Argentina: economia em recuperação

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Virgílio Arraes
06/12/2007

 

O governo Néstor Kirchner, conquanto não tenha sido de esquerda, diferenciou-se de outros na América do Sul, mesmo proclamadamente socialista, como no Chile, trabalhista, no Brasil, ou progressista, no Uruguai. É pacífica a visão de que as reformas neoliberais na Argentina, na esteira do otimismo do fim da Guerra Fria, debilitaram muito a sua economia, já combalida por anos de hiperinflação e dívida externa.

 

Durante a sua gestão, obteve-se um crescimento econômico expressivo diante da média da América do Sul, ainda que se considere a partir do ano de 2001, período mais profundo da crise. No entanto, não houve capital interno necessário para recuperação ou mesmo ampliação da infra-estrutura, notadamente em petróleo e eletricidade - privatizada em 1991 para grupos espanhóis -, sem grandes investimentos desde 1998.

 

Na década de 90, o Fundo Monetário Internacional elegeu a Argentina como o modelo a ser seguido no continente. Assessoramento – como na Lei da Reforma, em 2000, afeta à flexibilização da legislação trabalhista e somada à da modificação previdenciária, de 1993 - e empréstimos por parte da organização estiveram bem presentes nas gestões Menem e De la Rúa. Paradoxalmente, no mandato de Kirchner, a instituição faria mea culpa, ao reconhecer que a política econômica aplicada naquela década havia levado à crise em dezembro de 2001. 

 

O quadro socioeconômico influenciou a Casa Rosada a instituir, por exemplo, uma comissão com o fito de avaliar o funcionamento dos concessionários públicos no tocante a investimentos e qualidade dos serviços. Desta forma, a eventual rescisão de contratos facilitar-se-ia. Por outro lado, à medida que os investimentos se ampliassem, o governo revisaria o valor das tarifas. 

 

A recuperação econômica reduziu o desemprego, principalmente entre os mais qualificados, novamente atrai mão-de-obra estrangeira, principalmente bolivianos, paraguaios e chilenos, e reforça o movimento sindical. No campo, os setores mais beneficiados são os dos (grandes) produtores de soja e milho e dos criadores de gado.

 

Há ainda grande número de famílias a sobreviver de subsídios estatais, à moda da bolsa-escola no Brasil. Elas concentram-se bastante em torno de Buenos Aires e são eleitoralmente numerosas. Tal qual o Brasil, o parco auxílio financeiro destina-se a aplacar conflitos sociais, ao mitigar a miséria, e, ao mesmo tempo, formar clientelas partidárias ou pessoais – no caso, isto auxiliaria a vitória de Cristina Kirchner.

 

Contudo, não se esqueça de que o governo Kirchner reestruturou a dívida pública, cuja soma havia atingido mais de 100 bilhões de dólares. Na dramática renegociação, ele havia proposto pagar 25% do total, apesar da pressão dos países do eixo norte-atlântico - entre a metade de 1998 e a de 2002, o produto interno bruto retrocedeu 20%, 11% apenas no último ano. O dólar chegou a valer quatro pesos. Mais da metade da população havia superado a linha da pobreza.

 

No final de 2005, o produto interno cresceu quase 35 % e a linha da pobreza permaneceu abaixo de 40%, embora os salários estejam baixos – a Confederação Geral do Trabalho tem um relacionamento político muito próximo do governo e desfruta ainda de mais representatividade do que a Central de Trabalhadores da Argentina, mais independente.

 

O câmbio está na faixa de um dólar para três pesos.  A inflação superou a casa dos 10%, o que leva o governo a continuamente negociar com as grandes redes de supermercados - muitas das quais estrangeiras -, a fim de evitar possíveis processos por formação de cartel, e com grandes criadores de animais, para destinar parte da produção para o mercado interno.

 

No início de fevereiro de 2006, a Argentina antecipadamente quitou com o FMI sua dívida de nove bilhões e meio de dólares. Lá, este resgate foi considerado além do aspecto econômico, ao restaurar simbolicamente a soberania, por permitir maior liberdade política - expressa na recusa em reajustar as tarifas públicas de acordo com o cotidianamente solicitado pelas concessionárias - e por descartar auditoria permanente do Fundo.

 

Kirchner, de certa forma, observou a si mesmo como o responsável pela recuperação, ou melhor, atualização do peronismo, assaz desgastado pela crise de 2001. Provindo de um dos estados menos povoados e, portanto, mais desprovidos de força política, ele sobrepujou os seus congêneres de Santa Fé e de Córdoba para lançar-se, a partir do apoio do presidente Eduardo Duhalde, contra Carlos Menem.

 

Ao longo de seu mandato presidencial, ele evocou um nacionalismo populista, o que desnorteou a direita neoconservadora - representada no menemismo - e a esquerda, incapaz de ir além de um moralismo ou, em alguns casos, do sectarismo político. Além do mais, manteve-se distante do setor mais reacionário das forças armadas e da Igreja, ao posicionar-se a favor da revisão da legislação anistiadora dos anos 80, contrária aos direitos humanos.

 

Desta forma, a gestão Kirchner não se localiza, como já mencionado, à esquerda, mas não incorporou passivamente recomendações do sistema financeiro internacional, como no caso brasileiro, por exemplo – vide a autonomia política do Banco Central, presidido desde janeiro de 2003 por um ex-filiado do Partido da Social da Democracia Brasileira.

 

 

Virgílio Arraes é professor de Relações Internacionais na UnB.

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