Líbia: sangue, suor e lágrimas?

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Atilio A. Boron
27/08/2011

 

 

 

A sorte do regime líbio está lançada. A essa altura, a única questão pendente é o destino de Muammar Kadafi: vai se render ou lutará até o fim? Será Allende ou Noriega? Vivo ou morto? E se vivo, o que o espera? O exílio é altamente improvável, pois não há quem o receba e, além do mais, sua imensa fortuna depositada em bancos dos EUA, Inglaterra, França e Itália está bloqueada.

 

O mais provável será que siga a sorte de Slobodan Milosevic e termine enfrentando o Tribunal Penal Internacional, que o acusará de genocida por ter ordenado a suas tropas dispararem contra seu povo. Esbanjando uma obscena moral dupla, o TPI acolherá a petição de um país, os EUA, que não somente não assinaram o tratado que o criou, como não reconhecem sua jurisdição sobre os cidadãos estadunidenses, e ainda lançaram uma acintosa campanha contra o mesmo, obrigando mais de uma centena de países da periferia capitalista a renunciar seu direito de denunciar no TPI cidadãos estadunidenses responsáveis por crimes semelhantes – ou piores – do que os perpetrados por Kadafi.

 

Uma infâmia mais da suposta “ordem mundial” que está caindo aos pedaços graças aos contínuos atropelos das grandes potências. E uma lição para todos aqueles que confiam – como em um momento fez a Argentina nos anos 90 – que consentindo as “relações carnais” com o imperialismo se gozaria para sempre de sua proteção. Erro crasso, como se comprovou com o fim da “Convertibilidade” e como hoje experimenta na própria carne Kadafi, atônito ante a ingratidão daqueles de quem havia se tornado obediente peão.

 

Sendo assim, por que Obama, Cameron, Sarkozy e Berlusconi não lhe deram uma mão? Em primeiro lugar, por oportunismo. Esses governos, que tinham se alinhado incondicionalmente com Mubarak no Egito durante décadas, cometeram o erro de subestimar o fervor insurrecional que comovia o país das pirâmides. Quando mudaram de lado, deixando na mão seu gendarme regional, seu desprestígio ante a revolução democrática se fez ostensivo e irreparável.

 

Na Líbia tiveram a oportunidade de corrigir esse passo em falso, facilitados pela brutal repressão que Kadafi descarregou nas primeiras semanas de revolta. Isso ofereceu o pretexto que buscavam para desencadear a não menos brutal intervenção militar da OTAN – com sua nefasta seqüela de vítimas civis como produto de “danos colaterais” de suas “bombas inteligentes” – e, por outro lado, dando pontapé inicial às atuações do TPI, a cujo promotor geral nem de longe lhe ocorreria convocar o comandante da OTAN para prestar contas sobre crimes tão ou mais monstruosos que os perpetrados pelo regime líbio.

 

Em uma entrevista recente, Samir Amin manifestou que toda a operação montada contra Kadafi não tem a ver com o petróleo porque as potências imperialistas já o tinham em suas mãos. Seu objetivo é outro, e essa é a segunda razão para a invasão: estabelecer o Africom (o Comando Militar dos EUA na África), atualmente com sede em Stuttgart, Alemanha, já que os países africanos, não importa o que se pense deles, se negaram a aceitar sua instalação no continente negro.

 

O que o imperialismo deseja é estabelecer uma cabeça costeira para lançar suas operações militares na África. Fazê-lo a partir da Alemanha, além de pouco prático, é altamente irritante, para não dizer ridículo. Agora tratarão de que o regime lacaio a ser instalado em Trípoli aceite o amável “convite” que seguramente lhe fará a OTAN. De toda forma, a operação não será nada simples, entre outras coisas porque o Conselho Nacional de Transição (CNT) é uma precipitação altamente instável e heterogênea de forças sociais e políticas fragilmente unidas pela argamassa que só proporciona uma visceral rejeição a Kadafi, apesar de não serem poucos os que, até alguns meses atrás, constavam entre seus mais obedientes e servis colaboradores.

 

Existem fundadas suspeitas para acreditar que o assassinato ainda não esclarecido do ex-chefe militar dos rebeldes, Mohammed Fatah Younis, ex-ministro do Interior de Kadafi e ex-comandante das forças especiais líbias, foi causado por um setor dos rebeldes em represália a sua atuação no massacre de uma revolta islâmica na década de 90.

 

Outro exemplo, não menos esclarecedor que o anterior, é oferecido pelo próprio presidente do CNT. Segundo Amin, Mustafá Abdel Jalil é um “curioso democrata: foi o juiz que condenou as enfermeiras búlgaras à morte antes de ser promovido a ministro da Justiça de Kadafi”, cargo que exerceu de 2007 a 2011. O CNT, em suma, é um bloco reacionário e oportunista, integrado por islamistas radicais, socialistas (“estilo Zapatero ou Tony Blair”), nacionalistas (sem nação, porque a Líbia não o é) e, como assinala o analista internacional Juan G. Tokatlian, “bandidos, empresários, guerrilheiros e ex-militares”, para não falar do divisionismo tribal e étnico que marcou desde sempre a história desse território sem nação que é a Líbia.

 

Por isso não existem demasiadas razões para supor que o CNT inaugurará um período democrático. Seus membros não têm melhores credenciais que Kadafi e pesa sobre eles a irredimível infâmia de ter convidado as potências imperialistas a bombardear suas cidades e aldeias a fim de viabilizar sua derrubada. Assim, o mais provável é que, uma vez derrotado o regime, as sangrentas lutas intestinais e a ingovernabilidade resultante tornem inevitável para as potências imperialistas entrar em outro pântano, como o Iraque e o Afeganistão, estabelecendo a mínima ordem que permita organizar sua rapina.

 

Desgraçadamente, o que espera pela Líbia não é a democracia, mas um turbulento protetorado europeu-estadunidense e, como dissera Winston Churchill de seu país em tempos de Segunda Guerra Mundial, sangue, suor e lágrimas.

Atilio Borón é doutor em Ciência Política pela Harvard University, professor titular de Filosofia Política da Universidade de Buenos Aires e ex-secretário-executivo do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO).



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