia e toda a literatura de meio milênio de luta contra a opressão e atentado aos direitos humanos. E o fez não somente pelo aspecto formal da infeliz frase do patético governador, mas pelo conjunto de atentados que se seguiram ao ataque militar feito no campus da USP: destruição do campo de refugiados do Pinheirinho; ataque militar contra doentes na Cracolândia; justificação da repressão bárbara da polícia, com muitas mortes de “suspeitos”, que acabou gerando uma série de chacinas e execuções em toda a região metropolitana de São Paulo, nos últimos meses. E isso vale para outro lugar, em que condições análogas são verificadas, desde os grupos de extermínio que surgem por todas as regiões, até as condições dos presidiários, cujos parâmetros são inéditos, mesmo para quem tem noção das masmorras da Idade Média.

 

Digo que a Lei de Geraldo é um travestimento da Lei de Gerson, porque os interesses que moviam a ideia do “levar vantagem em tudo” eram os mesmos dos mais ricos da atualidade, porém na época ainda era possível dizer que os pobres eram pobres porque eram vagabundos e que bastava dispor-se a colocar-se na luta, com a arma do trabalho, enquanto os militares apontavam suas armas para os políticos e cidadãos que questionavam a conduta institucional.

 

A diferença entre o país do Gérson e o país de Geraldo pode ser percebida na história macabra do incêndio da boate em Santa Maria, que não foi uma tragédia, pois não há fatalidade, mas um conjunto de atentados contra a vida e contra a lei. Na investigação do ocorrido, vieram à tona as múltiplas formas de corrupção, que envolvem as licitações, o tráfico de influência, o engessamento do poder judiciário, a impossibilidade de se fazer denúncias contra flagrantes situações de trabalho escravo, de tortura e de direitos fundamentais cerceados o tempo todo e justificados pelo poder público. Na verdade, a corrupção já estava latente em todos os fatores que envolviam a licença para o funcionamento da boate: só vieram à tona por causa das mortes.

 

Na Lei de Geraldo, é possível dizer que não admitimos a tortura, nem a escravidão nem a morte nas portas dos hospitais; no entanto, todas essas coisas continuam ocorrendo e desmascarando, na prática, a teoria da lei “igual para todos”.

 

Um exemplo atual é a ação do Ministério Público (MP) de São Paulo, que indiciou os estudantes que ocuparam a reitoria da USP, em fins de 2011, após uma série de arbitrariedades da polícia no campus, de integrarem uma “quadrilha”. A arbitrariedade do MP começa pela própria atribuição coletiva de “quadrilha” a uma manifestação política. Recentemente, ocorreu um protesto em Portugal, com ocupação da reitoria, e, pelo que consta, nenhuma “quadrilha” foi indiciada por portar palitos de dentes; na Grécia, onde as bombas dos estudantes são de verdade, e não garrafas vazias, não houve nem sequer resposta com balas de borracha. Será que o Brasil é mais sério do que Portugal e Grécia?

 

Duas são as possíveis consequências do indiciamento dos estudantes: a absolvição dos estudantes, e então será hora da verdadeira Justiça desmascarar o MP paulista, para que a censura e a ditadura sejam freadas enquanto é tempo; ou condenação dos 72 “terroristas”, e então será o fim de qualquer manifestação estudantil, pois o facebook não consegue pressionar o governo nem para abrir concurso para professores, e uma simples marcha de estudantes pode comportar uns 30 artigos do código penal, desde crime ambiental por alguém pisar na grama, até o de formação de quadrilha, se um policial provocar uma briga na multidão. E xeque-mate: vitória da Lei de Geraldo!

 

O propósito do governo e do MP é um só: ao cercear a ação política que não seja cega, surda e muda, ocorre a promoção do autoritarismo que, na prática, corta pela raiz qualquer manifestação ou protesto, de modo que as vozes ou quaisquer sinais de protesto são natimortos: basta a imprensa fingir que não ocorreram e a população em geral sequer toma conhecimento. Será que, tal como no caso de Rubens Paiva, serão necessários mais de 40 anos para vir à tona a farsa montada pelo terrorismo de Estado?

 

A ação da PM no campus foi muito similar, do ponto de vista estratégico, ao planejamento de chacinas com participação policial, na periferia de São Paulo, nos últimos tempos: balas disparadas contra o CRUSP (casa dos estudantes) que foram recolhidas, apreensão de câmaras de estudantes que tentavam filmar a ação, com o agravamento do cárcere privado e até mesmo a reclusão de uma estudante, com denúncia de prática de tortura. E isso tudo foi encaminhado ao MP, que preferiu inverter a ação: a denúncia de crimes hediondos da PM foi arquivada e a ação política dos estudantes foi criminalizada. O surpreendente não é o governador utilizar o legalismo para encobrir o autoritarismo estatal: o problema se torna realmente sério quando o Legislativo ignora os acontecimentos e o Judiciário inverte a ação, tornando as vítimas os criminosos, e VICE-VERSA, e assim todos os poderes institucionais aproveitaram o momento oportuno. Há exatos oitenta anos Hitler também aproveitou o seu momento, e incendiou o Parlamento, para inculpar os comunistas, e aproveitou a febre da supremacia racial para atacar os judeus. Até então tudo parecia se encaminhar bem. No Brasil atual, coisas semelhantes têm ocorrido, com a passividade e mesmo conivência dos três Poderes.

 

O MP de São Paulo só concluiu que as garrafas manipuladas pela polícia (sem tirar as digitais dos “terroristas”) eram armas de destruição em massa da “quadrilha invasora da reitoria” após mais um ano de intensas mudanças no mundo; do massacre dos mineiros na África do Sul, que ficou impune; depois que ficou claro que a sociedade brasileira e os intelectuais em geral aceitam a Lei de Geraldo, isto é, que quaisquer formas de pressão coletiva devem ser abolidas, de onde se segue o agravamento dos massacres, chacinas, esquadrões da morte, incêndios em prisões ou boates, seja no Brasil ou nos países periféricos do globo. Acho que não é novidade para ninguém que a Reitoria da USP foi ocupada em diversas ocasiões, igualmente com propósito político, e o MP não concluiu que havia ali uma quadrilha: portanto, a Lei de Geraldo, que não pode aparecer por escrito, foi o fundamento legal da acusação.

 

Souto Maior, em artigo publicado no blog Viomundo, em novembro de 2011, esclarece com extrema lucidez os efeitos da Lei de Geraldo. Para o autor, não cabe ao governante dizer que ninguém está acima da lei, porque, pelo contrário, são os governantes que têm prerrogativas acima dos cidadãos comuns (imunidades, influências e controle do aparato jurídico, em muitos casos) e abafam as vozes contestatórias, imputando aos manifestantes um crime comum (fumar maconha, atentado terrorista com palitos de dente: será que o MP paulista assistiu tantos filmes do MacGyver, que lesou seu cérebro?). Assim, os governantes, ao reprimirem as manifestações estudantis, escamoteiam “interesses que não precisam revelar quando se ancoram na cômoda defesa da ‘lei’”.

 

A Lei de Geraldo substitui a Lei de Gerson na política do Congresso, pois o caráter tosco da simples compra de votos torna-se cada vez mais obsoleto. Claro que o Congresso tem seus ladrões de galinha (os que compram votos do povo por um par de sapatos ou os que vendem seu voto para os governistas) e também os seus batedores de carteira (os que cuidam do dinheiro dos fiéis de suas igrejas), mas os grandes corruptos são os que controlam os votos de uma grande massa eleitoral (a Bancada do Céu, por exemplo) ou os que canalizam as licitações públicas para um número restrito de empreiteiras, num jogo de toma-lá-dá-cá que não envolve dinheiro vivo, mas influência/acordos e, em uma palavra, a partilha do que é bem comum entre uns poucos plutocratas. E a prova dessa corrupção é justamente a concentração de renda aberrante do país, um crime contra a humanidade, mas que não é previsto pela Legislação.

 

A Lei de Geraldo é a Lei de Gerson, com roupagens atuais, menos andrajosas e mais pomposas, pois conta com o aval das pessoas que acreditam que a simples referência à “ética na política” ou ao “combate à corrupção” diminui o índice de corrupção e miraculosamente a lei e os direitos básicos tornam-se verdade.

 

Reginaldo Parcianello é doutorando em Letras na USP.

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