A origem dos 10% do PIB nacional para a educação pública e o reconhecimento de sua necessidade

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Otaviano Helene
22/07/2015

 

 

 

No final da década de 1990, um grande conjunto de entidades científicas, acadêmicas, profissionais, estudantis, sindicais e educacionais, reunidas em um fórum nacional de educação, após alguns anos de trabalho, elaboraram uma proposta de Plano Nacional de Educação, a qual foi apresentado à Câmara dos Deputados (1) antes mesmo que o poder executivo apresentasse o seu.

 

Esse plano, por sua origem, ficou conhecido como o PNE – Proposta da Sociedade Brasileira. Ele era composto por um amplo diagnóstico da educação brasileira, de um objetivo a ser atingido em dez anos e de diretrizes e metas que levariam ao seu sucesso. Um de seus pontos fulcrais era o financiamento, condição necessária para se atingir os objetivos pretendidos, pois de nada valem os melhores discursos, as melhores intenções e os melhores projetos se não existirem as condições objetivas para a implementação de um plano.

 

Para se definir os objetivos a serem atingidos, tomou-se como referência os indicadores educacionais dos países sul-americanos que apresentavam, na época, os melhores indicadores educacionais. Ou seja, por volta de 2010 teríamos indicadores educacionais equivalentes àqueles que tinham os países do nosso espaço geopolítico com melhores sistemas educacionais em meados ou final da década de 1990: manteríamos, portanto, um atraso em relação a nossos vizinhos, os quais evoluiriam, como de fato o fizeram, mas reduzindo as diferenças.

 

A necessidade de financiamento foi estimada com base em duas metodologias complementares. Uma deles era examinar o percentual do produto interno bruto (PIB) empregado pelos países com atrasos educacionais e com contingentes de crianças e jovens em suas populações semelhantes aos nossos e que tiveram sucesso na superação daqueles atrasos. Outro indicador era o investimento por jovem e por criança, em comparação com a renda per capita do país, necessária para manter um bom sistema educacional. Ao adotar o PIB nacional total e o PIB per capita como referências, evitávamos a armadilha de usar uma moeda qualquer – o tão venerado dólar, por exemplo –, o que pode permitir a elaboração de belos discursos ao mesmo tempo em que mostra a inviabilidade de qualquer progresso.

 

Afinal, investir na educação, por criança ou jovem, cerca de 15 mil dólares anuais, ou até mais do que isso, como fazem os países industrializados mais ricos, implicaria em destinar a essa importante atividade mais do que a metade de toda a economia nacional, o que implicaria, mesmo em países com distribuições de renda não extremamente ruins – o que, infelizmente, está longe de ser o caso do Brasil –, sacrificar outras atividades fundamentais, como a alimentação, a moradia e a saúde.

 

Ambas as metodologias indicavam que precisaríamos aumentar gradativamente os investimentos educacionais ao longo de uma década, na medida em que mais crianças e jovens fossem incluídos no sistema, até atingir cerca de 10% do PIB para enfrentar, em um primeiro estágio, nossos piores atrasos. Esse investimento, se feito dentro dos moldes propostos naquele PNE da sociedade brasileira, contribuiria, em muito, para melhorar todos os indicadores nacionais: de educação, evidentemente, mas, também, de saúde (2), de integração social, de superação (ainda que parcial) das desigualdades de renda pessoais e regionais e, inclusive, do próprio aumento da renda per capita e do PIB nacionais.

 

Feito isso, um segundo estágio seria mais fácil, pois os atrasos educacionais estariam diminuídos, a renda nacional e o PIB já estariam crescendo por causa dos investimentos educacionais e as desigualdades estariam reduzidas. Portanto, mais fácil seria encontrar um amplo apoio nacional para continuar a construção de um sistema educacional de qualidade, democrático e não segregacionista.

 

Mas, aqui começam as coisas lamentáveis. Primeiro, o Congresso Nacional não aprovou os 10% do PIB para a educação pública, limitando a apenas 7%. Dez por cento do PIB não era um sonho, mas, apenas, os recursos necessários para que, em dez anos – por volta de 2010 – atingíssemos os padrões educacionais dos países sul-americanos mais desenvolvidos nesse setor.

 

No entanto, 7% do PIB também não era um pesadelo completo, pois poderia permitir reduzir, ao menos parcialmente, nossa barbárie educacional. Infelizmente, o presidente à época, FHC, resolveu, entre outras razões, “pelo prisma do interesse público”, vetar até mesmo aqueles parcos 7%. Aqui cabem as perguntas. A que interesse público o veto se referia? E com que prisma o então presidente estaria vendo o mundo naquele período tão neoliberal da nossa história?

 

Como resultado do veto e do descaso com que a educação pública tem sido tratada no país, inclusive e talvez em especial, pelos governos estaduais e municipais, responsáveis pela oferta da educação básica, estávamos e continuamos estando entre os países da América do Sul com piores indicadores educacionais (3).

 

Mas, voltemos a 2015. Precisamos praticamente duplicar os atuais investimentos públicos na educação pública, passando dos atuais cerca de 5% do PIB a ela destinados para 10%. Porém, e infelizmente, ainda estamos muito distantes dessa realidade. Embora uma das metas do Plano Nacional de Educação, sancionado em junho de 2014, preveja um crescimento do investimento até atingir, em dez anos, 10% do PIB, uma leitura do seu Art. 5º desnuda mais um golpe contra a educação pública.

 

Em lugar de proibir a inclusão entre os gastos educacionais aquilo que não corresponde à educação pública, permite incluir, para fins do atingimento daquela meta, incentivos e isenções de impostos em benefício de instituições privadas, bolsas de estudo, incluindo aquelas voltadas ao desenvolvimento científico e tecnológico, despesas com o financiamento estudantil (como o FIES, federal, ou o paulista programa Escola da Família, por exemplo) e financiamento de instituições privadas (creches, pré-escolas e instituições voltadas à educação especial).

 

Parece uma “conta de chegar”: sabe-se o resultado, aqueles 10% do PIB nacional, e inclui-se tudo o que for possível para chegar a ele. Assim, embora o PNE de 2014 possa implicar em algum aumento dos recursos públicos para a educação pública, é necessária muita imaginação para acreditar que iremos muito além dos atuais cerca 5% do PIB.

 

Um ganho: reconhecimento que o referencial para o financiamento da educação é o PIB nacional, total ou per capita

 

A adoção do PIB nacional como referência para o financiamento da educação foi, certamente, uma vitória. Esse referencial foi incluído na Constituição, embora sem definir o valor. O Plano Nacional de Educação de 2014 inclui o valor entre suas metas, embora faça inúmeras concessões e provoque grandes confusões entre o que é e o que não é investimento em educação e misturando educação pública com privada – com a já referida conta de chegar. Portanto, é possível considerar que houve algum avanço, pois não há mais como falar em educação pública sem se referir ao seu financiamento e, em particular, ao uso do PIB e da renda per capita como referenciais.

 

Mas, infelizmente, esse avanço foi muito aquém do necessário e do exigido pela população. As principais dificuldades para a construção de um sistema educacional público, de qualidade e democrático – bem como de outros avanços democráticos, como os direitos à habitação, o acesso à justiça, o direito a terra, a democratização do acesso aos serviços de saúde, a segurança pessoal etc. – são criadas pela elite econômica nacional, por intermédio dos meios de comunicação que domina, pela imensa sonegação fiscal que retira da educação cerca de uma centena de bilhões de reais a cada ano (outro tanto da saúde e um valor ainda maior do sistema previdenciário) e do financiamento eleitoral que controla e lhe permite eleger tantos legisladores quanto precisarem.

 

Enfrentar essa elite, portanto, é uma enorme e importante tarefa. Talvez, este momento em que se discutem os planos estaduais e municipais de educação seja uma oportunidade de se construir outras articulações, como aquela da década de 1990, que permitiu alguns pequenos (ou pequeníssimos) ganhos. Mas articulações centradas nos grandes pontos, em especial, no maior deles: o financiamento público da educação em cada estado e município.

 

Notas:

 

1) A proposta, apresentada em fevereiro de 1998, contou com o apoio e a assinatura de dezenas de deputados, tendo sido encabeçada pelo deputado Ivan Valente (PSOL-SP), então no PT. Sua íntegra está em http://www.adusp.org.br/files/PNE/pnebra.pdf

 

2) A UNICEF e outros órgãos ligados à saúde têm apontado o fato de que crianças cujas mães são melhor escolarizadas têm melhores saúde e desenvolvimento em comparação com mães menos escolarizadas quando as demais condições, como renda e meio social, são idênticas.

 

3) Ver, por exemplo, o artigo “Um panorama da educação na América do Sul”, Le Monde Diplomatique Brasil, 4/8/2014, acessível em www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1711

 

 

Otaviano Helene é professor no Instituto de Física da USP, ex-presidente da Adusp e do Inep, autor do livro “Um diagnóstico da Educação Brasileira e de seu financiamento”.

Blog: www.blogolitica.blogspot.com

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