Estados Unidos: enregelamento intelectual

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Virgílio Arraes
16/02/2009

 

Um dos efeitos mais expressivos da queda do muro de Berlim e da conseqüente derrocada do socialismo real, a partir do Leste europeu, foi o mea-culpa expresso por vários intelectuais, cientes havia muito da erosão sistêmica daqueles governos constituídos em sua maioria pouco tempo depois da Segunda Guerra Mundial. Grosso modo, as análises dividiram-se em duas.

 

A primeira preocupou-se em registrar um balanço crítico do socialismo real, inserido na Guerra Fria, de maneira que contribuísse para a renovação de uma proposta política alternativa e progressista, em que se valorizasse mais a democracia, sem aceitar, por conseguinte, a supremacia final do capitalismo ou o fim da história.

A segunda, embora inventariasse de modo crítico também as gestões na Europa Oriental, portou-se de modo inaudito, ao refutar não somente o passado do sistema como também as possibilidades de aplicação futura, caso ele fosse renovado pela experiência histórica.

 

Julgadores exigentes, os intelectuais - politólogos, historiadores, economistas, sociólogos, internacionalistas e outros - do segundo campo, ao admitirem sem restrições o malogro do Leste europeu, não tergiversaram em migrar rapidamente para o sistema perdurante, ou seja, o único plenamente viável aos seus olhos.

Agregaram-se ao pólo vencedor, abjurando o passado com rancor – muitos de forma pública ou mesmo espalhafatosa. Recém-convertidos, passaram a pregar as virtudes da democracia neoliberal e as mazelas dos regimes totalitários ao apontarem, a todo momento, os problemas de pequenos países, especialmente Cuba, talvez por estar próximo dos Estados Unidos.

 

Diante da necessidade de redimir, portanto, o passado equivocado, muitos se tornaram ideólogos da ordem vigente, ao advogarem a necessidade iminente de implementação de democracias em todo o globo, mesmo paradoxalmente à força.

 

Menos expressivos na Europa Ocidental, onde a tradição social-democrata persiste, apesar dos últimos reveses eleitorais, nos Estados Unidos os novos conservadores juntaram-se ainda no final dos anos 80 e início dos 90 a centros de análise, ou formaram novos a fim de modelar o papel futuro de seu país perante o mundo.

Desta forma, os neoconservadores norte-americanos, apeados precocemente do poder ao final do mandato de George Bush pai, utilizaram o período da gestão de Bill Clinton para aperfeiçoar as diretrizes firmadas na transição do fim da Guerra Fria. Incapazes de renegar totalmente a sua influência ideológica pretérita, extraíram do pensamento político de inspiração comunista o conceito, ainda que adaptado, de revolução permanente.

 

No século XXI, o objetivo de transformação direciona-se para os regimes totalitários de esquerda – Coréia do Norte - e de direita – Iraque – anacrônicos na nova ordem. Mesmo considerando a inexorabilidade de seu fenecimento, a responsabilidade dos formuladores conservadores era impulsionar o processo, de sorte que as suas populações pudessem ser libertadas.

 

Nesse sentido, todos os contratempos deveriam ser considerados provisórios ou de pouca consistência. No auge do seu messianismo político, nenhuma autocrítica era feita; continuavam a lançar severas admoestações aos Estados renegados, encaixados os seus principais no Eixo do Mal.

 

Em termos de política externa, a antiga esquerda – em parte composta de vários radicais – aliou-se aos cristãos conservadores, a quem outrora criticava. Bem articulados na escrita - em alguns casos, também na retórica radiodifusora -, eles auxiliaram a estruturar a moldura pró-guerra, ao invocar uma ética intervencionista, conforme expressão de Jean Bricmont, professor da Universidade de Louvain.

 

No fundo, a postura favorável destes intelectuais à guerra infinda para materializar o regime universal da democracia liberal encontrou o seu zênite no primeiro mandato de George Bush, embalado pelo ataque aos Estados Unidos de forma inesperada, visto que país algum assumiu o atentado, como ocorria com as confrontações tradicionais.

 

Sem contendores clássicos - como a União Soviética ou, antes, a Alemanha -, os neoconservadores localizaram o opositor em seu projeto ‘neoiluminista’: o islamismo, ao identificar o seu segmento mais radical atrelado ao terrorismo. Assim, a mensagem apresentada ao mundo ocidental é a da disputa entre o secularismo e o fundamentalismo; ou o Ocidente e o Oriente; ou, por fim, a democracia e a teocracia.

 

O final melancólico da gestão Bush indica que a renovação não deveria ser tão-somente partidária, mas também cultural e política, sem a qual continuarão os Estados Unidos enredados em suas próprias engrenagens administrativas.

 

Virgílio Arraes é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e professor colaborador do Instituto de Relações Internacionais da mesma instituição.

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