Líder intelectual da restauração conservadora da igreja é sua maior vítima

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Guilherme C. Delgado
15/02/2013

 

 

 

Pautado a falar sobre temas de economia, política econômica, economia política etc., encontrei uma maneira de falar da crise eclesial desencadeada pela renúncia do Papa Bento XVI, que não se insere em qualquer domínio convencional da economia, mas no conceito de ‘economia da salvação’ ou ‘economia da Revelação’.

 

Esclareço preventivamente que a economia da salvação, no sentido teológico das ações, palavras e obras comunicadas por Deus à humanidade, não está em crise, mas sim as estruturas humanas encarregadas da transmissão da palavra divina.

 

A renúncia do Papa, seguida das reflexões por ocasião da homilia que pronunciou na quarta-feira de cinzas, põe a nu um problema que o próprio Papa renunciante havia interditado à discussão pública. Quando ainda Cardeal da Congregação para Doutrina da Fé, puniu Leonardo Boff, que havia levantado corajosamente o problema do exercício do poder legítimo na Igreja em seu livro “Igreja, Carisma e Poder”. Ironicamente, agora, a sucessão do Papa se dá num ambiente de crise aguda do exercício de um poder absoluto, formalmente de um Estado-Igreja, monarquia absoluta de direito divino.

 

O Concílio Vaticano II criou ou ratificou algumas instâncias de ‘democratização’ do poder eclesial – o Sínodo dos Bispos, as Conferências Episcopais nacionais e regionais e toda uma cultura de colegialidade e descentralização. Mas os dois últimos papados, especialmente o de Bento XVI, realizaram na prática um retrocesso à ordem antiga da ultracentralização romana. E tal movimento não se justificou em nome das reformas da Igreja, mas, ao contrário, para não fazê-las. E, contraditoriamente, o líder intelectual dessa restauração é a grande vítima das engrenagens de poder que ajudou a criar.

 

Todas essas questões são conhecidas de longa data pelos católicos medianamente informados, especialmente por suas hierarquias. Mas são literalmente interditadas ao debate público. É preciso que ocorra uma renúncia papal, seguida de denúncia tácita das ‘divisões internas’ e da ‘hipocrisia religiosa’, para que voltemos ao tema do poder religioso, por ocasião da sucessão do Papa.

 

Por distração ou desinformação, a mídia começou a tratar do tema da sucessão de maneira convencional, tentando adivinhar quem será o novo Papa, de que Continente, de que tendência eclesial etc. Mas este é um debate limitado. Não vai ao cerne da questão. O que está em causa é a ultracentralização do poder religioso e o seu desvio da função carismática essencial, induzido pelas tentações de todo poder absoluto.

 

Os Estados modernos resolveram o problema do absolutismo, de diversas maneiras, mas convergindo para o sistema democrático constitucional, a separação de poderes, os princípios republicanos e a soberania popular substituindo o soberano príncipe, de direito divino. A Igreja, na sua estrutura interna, desdenha dos princípios da democracia e da República. Ainda que se defina no Concílio Vaticano II a Igreja como povo de Deus, não há qualquer interesse em afirmar a cidadania religiosa desse povo, especialmente da maioria esmagadora dos leigos.

 

Não se pode evidentemente transpor estruturas de poder do mundo civil para o religioso, porque são distintas suas missões. Mas há um adágio popular muito rico em sabedoria – ‘o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente’ -, que é válido também para o poder religioso. E corromper aqui significa deixar-se dominar pelas tentações do ‘Príncipe’, abandonando na prática o testemunho de Jesus Cristo. Tentações estas nada abstratas, pelo que se deduz da fala de Bento de XVI na quarta-feira de cinzas.

 

O lado bom da situação atual é podermos tratar dessas questões publicamente, sem medo de interdições. Pena que nossa imprensa religiosa não discuta mais profundamente as questões internas da Igreja. Os problemas que Bento XVI levantou não vão se resolver por atos de fala da autoridade religiosa. E nós todos, partícipes deste Povo de Deus, temos direito e dever de participar dessa economia da salvação em pleno Século XXI, na condição de cidadãos fiéis que precisamos também ajudar a superar a crise de poder da Igreja, porque dificilmente a cúpula do poder religioso o fará por iniciativa própria.

 

Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

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