Debate energético enviesado

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Heitor Scalambrini Costa
05/08/2016

 

 

 

A matéria publicada na Revista Caros Amigos (no 232/2016) intitulada “Sob o mito da energia limpa”, da jornalista Lillian Primi, foi a motivação dos comentários que faço a seguir. Falar em energia nos aproxima de temas correlatos, como economia, meio ambiente, tecnologia, modelo de sociedade. Logo, é difícil, ou quase impossível, encontrar consensos nesta discussão.

 

Todavia alguns pontos são inquestionáveis, e mesmo assim conceitos são deturpados junto à população. É o caso do uso frequente do termo “energia limpa”. Toda fonte energética ao ser convertida em outra forma produz algum tipo de resíduo, emissão, contaminação, poluição, que afeta o meio ambiente e as pessoas. Além de as obras e instalações feitas para o processo de geração, dentro do modelo de expansão vigente, e mesmo a transmissão da energia, provocarem danos, expulsões, privações, prejuízos, destruições de vidas e de bens muitas vezes permanentes e irreversíveis. Portanto, é falso e desaconselhável o uso deste termo. Meros interesses econômicos da mídia corporativa, aliada das empresas, tentam confundir quando antepõem energia limpa versus energia suja.

 

Fato é que as chamadas fontes não renováveis – petróleo, gás natural, carvão e minérios radioativos – são as principais responsáveis pelo aquecimento global; são suas emissões que provocam, consequentemente, as mudanças climáticas no planeta. Evidentemente, este efeito é agravado de maneira substancial pelo modo de produção e consumo da atual civilização. E aqui é ressaltado o papel nefasto do petróleo e seus derivados como o inimigo número um do aquecimento global.

 

Por outro lado, as fontes renováveis de energia – sol, vento, água, biomassa – são as que menos contribuem para as emissões de gases de efeito estufa e, consequentemente, para as mudanças climáticas. Mas há um “porém”, muito bem registrado na referida matéria sobre os problemas socioambientais causados pela geração centralizada da energia eólica, e ao que tudo indica também da energia solar fotovoltaica: o atual modelo de implantação e expansão destas tecnologias é tão catastrófico do ponto de vista socioambiental como o do uso das fontes não renováveis. Neste caso, a vantagem comparativa inexiste. É o que ocorre atualmente no Nordeste brasileiro, com a devastação do bioma Caatinga e com as mudanças dos modos de vida infligidas às populações que se dedicavam à pesca, coleta de mariscos e agricultura familiar.

 

Há uma discussão sobre a questão das megahidroelétricas com a construção das barragens. Alguns gestores públicos, membros da academia, técnicos e grupos empresariais ainda insistem na defesa de grandes e destruidores empreendimentos, onde as desvantagens superam em muito as vantagens. Os deslocamentos de milhares de pessoas acarretam danos irreversíveis a tais populações, conforme constatações históricas. Por outro lado, é consenso que as hidroelétricas também emitem uma considerável quantidade de gases de efeito estufa (GEE), principalmente o metano resultante da degradação microbiológica da matéria orgânica existente nos reservatórios. Todavia, os defensores desta tecnologia, após terem de aceitar a constatação científica, ainda tentam desqualificar aqueles que são contrários à construção de megahidroelétricas na região amazônica, insistindo erroneamente em afirmar que são imprescindíveis.

 

Neste contexto, não se pode esquecer que vivemos em um sistema capitalista, onde o lucro é o objetivo principal. E aí o vale-tudo tem imperado. Desde o afrouxamento da legislação ambiental para atender aos interesses econômicos imediatos, até a falta de fiscalização sobre tais empreendimentos e os contratos draconiamos de arrendamento da terra. Em nome da maximização do lucro, o meio ambiente e as pessoas acabam prejudicados, com a omissão ou, muitas vezes, o incentivo estatal a práticas não condizentes com os discursos de proteção ambiental e sustentabilidade.

 

Logo, os investimentos em fontes renováveis estão orientados pela lógica capitalista e são tratados como um negócio como outro qualquer, muito rentável, onde o lucro e a justiça são incompatíveis. É o que tem atraído fundos de pensão de outros países, empresas multinacionais e nacionais, grandes investidores particulares que encontraram no Brasil um filão para os “negócios do vento e do sol”, aliados a uma legislação que muda conforme seus interesses.

 

Como bem constatamos na história recente, o “capitalismo brasileiro” não convive com a democracia, com a justiça ambiental, com os direitos sociais. E é nesta lógica, em um país onde a informação é controlada e manipulada, que os interesses dos grupos empresariais dedicados aos negócios da energia prosperam, com altas taxas de exploração. Com a inexistência plena da liberdade de imprensa, discussão junto à sociedade sobre energia para que? Energia para quem? E como produzi-la? Acabam restritas a setores acadêmicos e a poucos grupos sociais.

 

Verifica-se que na questão energética, em particular, na expansão das fontes renováveis de energia solar-eólica, o Estado é o maior gerador de conflitos socioambientais. Contraditóriamente, diante da função de mediar os conflitos de classe, o Estado brasileiro tem lado, e favorece os grupos empresariais.

 

Na discussão, a segurança energética de um país é assegurada pela diversidade e complementariedade. Ambas não repousam somente no duo eólico-solar, e sim em uma conjunção de tecnologias disponíveis localmente, escolhidas dentro de critérios técnicos e socioambientais para satisfazer as necessidades dos diferentes setores da sociedade.

 

Parabenizo a jornalista Lillian Primi pela provocação. Lamento que na sua matéria somente alguns interesses foram representados e tiveram voz, em particular técnicos cujas posições são bem conhecidas em prol das megahidroelétricas.

 

 

Heitor Scalambrini Costa é professor aposentado da Universidade Federal de Pernambuco.

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