Ocupações: nova tática de luta pelo SUS

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Maíra Mathias
24/06/2016

 

 

 

Quem passa pela Rua México, no centro da capital fluminense, percebe que o velho prédio onde funcionam o Núcleo Estadual do Rio de Janeiro (NERJ) do Ministério da Saúde e a Secretaria estadual de Saúde está diferente. O saguão do edifício, com seu rotineiro vaivém de pessoas, tem sido palco de aulas públicas, debates, rodas de conversa, reuniões, plenárias e vigílias madrugada adentro, animadas com música ao vivo. Vários metros acima, no 9º andar, o corredor que dá acesso aos gabinetes do NERJ se transformou em espaço de convívio e resistência. São barracas, colchões, sacos de dormir, paredes repletas de cartazes coloridos que dão o recado do que está acontecendo ali desde o dia 7 de junho: #OcupaSUS #ForaTemer. A nova tática de luta em defesa do Sistema Único de Saúde no contexto do governo interino de Michel Temer começou em Salvador, no dia 30 de maio, chegou a Belo Horizonte no dia 3 de junho e tomou a forma de ocupação relâmpago por 24 horas em Florianópolis, no último dia 6.

 

“Vivemos um momento histórico único para o campo da saúde, para o SUS. Há muito tempo a gente não tinha de fato a capacidade de aglutinar tantas forças em uma frente tão ampla em defesa do SUS. Acredito que a possibilidade de agregar esses movimentos e estabelecer diálogo se inicia com o movimento do Fora Valencius, que culminou com a ocupação da Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Drogas no prédio do Ministério da Saúde em Brasília por 123 dias, uma ocupação de muito fôlego extremamente vitoriosa. A gente tem neles o exemplo do que queremos fazer aqui”, avalia uma das ocupantes do prédio no Rio, trabalhadora da saúde que não quis se identificar com medo de represálias da Organização Social (OS) à qual é vinculada.

 

Pelo menos no Rio e em Salvador o #OcupaSUS se articulou com as ocupações do Ministério da Cultura (MinC) que continuaram nos dois estados mesmo após a recriação da pasta. Na terça-feira (14), no Rio, também o prédio do INSS foi ocupado. “A ideia é que a gente possa construir uma rede de ocupações no centro do Rio e também fomentar ocupações do Ministério da Saúde em todo o Brasil”, explica a ocupante.

 

Alerta vermelho para o SUS

 

Embora grande parte dos ocupantes avalie que o desmonte do SUS já estava acontecendo durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), uma série de declarações à imprensa feitas pelo ministro interino, Ricardo Barros, foram interpretadas como ameaças abertas à universalidade do Sistema, incentivando a militância a realizar ações diretas de enfrentamento.

 

“O SUS tem passado por um processo de privatização importante, inclusive nas últimas gestões petistas. Também vive um longo processo de subfinanciamento e uma intensificação da cobertura de planos privados de saúde, incentivada pelo governo e pela ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar). No entanto, essa correlação de forças se agudiza com a instabilidade do Brasil gerada pelo governo Temer, que é fruto de um golpe, e tem montado um arcabouço teórico e principalmente legal para colocar na Câmara dos Deputados, onde tem maioria, vários projetos de lei que intensificarão a destruição do SUS”, analisa o ocupante Leandro Oliveira, da Frente Povo sem Medo, que faz um alerta: “Se perdermos o SUS agora, não vamos conseguir reconquistá-lo a curto e médio prazo porque o Sistema Único foi fruto de um caldo de cultura política de uma década de redemocratização que não estamos mais vivendo”.

 

Os exemplos mais citados do acirramento do desmonte são o projeto do governo Temer de propor um teto para os gastos federais, impactando direitos sociais como saúde e educação, e a Proposta de Emenda Constitucional (PEC 04/15) – esta enviada ao Congresso pelo governo Dilma Rousseff – que prorroga até 2023 e amplia de 20% para 30% a Desvinculação das Receitas da União (DRU). O mecanismo permite ao governo realocar livremente 30% das receitas obtidas com contribuições sociais, dentre outros elementos do orçamento, afetando diretamente o SUS. A PEC, aprovada em segundo turno na Câmara no dia 8 de junho, também estende a permissão de usar livremente receitas para estados e municípios. Para entrar em vigor, a proposta ainda precisa ser votada em dois turnos no Senado.

 

Maria Inês Bravo, da Frente Nacional Contra a Privatização do SUS e do Fórum Estadual da Saúde do Rio de Janeiro, concorda que está em curso uma “visível aceleração do desmonte dos direitos” e que esse movimento é anterior ao atual governo. “Nesse sentido, é claro que o ‘Fora Temer’ é uma pauta, mas não sozinha. O que a gente defende é o SUS colocado na Constituição Federal. É nessa linha que a gente está nas ocupações, nos atos. Estamos nos movimentando em todo o país na luta contra o desmonte, contra o ataque à universalização do SUS que foi colocada pelo ministro. Mas precisamos ter clareza de que essa proposta não é nova. Ela já estava na Agenda Brasil”, relembra ela, fazendo referência ao documento que listava projetos ‘prioritários’ apresentada pelo presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL) em 2015, ainda no governo Dilma.

 

“A gente acha fundamental a mobilização das pessoas, fazer trabalho de base. Porque a população vê que o SUS não está funcionando e começa até a questionar sua existência, mas ela não enxerga que não está funcionando porque faltam recursos, pessoal, não vê as condições objetivas. A nossa tarefa é muito grande, de colocar que o SUS que está aí não é o SUS que a gente está defendendo”, acrescenta Maria Inês. Além do Rio de Janeiro, a Frente Contra a Privatização também participa da ocupação em Belo Horizonte.

 

Ocupações: laboratório do futuro das esquerdas?

 

Para André Dantas, ocupante do prédio pela Unidade Classista – corrente sindical ligada ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) – as ocupações têm revelado “potencial de enfrentamento da ordem”, a exemplo da luta dos secundaristas em São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul. “As ocupações são promissoras como uma tentativa da esquerda mais e menos organizada de sair do ‘apatetamento’ que tem vivido nos últimos tempos, que é fruto da sua crise de tática, de estratégia e de projeto. Então, que as ocupações venham para oxigenar, sem, contudo, desprezar ou desmerecer outras táticas de luta que a classe trabalhadora construiu ao longo de séculos”, analisa ele, que também é professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz).

 

“A ocupação não é um fim em si mesma. Ela é um dispositivo de resistência ao governo golpista e a todos os retrocessos que estão sendo anunciados, não só na saúde, mas na economia, na previdência social. É uma forma de articulação para construir a agenda de lutas”, define, por sua vez, a sanitarista Laís Relvas, que faz residência em Medicina de Família e Comunidade na Fiocruz Bahia/Fundação Estatal de Saúde da Família (FESF) e ocupou o escritório do Ministério da Saúde em Salvador.

 

Seja por terem um potencial de convivência no sentido literal do termo, seja por estarem sendo usadas como instrumento de uma nova militância que não se liga a partidos ou sindicatos – os chamados autonomistas –, as ocupações parecem ir além da denúncia e, neste momento, também servem como exercício de construção diária de unidade nas esquerdas.

 

“A despeito da forma, o que talvez seja mais interessante destacar é que essa mesma esquerda que também bate cabeça nas formas que precisa desenvolver de luta para dar conta dos enfrentamentos que precisa fazer, tem feridas muito potentes para resolver. E tocar nessas feridas é condição sine qua non para que ela consiga se reerguer”, analisa André Dantas, se referindo ao que caracteriza como “crise do projeto das esquerdas nos últimos 30 anos” que assumiu “coloração dramática na última década com os governos do PT”.

 

Por abarcarem vários partidos, correntes, sindicatos, movimentos sociais e autonomistas, Dantas acredita que as ocupações terão que conviver e saber combater as prováveis tentativas de hegemonização. “Essa ferida está colocada aqui nessa ocupação e creio que em todas. O retorno a campo dessa militância que até então fez a defesa cega dos governos do PT é um fato novo. Isso não significa que essa mesma esquerda não queira e em boa medida não consiga hegemonizar essa luta. Portanto, se a bandeira do Fora Temer nos unifica agora, ela não pode desvalorizar a crítica que precisa continuar sendo feita. A ferida que está posta aqui para nós é que a gente não está lutando apenas contra o governo ilegítimo de Temer, mas também contra a burocratização dos partidos e das centrais sindicais que de um modo geral rifaram as bandeiras da esquerda em nome de um projeto de construção de pactos pelo alto, de encaminhamento exclusivo pela via institucional, desmerecendo o trabalho de base. Se a hegemonia que se manifesta hoje nessa unidade servir para encaminhar a luta para os mesmos rumos o que resta no horizonte é derrota de novo”, analisa ele.

 

O Portal EPSJV/Fiocruz entrevistou ocupantes de Belo Horizonte e Salvador que explicaram que, diferentemente do que ocorre no OcupaSUS no Rio de Janeiro, nesses estados, além do Fora Temer, a pauta da militância avança para o ‘Volta Querida’, referência ao retorno de Dilma Rousseff à presidência da República. “Nossa ocupação também é contra essa situação do machismo hoje no país. Nós vivemos em um país onde as mulheres além de não ter oportunidade, quando conseguem, são perseguidas. A Dilma hoje é uma mulher perseguida por todas as questões internacionais, por todo o interesse internacional no mercado brasileiro, por todo o interesse da direita, mas também porque ela é mulher”, avalia Conceição Resende, da ocupação de Belo Horizonte.

 

Escracho ao ministro em Salvador

 

A ocupação do escritório do Ministério da Saúde em Salvador se encerrou no dia 13 de junho com o primeiro escracho público sofrido por Ricardo Barros. Convidado pela Associação Baiana de Medicina – entidade que também esteve presente na controversa reunião em Brasília da qual participaram movimentos pró-impeachment como ‘Vem Pra Rua’ –, Barros foi à capital baiana falar sobre ‘as perspectivas para o SUS’. “Fazer do escracho do ministro o nosso ato de saída foi simbólico. Esperamos ele chegar, fizemos palavras de ordem, fizemos ‘cusparaço’. Lá de dentro eles conseguiam ouvir, durante toda a palestra, a gente incomodou”, conta Laís Relvas. Ela denuncia que um secundarista foi preso durante a repressão policial ao escracho.

 

A decisão de desocupar foi tomada após uma avaliação coletiva de que a presença física no prédio do Ministério da Saúde já tinha cumprido o seu papel. "Uma ocupação de 15 dias como fizemos foi fundamental porque nós saímos muito fortalecidos. Mas a gente não quer ficar entre as paredes do prédio do Ministério. A gente precisa ir além, precisa avançar”, diz Laís.

 

O foco dos militantes se volta para agendas nos bairros de Salvador como o ‘Juvecine da Saúde’ no Bairro da Paz, onde o evento organizado pelos jovens do território que reúne cinema na praça e arte urbana debateu o golpe e seus impactos no SUS. Outras atividades na rua como um ato em apoio à presidente Dilma e contra o golpe no dia 16 e uma vigília pelo SUS, dia 17, no Pelourinho, foram feitas. Também não está descartada a tática das ocupações relâmpago que durem 24 ou 48 horas.

 

Durante a ocupação, foi criado o Comitê Estadual de Saúde das frentes Brasil Popular e Povo sem Medo. “Saímos com o entendimento que embora todo mundo ali tivesse sua militância individual ou representação em outros coletivos, e alguns militantes não necessariamente estejam organizados, seria a partir do Comitê que continuaríamos dando garantia à agenda da ocupação”, diz Laís. Ela ressalta que ocupar o prédio foi fundamental para garantir a conexão entre as pessoas que querem lutar contra o governo interino e defender o SUS: “nós fomos a primeira ocupação e tínhamos muita expectativa de que a nossa ocupação fosse um dispositivo de estímulo para que outros estados se organizassem e fizessem as suas ocupações. Agora nós estamos começando a discutir a produção de textos em conjunto com as outras ocupações. Estamos em contato com as outras ocupações até porque queremos ampliar isso em nível nacional. Queremos estimular que isso aconteça porque para nós foi fundamental”.

 

Maira Mathias é jornalista. Matéria retirada do site da Fiocruz.

 

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