Os ribeirinhos do Médio Xingu (3)

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Lisa Feder
16/09/2008

 

Finalizei a segunda partedeste artigo contando como que toda a comunidade de São Sebastião no Rio Xingu fora recentemente expulsa de sua antiga localidade, que foi completamente desmatada por fazendeiros, tendo que mudar-se para sua localização atual, alguns quilômetros rio-acima. O povo de São Sebastião reclama que na nova localidade há uma descida íngreme que dificulta o acesso diário ao rio. Eles lamentaram a perda da sua terra natal e a perda das castanheiras. Lamentaram, mas não tanto como eu esperava. Estavam resignados. Eles nos contaram sobre a primeira vez que os grileiros chegaram por lá e mandaram-lhes sair. Os grileiros queimaram todas as casas, menos a igreja. A maioria dos seus objetos pessoais foi queimada. Então, só restou-lhes reconstruir a aldeia nesse novo loção. Não gostaram muito da localização por causa do morro, mas era a mesma comunidade. Agora tinham uma escola e construíram uma igreja nova para São Sebastião, o santo padroeiro da aldeia. Todo ano a comunidade faz uma procissão religiosa de barcos no rio, com velas acesas em honra do santo. Eles nos convidaram para a próxima procissão, em janeiro. Filmamos entrevistas com quatro homens. Uma mulher quis falar conosco sem ser filmada.

 

Estávamos a um dia de viagem de São Félix do Xingu, e quatro dias rio-acima de Altamira. Retomamos o caminho do rio às 16 horas. Má viagem, começamos a ver nuvens escuras por toda parte. Nunca vi uma tempestade tão forte como esta em que atravessamos no rio Xingu. As nuvens não perdiam tempo com "gotas de chuva", lançavam baldes de água. Piscinas inteiras caíram sobre nossas cabeças por mais de 30 minutos. A chuva caía tão forte que parecia que iria perfurar nossos rostos, então nos escondemos debaixo das lonas junto com as malas. Rapidamente, as nuvens passaram e nos deixaram um belo arco-íris.

 

Logo mais, pararíamos para pendurar as redes em algum lugar imprevisível pela última vez nessa viagem e dormir. Russ, que coordenava a expedição, e eu adoramos a forma como nosso barco, com sete pessoas, podia atracar diante da casa de qualquer ribeirinho sem anúncio e ser tão bem recebido. Sempre levávamos comida para dividir. Mas normalmente lhes deixávamos de presente sem cozinhá-la, pois comíamos o que eles já tinham feito. Deixamos bolachas e sucos para as crianças e arroz, leite em pó e café para a casa. E eles nos ajudavam a pendurar as redes e no que mais precisássemos. Os ribeirinhos pareciam felizes de trocar suas noites de paz à luz de velas por uma casa cheia de estrangeiros. Geralmente, ligam os geradores e a única lâmpada brilhante pendurada do teto. E ligam a televisão para qualquer partida de futebol ou programa de auditório.

 

Quando não tinham gerador ou combustível para ver TV, ficávamos nas redes até tarde, escutando estórias do rio, de pescarias, encontros com grileiros e índios. Era mais ou menos como eu imaginava o oeste selvagem dos Estados Unidos há 150 anos, só que no Brasil. Tinham muito a dividir com os estrangeiros e velhos companheiros.

 

Encontrei o Louro, meu novo amigo ribeirinho, mais duas vezes depois daquela viagem. Primeiro em Belém. Ele conseguira viajar com Herculano e alguns outros ribeirinhos para Brasília, tão longe de suas casas, para pedir oficialmente ao governo, no dia 13 de maio, a criação imediata de uma reserva extrativista (RESEX) que o governo havia prometido. Uma vez estabelecida a RESEX, os ribeirinhos terão licença legal para morar em uma área demarcada onde os fazendeiros não serão aceitos e onde poderão obter uma renda sustentável a partir de atividades extrativistas, como a venda de castanhas, açaí e outras frutas, além de artesanatos.

 

Louro estava barbeado e vestido em roupa especial. Estava elegante. Como nos reencontramos em Belém, ele me deu um abraço forte como se fosse uma antiga amiga. Foi muito bom encontrar um rosto familiar da terra dele lá na cidade estranha. Eu estava feliz de lhe ver também. Sentamos-nos num banco e ele contou-me um pouco dos acontecimentos na capital federal. Depois, me presenteou com uma camisa com letras de preto dizendo, "Chega de blá, blá, blá. Queremos nossa RESEX já!".

 

A outra vez que eu vi Louro foi na segunda manifestação em Altamira "Xingu Vivo Para Sempre", contra a barragem hidroelétrica de Belo Monte, que aconteceu entre os dias 19 e 23 de maio 2008. O evento chegou às manchetes internacionais, 19 anos depois do famoso protesto contra a barragem em que a índia Tuíra esfregara o seu facão contra o rosto do então presidente da Eletronorte, demonstrando sua insatisfação com o projeto de construção da usina. Dessa vez, um monte de ribeirinhos se juntou aos povos indígenas.

 

Alguns ribeirinhos chegaram de canoa, em cima dos ombros dos seus amigos até o interior do ginásio esportivo de Altamira. Os índios, vestindo cocares de penas coloridas, portando facões e bordunas, pintados de vermelho e preto, eram mais numerosos e visíveis que os ribeirinhos. A vida dos índios também seria prejudicada pela construção da barragem. Os Kayapó eram o grupo mais numeroso.

 

Louro abraçou-me rapidamente antes de nos separarmos em direções diferentes. Eu escutei interessadamente os discursos apaixonados de Herculano e outros ribeirinhos em frente ao ginásio. Herculano também falou para a impressa internacional. Os índios dançaram e cantaram seus gritos de guerra. Os ribeirinhos cantavam, "Aha, uhu, nossa vida é o Xingu".

 

Por estas bandas, os ribeirinhos e os índios vivem vidas parecidas e combatem os mesmos inimigos. Quando não estão combatendo os fazendeiros e grileiros, têm que confrontar a Eletrobrás, responsável pelo projeto da barragem, financiada pelo governo brasileiro. Lutam contra o modelo de desenvolvimento econômico nacional, posicionando-se a favor da proteção dos peixes do rio e da flora e da fauna da floresta tropical.

 

A meu ver, bem mais do que a questão do corte de facão no braço do engenheiro da Eletrobrás, muito divulgada em todo o mundo, o ponto alto da semana foi a manifestação pacífica na beira do rio Xingu dos índios e ribeirinhos no final do encontro. Apesar das diferenças entre eles, com aparência, culturas e línguas diferentes, são brasileiros e demonstraram companheirismo devido à sua associação com o rio. Primeiro, as mulheres Kayapó entraram para se banhar com as crianças nos braços, como fazem cotidianamente nas aldeias. A impressa internacional ficou louca com a imagem. Desempenhando o seu papel, os homens demonstraram uma técnica tradicional de pescar.

 

Com a água na altura da cintura, eles bateram a água ritmicamente, como fazem com o cipó chamado timbó, que dopa os peixes por asfixia, podendo ser capturados com as mãos. Mais fotos! Esse ato inspirou os ribeirinhos a mostrar sua parte. Um ribeirinho montou em uma canoa em terra e os seus companheiros levaram–lhe nas costas até o rio, soltando a canoa. Lançou uma linha à água e rapidamente pegou um peixe! Os Kayapó bateram palmas e deram gritos de felicidade. Os ribeirinhos ficaram orgulhosos, com os olhos cheios de lágrimas. A sorte de um peixe assim tão rápido foi como se o universo estivesse concordando que sim, que suas vidas são o Xingu.

 

Os ribeirinhos e os povos indígenas estão lutando contra uma pressão crescente sobre suas terras. Ambientalistas de todas as partes vieram para lhes apoiar. Assim, o povo local torna-se mais consciente da importância global da problemática ambiental desta sua região e de como esta importância global serve às suas causas locais. Povos indígenas e tradicionais não são ecologistas. Mas estão aprendendo com as suas experiências que podem defender seu modo de vida aliados a esta causa internacional. Ao fazê-lo, eles percebem a importância de continuar a viver sua vida sustentável. Está provado que a obtenção de renda a partir de produtos renováveis da floresta é a melhor maneira para o povo local do Xingu manter sua terra, sustentar suas famílias e contribuir para o desenvolvimento econômico nacional.

 

Lisa Feder é antropóloga norte-americana e faz trabalhos na Terra Indígena Kayapó.

 

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