Aliança do governo com o agronegócio impulsiona desmatamento

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João Alfredo Telles Melo
31/01/2008

 

 

A notícia do recrudescimento do desmate na Amazônia vem em pior hora para o governo federal, que vinha comemorando, desde o ano passado, a redução, pelo terceiro ano seguido, do índice de desmatamento, pois este havia chegado a um dos menores números – embora ainda extremamente elevado – desde que se começou a medição por satélite: 11.224 km², para o período 2006/2007.

 

O alerta dessa retomada já vinha sendo feito desde meados do segundo semestre de 2007. No dia 23 de setembro, o jornal “O Globo” estampava: “Devastação da Amazônia volta a crescer: queimadas em áreas de floresta sobem 30% este ano em relação a 2006 e serrarias operam a todo vapor” (Rodrigo Taves). Em 16 de outubro, era a vez do “Estado de São Paulo” denunciar, a partir de dados do Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD), operado pelas Ongs Imazon e ICV: “Desmatamento volta a crescer e faz governo rever plano para Amazônia”. Ali, informa-se que a devastação no estado de Mato Grosso (ao lado do Pará e de Rondônia, os campeões de desflorestamento) “saltou 107% na comparação de junho/setembro com o mesmo período de 2006” (Cristina Amorim).

 

A própria ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, reconheceu, agora, que “já é possível dizer que o aumento do preço da soja, o avanço do gado na Amazônia e a derrubada de árvores para as siderúrgicas de ferro-gusa são as causas principais do desmatamento. Seus assessores lembraram que a derrubada da floresta aconteceu principalmente em Mato Grosso, Rondônia e no Pará, estados onde esses setores da economia têm avançado muito nos últimos anos” (O Estado de São Paulo, 24.01.2008).

 

O que evitou o desmatamento de 2004 a 2007?

 

A questão da variação do preço das commodities agrícolas já vinha sendo apontada pelas Ongs como uma das causas – embora o governo à época não quisesse admitir – da queda do desmatamento a partir de agosto de 2004 (após o pico de 26.130 km2, verificado entre agosto de 2003 e agosto de 2004). Na publicação “Faltou Ação ao Plano de Ação”, o Greenpeace apontava, dentre os fatores que tinham contribuído para a queda dos índices, o “momento desfavorável para as commodities agrícolas brasileiras no mercado internacional. O otimismo dos produtores que estimulou o forte desmatamento do período 2003/2204 foi abalado pela redução dos preços da soja e pela sobrevalorização do Real em relação ao dólar. O faturamento do setor de grãos em geral no país – US$ 47 bilhões na safra 2004/2005 – caiu US$ 13 bilhões em relação à safra anterior” (Greenpeace, 2005, pág. 7).

 

Evidentemente, não se pode desconhecer que ações do governo contribuíram, também, para a queda que se verificou de 2004 a 2007. Assim, a criação de grandes áreas protegidas; a realização de grandes operações conjuntas do Ibama com a Polícia Federal, que levaram à apreensão de madeira ilegal e à prisão de servidores públicos corruptos, além de madeireiros e lobistas; dentre outras medidas impactantes – algumas delas desencadeadas após o assassinato da Irmã Dorothy, em fevereiro de 2005 -, devem ser reconhecidas como medidas importantes no combate ao desmate, à grilagem e à violência na região amazônica.

 

No entanto, a retomada vigorosa do desflorestamento mostra que nem a presença de Marina Silva no comando da pasta do Meio Ambiente do governo brasileiro é suficiente para dar conta do desafio que é uma política efetiva para a questão do combate ao aquecimento global. Símbolo da luta ambiental, a ponto de, recentemente, ter sido citada pelo jornal britânico “The Guardian” como uma das 50 personalidades que podem ajudar a salvar o planeta, Marina – que tem uma histórica política e pessoal de superação emblemática – é herdeira de outro ícone da luta sócio-ambiental brasileira, o seringueiro, como ela, Chico Mendes, assassinado, no século passado, por sua luta em defesa da floresta.

 

A questão é outra. Ou, para usar um conceito que a própria ministra gosta de utilizar, falta “transversalidade ambiental” nas ações do governo, como um todo, voltadas para o binômio meio ambiente/desenvolvimento, vis a vis a questão das mudanças climáticas. Basta que se diga que enquanto Marina responsabilizava o gado e a soja pela devastação, outro ministro do governo Lula, Reinold Stephanes, da Agricultura, fazia a defesa enfática do agronegócio. Abra-se, aqui, parêntesis para aludir que esse integrante do governo defende o plantio de cana para o etanol na Amazônia e sua pasta é responsável por todas as políticas do setor que tem sido responsabilizado pela degradação da floresta (em outro enfrentamento com o titular anterior da mesma pasta de agricultura, Roberto Rodrigues, Marina foi derrotada com a introdução das plantas transgênicas no país).

 

A aliança do governo com o agronegócio

 

A aliança social e política celebrada pelo governo com o agronegócio, que tem, no parlamento brasileiro, como seu representante, a bancada ruralista, é fundamental para o modelo econômico adotado e para a chamada “governabilidade”. Na economia, a exportação de produtos oriundos da agricultura e da pecuária tem um peso importante para o equilíbrio da balança comercial. No Congresso, a presença na base de sustentação do governo confere à bancada ruralista posição privilegiada na concessão de favores e privilégios – quase sempre traduzidos, além de cargos na estrutura de governo, em generosos abatimentos em suas dívidas agrícolas junto às instituições financeiras oficiais – para garantir a aprovação de matérias legislativa de interesse do Executivo.

 

É essa aliança que, com um falso discurso “verde”, incentiva a monocultura da cana-de-açúcar para a produção do etanol combustível, que tem se mostrado insustentável, tanto do ponto de vista social – pela superexploração dos cortadores de cana e pela substituição de culturas de subsistência –, como ambiental, já que sua expansão, além de empurrar a soja e o gado ainda mais para dentro da floresta, é responsável pela degradação de outro grande bioma brasileiro, o Cerrado, que é a savana com maior biodiversidade do planeta.

 

Estudo do Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN) concluiu que “importantes áreas para a conservação e uso sustentável da biodiversidade do Cerrado que deveriam ser protegidas estão sendo tomadas pelas lavouras de cana-de-açúcar para produção de etanol. Isso significa que pode haver comprometimento dos recursos naturais, das populações rurais e da segurança alimentar na região”. Ali se denuncia que o Cerrado, que abrange cerca de dois milhões de quilômetros quadrados, já perdeu metade de sua cobertura vegetal, estando as causas do desmatamento “relacionadas à agricultura e pecuária praticadas inclusive sobre áreas que deveriam estar sob proteção e que são a base do estudo do ISPN”. Segundo Nilo Dávila, assessor de políticas públicas da entidade, “apesar de não haver monitoramento oficial, estima-se que o desmatamento na região gire em torno de 1,1% ao ano, o que equivale à destruição de cerca de 22 mil Km2 por ano, sendo maior que o desmate na Amazônia” (www.ispn.org.br).

 

É essa sólida aliança governo Lula com o capital agropastoril que explica o fato de que um dos maiores beneficiários do chamado Plano de Aceleração do Crescimento (conjunto de ações, políticas, empreendimentos, que formam o carro-chefe da política desenvolvimentista do governo brasileiro), na atilada análise de Gerson Teixeira, seja “o agronegócio exportador, em particular, na sua trajetória expansiva na fronteira Norte” (“O Programa de Aceleração do Crescimento e o Meio Ambiente”, mimeo, 2007, pág. 7). Ali, Teixeira constata que, para “pavimentar, de vez, a expansão do agronegócio na Amazônia, o PAC prevê investimentos de peso no binômio ‘energia e asfalto’, afora em hidrovias, que, entre outros efeitos, romperão as principais barreiras para essa atividade naquela região e da sua transformação em via de acesso a mercados internacionais de produtos de outras regiões” (idem, ibidem).

 

Uma no cravo outra na ferradura

 

Ou seja, o mesmo governo que anuncia medidas duras de combate ao desflorestamento, como o recente Decreto 6321/2007 – que “dispõe sobre ações relativas à prevenção, monitoramento e controle do desmatamento no Bioma Amazônia” –, realiza pesados investimentos públicos em infra-estrutura (rodovias, hidrovias, energia) que poderão fazer da Amazônia, segundo ainda a percuciente análise de Teixeira, não apenas a grande fronteira da energia elétrica, mas, também, “a última fronteira do agronegócio brasileiro” (idem, pág. 8).

 

Isso para não falar nas linhas de financiamento, a juros subsidiados, do Banco da Amazônia, do PRONAF e do FNO, para a pecuária, conforme já noticiado pela imprensa, a partir do estudo realizado pelos Amigos da Terra – Amazônia, onde se constatou que é, naquela região, que se encontra, hoje, 94% do crescimento do número de cabeças registrado no país entre 2003 e 2006. Das 10.334.668 novas cabeças de gado registradas no Brasil pelo IBGE, no período considerado, 9.680.511 estavam na Amazônia Legal (www.amazonia.org.br: “O Reino do Gado. Uma nova fase na pecuarização da Amazônia”).

 

Além desses impactos sobre a fauna e a flora, o próprio governo reconhece, segundo informações do Conselho Indigenista Missionário, que 201 empreendimentos do PAC interferem em terras indígenas, dessas, 21 com povos isolados. Dentre essas obras, encontram-se as barragens de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira (RO), que vai impactar grupos de índios isolados que vivem na região; a hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA), que atinge terras dos povos Arara, Xincrin e Juruna; a hidrelétrica de Estreito, no rio Tocantins, que traz impactos sobre as terras indígenas Avá Canoeiro, Kraolândia, Filni-ô, Xerente, Apinayé, Krikati e Mãe Maria; a finalização da BR-156 no Amapá, que corta 40 km de terra dos povos Galibi-Marworno, Palikur e Karipuna; a finalização da BR – 242, no Tocantins, que atinge os povos da Ilha do Bananal: Avá Canoeiro, Javaé, Karajá e Cara Preta. Em nenhum momento, até agora, houve qualquer consulta prévia a esses povos, o que denota o profundo desrespeito com o direito dos povos indígenas.

 

A insustentabilidade da ‘política de desenvolvimento’ do governo

 

A comprovação maior de que não há política ambiental integrada transversalmente com os outros setores do governo é, exatamente, esse Plano de Aceleração de Crescimento, que, efetivamente, é o nome do projeto de desenvolvimento para o segundo mandato do presidente Lula. Ali, estão previstas, além do que acima foi listado, outras ações que atentam contra o meio ambiente e o clima do planeta, tais como a construção de 77 usinas termoelétricas (a maioria a carvão e a óleo), a retomada do programa nuclear brasileiro, a transposição do rio São Francisco, a construção das já referidas usinas hidrelétricas do Rio Madeira (cujo parecer inicial do órgão de meio ambiente era contrário, pelos impactos sócio-ambientais causados), o incentivo à siderurgia (com a desoneração do Impostos sobre Produtos Industrializados – IPI - para o aço) etc.

 

Portanto, a insustentabilidade da política de desenvolvimento do governo brasileiro não se encontra somente na Amazônia – onde o PAC incentiva a continuidade do desmate da floresta –, mas, também, nos outros setores – energia, indústria, transportes - causadores da emissão de gases do efeito-estufa. De nada adianta a elaboração, por um ou dois ministérios, apenas, de um plano de enfrentamento às mudanças climáticas – em seus aspectos de prevenção, mitigação e adaptação –, se, no centro das políticas públicas levadas a cabo ou estimuladas pelo governo - com investimentos, créditos, incentivos fiscais e subsídios -, se encontra a ideologia do crescimento a qualquer custo, onde a economia se sobrepõe ao social e ao ecológico, onde o governo se rende à lógica do mercado, onde as políticas ambientais ainda estão – e como estão! – à margem dos grandes processos decisórios.

 

Leia também a entrevista de Tamás Szmrecsányi a Valéria Nader e o artigo de José Carlos Moutinho.

 

 

João Alfredo Telles Melo é advogado, professor de Direito Ambiental, ex-deputado federal e consultor de políticas públicas do Greenpeace.

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