O que é agir eticamente?

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Cassiano Terra Rodrigues
19/11/2009

 

Nos dias que correm
a ninguém é dado
repousar a cabeça
alheia ao terror.

Eduardo Alves da Costa, No caminho com Maiakovski.

 

O filme de Ettore Scola, ‘Concorrência desleal’ (Concorrenza Sleale, Itália-França, 2001), nos oferece a ocasião para refletir um pouco mais sobre a questão do agir ético.

 

A ação se passa na Itália, em 1938, e se inicia um pouco antes da visita de Hitler a Mussolini, indo até o momento em que os judeus são enviados pelo último à Alemanha.

 

Dois vizinhos, Umberto (Diego Abbatantuono) e Leone (Sergio Castellito), são concorrentes: o primeiro, alfaiate, começa a se incomodar com o aumento da clientela do segundo, que abre uma loja de roupas prontas, manufaturadas e mais baratas, ao lado da sua. Umberto se incomoda: além de conquistar a clientela, Leone se aproveita de suas vitrines e slogans, usando uma tática de vendas, digamos, tão "esperta" quanto "agressiva", estabelecendo a concorrência desleal à qual o título do filme alude.

 

Um detalhe: Umberto também é "desleal" – ele monta suas vitrines à noite, antecipando estações, na tentativa de desbancar o concorrente; Leone, mais esperto, faz o mesmo e ainda se aproveita das vitrines de Umberto para destacar as suas. Outro detalhe: Umberto é católico, "ariano", Leone é judeu. Não precisamos lembrar o que isso significava no regime fascista.

Umberto é bom pai de família. Trabalhou a vida toda como alfaiate, preocupou-se unicamente com sua profissão, a educação dos filhos, o sustento da família, o pagamento dos impostos, nunca se envolveu em confusões. Talvez seu único tormento seja o cunhado que não trabalha e vive em sua casa como um parasita. Mas, quando Leone e sua família começam a sofrer perseguições por serem judeus no regime fascista, o mundo lá fora bate à porta, e não o faz com delicadeza.

 

Depois de uma briga, por causa de uma guerra de vitrines, Umberto e Leone vão parar na delegacia. O delegado dispensa o último e entrega a Umberto um formulário, dizendo, em particular, mais ou menos o seguinte: "Se o senhor tiver alguma coisa a declarar sobre seu vizinho, se o senhor tiver notado alguma coisa estranha e quiser que as autoridades tomem alguma providência..." Basta denunciar e Leone terá seu alvará cassado. Umberto, resoluto e cauteloso, recusa o formulário.

 

Passado algum tempo, Leone tem sua vitrine apedrejada com um paralelepípedo. A polícia chega e quer abafar o caso, recusando-se o quanto pode a abrir um inquérito, investigar, buscar os responsáveis pelo ato de vandalismo. O mesmo delegado tenta se esquivar da responsabilidade legal que lhe cabe. No meio da rua, às claras, Umberto vem em defesa de seu concorrente: "Sr. Delegado, e o Sr. acha que quem cometeu essa barbaridade pode ficar impune?!". No fim, o delegado cede; é duvidoso que o inquérito prossiga...

 

Por que Umberto vem em defesa de seu concorrente? Ele teria todas as razões para não defender Leone, mas ainda assim o faz. Vejamos.

 

Seu filho namora a filha de Leone. Como católico, Umberto poderia ver nisso um motivo para desejar distanciamento de Leone e sua família. Mesmo assim, ele não age segundo os dogmas religiosos; na verdade, isso sequer entra em cogitação. Ele chega mesmo a desgostar da separação dos dois, ocorrida pela imaturidade preconceituosa de seu filho.

 

Sem a loja de Leone, a alfaiataria de Umberto seria a única loja de roupas da rua – nada mal, em tempos de instabilidade e incertezas quanto ao futuro, não ter concorrência nos negócios. Mas, por causa de sua atitude em defesa de Leone, Umberto perde um rico e importante cliente. Mesmo assim, ele não age por interesse comercial. Inclusive, quando sua mulher lhe insinua que ele poderia denunciar Leone às autoridades, ele a rechaça violentamente.

 

Tampouco Umberto age por convicções políticas. Em uma cena, seu irmão, o professor Angelo (Gérard Depardieu) lhe cobra: "E você, nunca tem uma opinião? Nunca se posiciona? O mundo todo em tumulto e você não diz nada, não faz nada?". De fato, Angelo representa no filme a relação com o mundo lá fora. Umberto – ele mesmo o reconhece – só sabe de tecidos, medidas de roupas, costuras e ternos. Todos ali parecem se preocupar única e exclusivamente com si mesmos. Filmado em ambientes internos, um único cenário externo, o filme reforça a impressão de isolamento e distanciamento com relação aos acontecimentos políticos. Umberto sai em defesa de seu concorrente sem seguir cartilhas políticas.

 

No contexto em que vive, Umberto tem todos os motivos para ser egoísta, mas não é. Ele também tem todos os motivos para ser calculista, mas não é. Nem o sucesso, nem o fracasso, de suas ações estão em questão: trata-se de agir corretamente. É por isso que suas ações têm um valor moral incondicional. Esta é a lição primeira da filosofia moral de Kant.

 

Uma ação só tem valor moral se for feita por causa do dever. Não basta que ela seja conforme ao dever. Com efeito, se ajo visando meus interesses particulares e acidentalmente minha ação está conforme ao dever, todo valor moral de minha ação se esvazia. Afinal, se não agi determinado pela vontade de fazer o que é correto, mas tendo em vista um objetivo egoísta (que, se for conforme ao dever, tanto melhor, mas se não for, tanto faz), a minha orientação não é autônoma, isto é, o valor de minhas ações não é dado por mim mesmo, mas pelo valor do objetivo a ser atingido. Resto, portanto, determinado por algo que me é extrínseco e não ajo livremente. Umberto é o exemplo do homem livre, nesse sentido: sua determinação é autônoma e, nas circunstâncias, tão necessária quanto inútil, já que não lhe traz vantagens particulares.

 

Não é o objetivo, mas a máxima da ação que lhe confere valor moral. Essa determinação pessoal, que faz com que o indivíduo se eleve acima do dado sempre cambiante da experiência, faz com que sua vontade seja boa em si mesma, independentemente de suas inclinações pessoais, da utilidade ou inutilidade que nada podem acrescentar ao valor moral de uma ação. Umberto age como é correto agir: independente das circunstâncias, que são mutáveis, ele faz o que deve, sem ceder ao mais proveitoso ou ao medo de conseqüências negativas.

 

Portanto, o dever é a necessidade de realizar uma ação unicamente por respeito à lei moral. E que lei é essa que me permite saber independentemente de todas as circunstâncias o que devo fazer? Kant a enuncia assim: "Devo proceder sempre de maneira que eu possa querer também que a minha máxima se torne uma lei universal".

 

Umberto não vê na situação de Leone um meio para progredir nos negócios, não se vale de uma ocasião para se garantir politicamente (como o faz seu cunhado), e tampouco tenta algo quixotesco movido pelos sentimentos – o que também seria inútil, mas por outras razões. Umberto age como crê todos devam agir – considerando o outro assim como se considera a si mesmo, usando sua razão em público, sem seguir uma ordem apenas porque lhe foi dada, sem ceder às tentações fáceis de lucro e benesses que o momento lhe apresenta.

 

O mundo está contra nós; nem sempre podemos agir como queremos, freqüentemente falhamos, mas não por alguma falta nossa. A intervenção de Umberto não consegue evitar o exílio de Leone e sua família, o mundo sempre nos fará oposição feroz, sempre tentaremos agir apesar disso, nunca poderemos ter certeza do resultado, só da nossa motivação.

Só há, portanto, uma única coisa que depende inteiramente de nós mesmos: o uso que fazemos de nossa vontade e de nossa razão, ou seja, se queremos o bem porque ele é necessário, ou se queremos o bem visando algum outro interesse egoísta. A história de Umberto nos alerta da importância de querermos o necessário acima do vantajoso.

 

Cordiais saudações.

 

***

 

CINEMA VIVO: II Mostra Live Cinema, de 24 a 29 de novembro de 2009, em São Paulo. Mais informações: http://www.livecinema.com.br/

 

Cassiano Terra Rodrigues é professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pensa que o dever exercido autonomamente é cada vez mais necessário.

 

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