‘Se a direita pode ir à rua com sua bandeira suja, temos muito mais gente que apoia as liberdades’

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Gabriel Brito e Paulo Silva Junior, da Redação
21/03/2014

 

 

Pouco afeito a exercícios de memória histórica, o Brasil vive dias de inevitável reencontro com o passado. Às vésperas de se completarem os 50 anos do golpe militar que tirou João Goulart da presidência da República e instalou 21 anos de terrorismo de Estado, ainda vivo em nosso cotidiano, movimentações à esquerda e à direita se insinuam. Resta conferir quais delas, de fato, pautarão as ruas.

 

“Eu não vejo clima para golpe, como alguma parte da direita tenta aventar. Fazem isso de graça, por pura provocação. É uma afronta à memória das vítimas da ditadura militar, às vítimas dos desaparecimentos e das torturas. É uma afronta à memória do povo brasileiro, uma vergonha. Por isso organizamos a Marcha Antifascista, para mostrar que, enquanto existe gente que comemora tortura e morte, tem gente que é contra”, disse “Strife” (codinome), em entrevista ao Correio da Cidadania.

 

Dessa forma, o entrevistado, que falou em nome do coletivo organizador da marcha, desmistifica as ameaças da direita, que a seu ver se resumem à internet e representam apenas o rancor de classe. Em sua opinião, a transição democrática brasileira registra avanços, como a Comissão da Verdade, mas ainda carece de um governo “claramente de esquerda, dos trabalhadores para os trabalhadores”.

 

“O doutrinamento da polícia militar parece que pouco mudou, ou nada mudou. Esse é o resquício mais forte da ditadura que temos hoje. Alguns preceitos morais da sociedade também mostram o forte doutrinamento feito pela ditadura em sua época. Temos resquícios e temos de trabalhar para nos livrarmos deles”, completa, ao analisar nosso legado histórico do regime da caserna.

 

A Marcha Antifascista será realizada neste sábado, 22 de março, a partir das 15:00, e em São Paulo caminhará pelo centro, com destino final nas portas do velho DOPS. A entrevista, realizada com a webrádio Central 3, pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como se deu a organização da Marcha Antifascista deste dia 22 de março? Quem são os organizadores e seus respectivos grupos políticos?

 

Marcha Antifascista: Não estamos identificados com nenhum grupo político. Eles estão presentes, mas apenas como participantes, independentemente dos grupos. E são dos mais diversos. Desde movimentos sociais até partidos de esquerda. A organização do ato é independente e disponibilizamos panfletos para ajudar na divulgação. É algo de povo e com a ajuda do povo.

 

Correio da Cidadania: Acredita que as movimentações anunciadas por setores de direita, principalmente nas redes, são ameaças reais, que encontrarão eco nas ruas e instituições?

 

Marcha Antifascista: Eu não vejo clima para golpe, como alguma parte da direita tenta aventar. Fazem isso de graça, por pura provocação. É uma afronta à memória das vítimas da ditadura militar, às vítimas dos desaparecimentos e das torturas. É uma afronta à memória do povo brasileiro, uma vergonha. Por isso organizamos a Marcha Antifascista, para mostrar que, enquanto existe gente que comemora tortura e morte, tem gente que é contra.

 

Não pregamos o confronto direto. Queremos fazer o contraponto. Se eles podem ir à rua com essa sua bandeira suja e imunda, temos muito mais gente que apoia as liberdades, a democracia e os direitos.

 

Correio da Cidadania: Como você avalia a democracia brasileira após mais de 20 anos de regime militar, a nossa chamada “transição democrática”?

 

Marcha Antifascista: Os primeiros governos eleitos adotaram políticas neoliberais. Elas avançaram no governo de Fernando Collor e foram intensificadas no governo Fernando Henrique Cardoso. O Itamar fazia uma crítica bem posicionada a ele, tanto que se recusou a apoiar FHC. Depois, Lula e Dilma se propuseram a fazer um governo de esquerda. Mas vimos não ser possível, pois me parece que o partido deles abandonou essa luta e se afastou da causa.

 

Queremos ver o povo na rua pra mostrar que não queremos um governo que namora as elites. Queremos um governo claramente de esquerda, social, do povo, livre para todos. Um governo dos trabalhadores para os trabalhadores.

 

Correio da Cidadania: Em tempos em que já temos uma razoável historiografia a respeito das mentiras que alimentaram o golpe e no momento em que também passamos por uma Comissão Nacional da Verdade, você acredita mesmo que haja espaço concreto para uma tentativa golpista?

 

Marcha Antifascista: A direita existe só em um lugar: na internet. Só lá que vemos eles agindo, propondo, mostrando a cara. Porque, quando marcam ato de rua, vemos 20, 50 pessoas, no máximo. É uma elite acomodada, que tem raiva de ver o filho da empregada na mesma sala do seu filho na faculdade. Raiva de ver o filho da empregada sendo chefe de seu filho. É uma elite rançosa, preconceituosa. E se mostra apenas na internet, por ser acomodada, porque acha que lá pode atuar. Mas só o faz nos espaços dela. E nós da esquerda fazemos o contraponto. Se for por eles, ficam somente ali.

 

O estabelecimento da Comissão da Verdade foi um grande avanço, joga uma luz sobre os porões da ditadura, mas não é suficiente. A revisão da Lei de Anistia tem de ser feita urgentemente. O Brasil é um dos únicos países da América Latina que não prendeu torturador, não investiga as obras feitas no governo militar... É um retrocesso, e ainda é uma vergonha, pois tem gente querendo fazer a roda da história girar para trás, ver a vergonha e a morte novamente.

 

Correio da Cidadania: Você vê um legado ainda forte da ditadura, tanto nos aparatos institucionais como na relação com a população?

 

Marcha Antifascista: Não digo forte. Mas ainda existe, presente no dia a dia. O doutrinamento da polícia militar parece que pouco mudou, ou nada mudou. Esse é o resquício mais forte da ditadura que temos hoje. Alguns preceitos morais da sociedade também mostram o forte doutrinamento feito pela ditadura em sua época. Temos resquícios e temos de trabalhar para nos livrarmos deles.

 

Correio da Cidadania: Do ponto de vista dos movimentos que têm ido às ruas, como acha que será marcado esse ano político de 2014, com a Copa do Mundo cercada de polêmicas e contestações, tentativas parlamentares de aprovar legislações punitivas mais duras e um processo eleitoral logo a seguir?

 

Marcha Antifascista: Vejo os movimentos contra a Copa como legítimos. Temos de questionar a forma como foi executada e promovida a Copa, porém, algumas reivindicações vieram tarde demais. O gasto do dinheiro público deveria ter sido contestado quando o Brasil foi escolhido. Agora que os estádios foram construídos, não tem volta atrás. Não tem como o Estado devolver o estádio para a construtora.

 

Mas outras demandas, como as desocupações de comunidades, pela forma como foram feitas, são legítimas e devem ser exigidas até o final, para mostrar que não é assim que se faz uma Copa ou um grande evento, não é assim que se rege uma sociedade.

 

Quanto ao processo eleitoral, vejo um dos anos mais conturbados. Teremos uma das eleições mais disputadas da história da República. Pois um governo claramente de direita – digamos que o PT é um governo de centro-esquerda que namora a direita – não assume o poder faz tempo. Isso deixa a direita ensandecida, nervosa. Talvez seja um ano político conturbado e muito agitado.

 

Ouça aqui o áudio da entrevista.


Leia também:

De rosto coberto ou descoberto – Editorial

“Precisamos saber quem matou e como morreram as vítimas da ditadura” – entrevista com o deputado estadual Adriano Diogo, membro da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva.


Gabriel Brito e Paulo Silva Junior são jornalistas.

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