Acerto com Clube de Paris é faca de dois gumes para Argentina

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Eduardo Gudynas
09/09/2008

 

O governo de Cristina Fernandez de Kirchner anunciou que pagará toda sua dívida de 6,706 bilhões de dólares com os integrantes do "Clube de Paris". Tal grupo reúne 19 países e atua como espaço de negociação informal entre nações devedoras e credoras. A Argentina realiza esse movimento num contexto de debilitação presidencial, junto à persistência na interrupção dos pagamentos de sua dívida, que a mantém isolada de quase todos os mercados internacionais. Isso a obrigou a buscar financiamento do governo de Hugo Chávez, porém com resultados negativos que superam os benefícios financeiros.

 

Cristina Fernandez segue as diretrizes gerais da administração de seu marido, Nestor Kirchner, que manteve duros enfrentamentos contra o Fundo Monetário Internacional (FMI). Nestor Kirchner cancelou a totalidade das dívidas com o FMI em 2005 (9,5 bilhões pagos em dinheiro vivo), tal qual Brasil e Uruguai, apesar dos caminhos distintos. Agora é sua esposa quem faz um movimento similar. O pagamento ao Clube de Paris consumirá somente 14% das reservas do Banco Central e, portanto, é viável sem que se prejudique a economia nacional. Neste clube, a dívida argentina está concentrada em seis países, destacando-se Alemanha (30%), Japão (25%), Itália e Espanha (8%), Holanda (9%) e Estados Unidos (7%).

 

O governo de Cristina Kirchner toma essa decisão num contexto de enfraquecimento; passou por um longo conflito com as organizações rurais e perdeu uma votação crítica no Congresso. Além do mais, está enfrentando diversos problemas, destacando-se entre eles o crescimento da inflação e maiores tensões dentro do partido do governo.

 

Esses e outros problemas afetam muito mais os escassos vínculos com os mercados globais. É que a Argentina permanece com a suspensão dos pagamentos de sua dívida (default) desde 2001. Renegociou apenas uma parte dela, e vem se financiando com recursos próprios, com o Banco Mundial, o BID (organismos com os quais nunca interrompeu seus pagamentos) e a venda de títulos. Parte significativa desses papéis é comprada pelo governo de Hugo Chávez.

 

No início de agosto, precisava de dinheiro e, para retomar a confiança dos atores financeiros, a Argentina vendeu títulos à Venezuela por aproximadamente 1 bilhão de dólares. O problema é que o juro que cobra o governo Chávez é substancialmente mais alto que o obtido nos mercados internacionais. Nessa compra, Caracas aplicou juros de 15%, enquanto nos mercados internacionais eles estão na faixa de 5%. Tal operação, por um lado, é uma mostra de solidariedade, pois são pouquíssimos os que adquiririam papéis da dívida argentina; mas, por outro lado, "negócios são negócios" e cobra-se uma taxa de juros muito elevada. Caracas comprou papéis argentinos por cerca de 6,3 bilhões de dólares.

 

Além disso, o governo venezuelano vende esses papéis em poucos dias para o mercado secundário. Nessa operação, os bancos venezuelanos compram a dívida pela cotação oficial do dólar, que é baixa, mas vendem em seguida para o mercado secundário a uma cotação mais alta, e nisso está seu verdadeiro e suculento ganho. Portanto, o preço dos papéis argentinos não importa muito e acabam vendidos a baixos valores. Na última operação de agosto passado, seu valor caiu cerca de 6% em poucos dias e isso terminou por deteriorar ainda mais a situação platina. Essa operação obrigou o governo Kirchner a recomprar seus próprios papéis no mercado secundário a fim de elevar a confiança dos investidores. O risco país aumentou mais uma vez e superou os 700 pontos.

 

A decisão de pagar ao Clube de Paris é, portanto, uma clara tentativa de atender a vários credores para que volte a conseguir fontes de financiamento distintas aos bancos multilaterais ou à Venezuela e de obter um pouco mais de confiança. Porém, o Clube impõe que, para qualquer negociação, o país deve ser avaliado e auditado pelo FMI. No entanto, essa é uma condição que Néstor e Cristina Kirchner não estão dispostos a aceitar.

 

Há vários fatores por trás desta decisão. Para alguns representa uma atitude de independência diante do capitalismo global, enquanto outros recordam que uma auditoria externa confirmaria que o governo manipula indicadores econômicos, em especial o índice de inflação. Este é um dado importante, pois há papéis argentinos que pagam de acordo com o nível de inflação; com menor inflação, paga-se menos.

 

Por outro lado, alguns governos dentro do Clube de Paris, como os da Alemanha e Japão, indicaram que também exigiam um plano de pagamento para as dívidas com os credores privados que não entraram no plano de troca da dívida. A Argentina lhes deve 23,561 bilhões de dólares e não existem no momento propostas de pagamento; como muitos deles entraram com processos judiciais, os novos empréstimos permanecem bloqueados. O governo Kirchner também não aceitou essa condição.

 

Tais fatores levaram o governo argentino a cancelar o total desta dívida sem negociar nada. Os analistas financeiros internacionais interpretaram a medida como uma mostra de inflexibilidade, o que, consequentemente, não aumentou a confiança dos mercados. Na semana do anúncio o risco país voltou a subir de 671 para 722 pontos.

 

Mesmo assim, o debate interno sobre o pagamento é forte. Muitas organizações cidadãs, como a Jubileu Sul da Argentina, questionaram a decisão. Acertadamente recordam que aproximadamente metade dessa dívida com o Clube de Paris se arrasta desde a ditadura militar e outros governos anteriores, e assim a consideram ilegítima. Paralelamente se somou outro ingrediente do debate político: a suspeita de que esta regularização também busca solucionar as disputas com a França, a fim de se liberar um empréstimo para a construção de um "trem de supervelocidade" entre Buenos Aires e Córdoba (estimado em 2,1 bilhões de dólares, provisão que seria concedida por um banco francês). Trata-se de obra muito cara e luxuosa, que contrasta com o péssimo estado das linhas de trem tradicionais na área metropolitana de Buenos Aires. Acaba sendo incompreensível destinar recursos a um trem de luxo enquanto o transporte popular está à beira do colapso.

 

Para complicar mais as coisas, se bem se anunciou que o governo pagaria diretamente essa dívida apelando aos mecanismos de emergência que seguem sendo usados desde a crise de 2001, com o passar dos dias ficou evidente que será necessária uma lei aprovada no Congresso, tarefa que não será nada simplória para o governo de Kirchner. No entanto, a dívida externa segue crescendo. Em 2009, a Argentina tem vencimentos de 20 bilhões de dólares pela frente.

 

Eduardo Gudynas é analista de informação no D3E (Desenvolvimento, Economia, Ecologia e Eqüidade), centro de investigações dos assuntos latino-americanos sediado em Montevidéu.

 

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