Sociedade, fogo e mídia

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Eduardo Marinho
31/01/2013


Então a mídia tá explorando o sofrimento? Transformando dor em espetáculo? Discute-se a maneira de apresentar os fatos. Respeito pelas famílias, pela dor de parentes e amigos. Fala-se em sensacionalismo, insensibilidade, desumanidade. Procuro olhar além dessa questão ética.

 

Quase ao mesmo tempo desse incêndio, pouco depois, eu creio, mais uma comunidade pobre em área valorizada pegou fogo. Dessa vez, em Porto Alegre – São Paulo teve uma epidemia, recentemente, que não acabou –, queimou a Vila Liberdade, próxima ao novo estádio de futebol do Grêmio, que foi preparado pra Copa do Mundo. O destaque da mídia ao incêndio que matou centenas de universitários foi o biombo perfeito, o procedimento rotineiro dos meios de comunicação privados. Interessa ao lucro, às empresas, a minimização de mais essa “cauterização” social, sempre no trabalho de expulsar pobres das áreas ricas ou em vias de valorização.

 

Nada de surpreender. O fogo tem sido utilizado como uma das formas de expulsão, controle, diminuição, avanço do interesse no lucro por cima das comunidades pobres, culturalmente desprezadas e criminalizadas pelos meios de comunicação. Se fossem contar a quantidade de mortos nesses incêndios que ocorrem em todo lado, criminosamente, seriam milhares e milhares. O número de famílias expulsas, que têm seus poucos e essenciais pertences queimados, que tomam destino ignorado, não tem conta. Há séculos essa é uma característica da nossa sociedade. Tiros, sabotagens, terrorismo, mandatos judiciais, polícias ou jagunços, enchentes, desabamentos ou fogo, qualquer recurso pode ser útil a esse procedimento desumano tão comum, tão corriqueiro nessa estrutura torta, que impõe uma aceitação quase automática pela coletividade, como fatalidade, falta de sorte ou qualquer coisa - a mídia é criativa, quando precisa.

 

O incêndio da Vila Liberdade não é apenas um incêndio. É um procedimento social, uma ferramenta, um recurso usual de empresários sem caráter nem humanidade, em conluio com as mídias e usando políticos comprados nas campanhas eleitorais.

 

A discussão ética me parece dispersão. É sabido e conhecido o desprezo do interesse pela ética. Esse é o comportamento padrão desses meios descontrolados, tão influentes nos parlamentos, nos governos e nos tribunais. Como vou discutir a ética da mídia se não vejo nenhuma ética na mídia?

 

Dias atrás, numa rádio de notícias, os jornalistas falavam de uma manifestação periférica. Moradores de um bairro pobre interromperam uma importante avenida, queimando pneus e encarando a polícia local, causando enorme congestionamento. Esse era o foco da reportagem, os transtornos nas vias em plena hora de trânsito brabo, seis horas da tarde. Era preciso chamar o Bope, trazer os helicópteros pra acabar com aquilo. O problema era falta d’água, que fossem reclamar na prefeitura, não tinham o direito de atrapalhar o movimento de uma via central, interrompendo o fluxo já por si tão denso nesse horário, literalmente parando vários eixos de circulação em vários municípios da grande metrópole. Os motoristas estavam nervosos, irritados.

 

Logo em seguida, os repórteres denunciaram o absurdo de o aeroporto Santos Dumont estar sem água desde a manhã desse dia. Os passageiros eram obrigados a comprar água fora do aeroporto. Questionavam a administração, cobravam pela água, o desrespeito com os passageiros. Ainda por cima com defeito no sistema de ar condicionado, era uma situação inaceitável. Caso pra investigação e determinação de responsabilidades. A reportagem descrevia cenas de passageiros sentados, se abanando entre garrafinhas de água, entrevistava pessoas revoltadas, denunciava o absurdo. Quase dez minutos de falatório, com direito a comentários dos "especialistas".

 

Na periferia, aquela coletividade de milhares de famílias, com idosos e crianças (nunca é demais lembrar), estava sem água em suas casas há mais de uma semana. É possível viver sem água? A desassistência pelo poder público chega a esses extremos. Mas na ideologia da mídia, esses são probleminhas inevitáveis de qualquer sociedade, o que não pode é interromper o fluxo das coisas. Nem desassistir as áreas onde transitam as pessoas visíveis, classes minoritárias que têm desde seus direitos garantidos até privilégios ostensivos (e ofensivos).

 

Se os moradores do bairro pobre fossem se manifestar em frente à prefeitura periférica, longe dos holofotes da mídia, seriam expulsos dali a tiros de borracha e gás lacrimogêneo. Como acabaram sendo, na via pública importante. Só que ganharam visibilidade e no dia seguinte a água chegou a suas casas, pelo temor de novos problemas que afetassem os municípios vizinhos maiores. Racionada, mas chegou. Com pouco a população se vira. E dá-lhe migalhas. Investigar as razões e as responsabilidades pela falta de água, por uma semana, numa comunidade com milhares de famílias, não passou pela cabeça dos repórteres. É uma obrigação do poder público e a necessidade mais fundamental que existe. Mas, para a mídia, só se fosse em outros bairros, com outra gente. Menos pobre, claro. Essa maioria não cabe nas telas de TV, nem nas ondas de rádio.

 

Não há que contestar a mídia, nem apontar algumas de suas falhas. Toda ela, a mídia comercial, é falha, a partir de sua origem obscura e suas relações mais obscuras ainda. A alma da mídia privada cheira a esgoto. A estrutura das comunicações do país está dominada, apesar das lutas para liberar essa área estratégica da sociedade. E joga contra o povo todas as suas forças, no sentido de concentrar poderes e riquezas, de explorar o povo e o patrimônio público, de impor ao Estado o roubo dos direitos da maioria e a criação de privilégios para a minoria dominante e seus servidores de luxo. Privilégios são formados com o roubo dos direitos.

 

Mas essa estrutura de controle das comunicações (e social) está com furos. Cada vez mais, a mídia se desmascara, se entrega. Os vazamentos se fazem, a internet mostra o outro lado, as informações por trás das informações. Quem tem foco, quem busca saber as verdades, sem buscar as verdades convenientes, tem acesso aos fatos reais, ou mais próximos da realidade que a mídia prima por esconder ou distorcer. A maioria ainda tem a cegueira dos viciados, entorpecida pela própria mídia. Mas quem acorda chama outros. Esse é o processo. Sem esperar resultados prontos, apenas participando da caminhada. E isso dá sentido, motivação e satisfação à vida.

 

Eduardo Marinho é artista independente.

 

Originalmente publicado em Observar e Absorver.

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