Privatização do Ensino Superior rebaixa, a cada ano, seu retorno social e cultural

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Otaviano Helene
21/03/2012

 

O ensino superior privado no Brasil atingiu proporções totalmente descabidas: estamos entre os três ou quatro países com maiores taxas de privatização e, provavelmente, o maior em privatização por meio de instituições mercantis. Entretanto, como a propaganda é muito intensa, muitas pessoas acabam por esquecer ou minimizar as muitas características negativas desse sistema e ver apenas os poucos, e quando existentes, lados positivos. A campanha a favor do ensino superior privado é tão grande que o próprio Ministério da Educação chegou a veicular propaganda na qual aponta as vantagens de um financiamento público que permite que alguém frequente uma instituição privada! Alguém poderia imaginar o inverso, instituições privadas fazerem propaganda das vantagens da educação pública?

 

Grande parte dos pais, familiares e amigos dos jovens que hoje completam o ensino médio não frequentou o ensino superior e a maioria dos que o fizeram, inclusive seus próprios professores no ensino médio, frequentaram instituições privadas. Assim, não existe um referencial forte junto à população que permita avaliar os diferentes tipos de cursos superiores e de instituições. Consequentemente, cursos e instituições que em nada contribuem para o país e mesmo para os próprios estudantes acabam encontrando um campo fértil para os negócios e rebaixando ainda mais os critérios para julgamento do que deve ser um curso superior. O resultado é que o aumento da privatização, ao rebaixar os padrões de exigência da população, acaba por dar uma aparência de legitimidade à própria privatização. E aquela absurda propaganda feita pelo MEC contribui ainda mais para transformar em aceitáveis cursos e instituições que deveriam ser inaceitáveis.

 

São muitos os problemas do ensino superior privado e as mensalidades cobradas não estão entre os piores. Um primeiro aspecto diz respeito ao retorno social e cultural dos cursos que oferecem. Como regra, as instituições privadas não oferecem seus cursos em áreas de conhecimento prioritárias nem nas regiões do país onde eles seriam mais necessários. O principal – ou mesmo, único – critério é o financeiro: são oferecidos cursos de grande poder de atração, muitas vezes por simples modismo, e nas regiões onde há clientela, não onde há necessidade. E isso ocorre não apenas naquelas instituições de caráter puramente mercantil e voltadas ao lucro puro e simples, mas até mesmo nas instituições confessionais, filantrópicas ou comunitárias, pois estas também dependem de suas planilhas de custo para se viabilizarem.

 

O ensino superior no Brasil, quando comparado com o dos demais países, caracteriza-se por uma pequena participação da população na idade correspondente e por uma distribuição pelas diferentes áreas profissionais que privilegia diversos cursos nas áreas de administração (muitas vezes adjetivadas e enfeitadas por palavras como competências gerenciais, gestão financeira, gestão de qualidade, gestão logística, empreendedorismo etc., que denotam o aspecto mercadológico que têm) e outras atraentes ou da moda, em detrimento das áreas fundamentais para o bem estar das pessoas e a produção de bens e serviços.

 

Essa opção pela oferta de cursos atraentes pode ser a seguinte. Uma instituição pode oferecer um curso de boa qualidade, com uma carga horária alta; talvez, assim, consiga um grande faturamento por estudante, mas conseguirá poucos estudantes. Entretanto, se oferecer um curso mais barato, terá menor faturamento por estudante, mas, por outro lado, conseguirá muitos estudantes. Como em qualquer atividade comercial os principais objetivos são o faturamento, o lucro; e as altas remunerações que podem gerar a combinação desses fatores levou ao que vemos hoje. Mesmo as instituições confessionais acabam por seguir a mesma lógica, pois ainda que possam não ter como objetivo maximizar lucro ou faturamento, precisam maximizar o número de estudantes, uma vez que são braços importantes de divulgação e de formação de quadros das correspondentes religiões.

 

A tabela ilustra como se distribuem os formandos em alguns cursos em instituições federais, estaduais, municipais e privadas. Enquanto nas instituições federais e estaduais cerca de 5% a 6% dos formandos estão nas áreas de Gerenciamento e Administração, nas instituições privadas eles são 23%! Nos cursos de Engenharia e Medicina, duas áreas fundamentais, uma para o aumento da produção de bens e outra para o bem estar da população, a situação se inverte: as instituições privadas têm percentuais de concluintes muito abaixo daquele observado nas federais e estaduais. E nas duas áreas de ensino mais carentes em professores, Física e Química, as diferenças são gritantes (embora não gritemos o suficiente), ilustrando bem a total ineficiência do setor privado em responder às necessidades do país.

 

Distribuição dos formandos (%) em algumas áreas de conhecimento nas instituições públicas e privadas (cursos presenciais).
Fonte: Sinopse da Educação Superior, Inep, 2010.
Categoria administrativa Gerenciamento e Administração Engenharia Medicina Formação de professores
Física Química
Federais 4,5 14 4,6 0,87 1,2
Estaduais 6,4 10 2,3 0,84 1,2
Municipais 16 6,1 1,5 0,08 0,5
Privadas 23 5,6 1,0 0,06 0,2

 

Essa distorção tem se agravado na medida em que mais e mais instituições mercantis têm surgido.

 

Assim, se hoje temos 23% dos concluintes das instituições privadas em Gerenciamento e Administração, em 1999 esse percentual era de “apenas” 14%. Evidentemente, não se trata aqui de defender que as instituições privadas tenham cursos em áreas de conhecimento mais necessárias ou que eles sejam melhor distribuídos pelo país. Afinal, a educação, desde a básica até a superior, não apenas é um direito das pessoas como, também, é um direito das pessoas que ela seja pública e administrada em respeito às possibilidades e necessidades do país. Apenas assim podemos ter um sistema que responda às carências regionais, aos anseios da população e às necessidades das diferentes áreas de conhecimento, quer estejamos pensando na produção de bens e serviços, quer estejamos pensando no desenvolvimento cultural e social do país.

 

A distorção da distribuição dos formandos pelas diferentes áreas é de responsabilidade combinada do setor público e das instituições privadas. Embora o setor público (ainda) distribua seus cursos de forma adequada, sua responsabilidade deve-se à pequena participação na oferta de cursos e à retração sistemática ocorrida ao longo do último meio século (1): atualmente, apenas 21% das conclusões de cursos superiores presenciais ocorrem em instituições públicas. Se considerarmos apenas as instituições federais e estaduais, uma vez que as municipais apresentam estrutura bastante próxima das instituições privadas (2), aquele percentual cai para 19%.

 

Outro problema criado pela privatização está relacionado à qualidade dos cursos oferecidos que, com poucas exceções, são sofríveis, como mostram as inúmeras avaliações feitas pelo setor público, por órgãos de classe e por entidades ligadas ao ensino de várias profissões. Mesmo usando muitos truques para melhorarem seus desempenhos (3), os cursos oferecidos pelo setor privado mostram-se significativamente piores do que os mesmos cursos oferecidos pelo setor público. Por causa disso, a contribuição que dão às diferentes áreas de conhecimento é limitadíssima, se não até mesmo negativa.

 

Em muitos casos, mesmo as perspectivas profissionais oferecidas aos estudantes é muito pequena ou nula. Outra vertente de problemas que mostra a inadequação das instituições privadas é o tratamento dado aos seus docentes, contratados, em grande parte, como professores horistas, com baixas remunerações e cargas de trabalho e número de estudantes incompatíveis com o ensino superior, a pesquisa e as atividades de extensão.

 

Um último fato. Os programas de subsídios públicos para instituições privadas, tanto os mantidas pelo governo federal como por governos estaduais, que tanto têm contribuído para o crescimento do setor privado, acabam por incentivar maus cursos. Por exemplo, em muitas áreas estratégicas e nas quais temos carências graves, a participação dos formandos do programa Prouni está bem abaixo até mesmo do que se observa na já baixa média das instituições privadas (4).

 

É isso o melhor que o país pode fazer? Certamente, não.

 

Notas:

 

1) Há meio século atrás, perto de 60% dos estudantes nos cursos superiores estavam em instituições públicas. Após o período ditatorial esse percentual já se situava próximo aos 40% e com a investida neoliberal chegou a 30%. Hoje, com o crescimento da privatização na última década, menos do que 20% das conclusões de cursos superiores presenciais são em instituições federais ou estaduais.

 

2) A maioria das instituições municipais é, de fato, instituição privada, tanto do ponto de vista jurídico como na prática de contratação de docentes, dos cursos oferecidos, das cobranças de mensalidades e da vinculação entre ensino, pesquisa e extensão.

 

3) Recentemente (início de 2012), surgiram na imprensa vários fatos envolvendo a manipulação, por parte de instituições privadas, das avaliações feitas pelo MEC.

 

4) Por exemplo, dados recentemente divulgados mostram que menos de 0,2% dos concluintes do Prouni se formaram em cursos de Medicina, contra cerca de 1% na média das instituições privadas e pouco mais de 3% nas instituições públicas.

 

Leia também os outros quatro artigos da série:

 

O analfabetismo juvenil e o ensino superior


Quantidade versus qualidade no sistema educacional


Educação: dois grandes passos para trás


Sistema educacional é um importante instrumento a perpetuar a desigualdade


Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

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