Custa crer!

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Maria Clara Lucchetti Bingemer
03/02/2009

 

Fui das que duvidaram que os EUA elegessem um presidente negro, mesmo alguém tão inteligente, brilhante e bem-dotado como Barack Obama.

 

Fui das que se emocionaram até as lágrimas com sua vitória e acompanharam comovida e esperançada sua posse. Movia-me sobretudo a esperança que percebia em todo o mundo, principalmente no Ocidente, de que realmente isso pudesse representar uma mudança real e frutífera em nosso mundo tão conturbado e violento.

 

As coisas pareciam ir muito bem. Obama declarou que até 2011 os EUA estariam fora de Iraque, pondo ponto final a uma guerra fratricida e unilateral que já custou milhares de vidas inocentes, não só de iraquianos, mas também de americanos. Declarou também sua disposição de retirar a prisão de Guantánamo, Cuba, mantendo apenas a base militar. Nossos olhos e corações sedentos de paz entenderam aí um primeiro passo que depois resultaria na retirada completa, respeitando a autonomia da ilha.

 

Por isso custa crer e dói profundamente saber que na última sexta-feira o mesmo presidente, que tantos gestos já fez que nos permitiram acreditá-lo realmente comprometido com a luta em favor da vida, tenha assinado uma ordem que levanta a proibição ao uso de fundos do governo americano para subvencionar grupos que pratiquem ou assessorem sobre o aborto no exterior. Trata-se de 400 milhões de dólares destinados pelo governo estadunidense à planificação familiar em 53 países.

 

A questão é controvertida já politicamente. A proibição desse financiamento estava vigente desde 1984, no governo de Ronald Reagan. Foi abolida pelo governo de Bill Clinton. George W. Bush voltou a impô-la no começo do exercício de sua presidência, no ano 2000. Justificando sua medida, o presidente Obama declara estar determinado assim a proteger a liberdade de escolha das mulheres para ter ou não um filho. Considera que essa decisão protegeu a saúde das mulheres e a liberdade de reprodução, assim como reforçou o princípio maior de que o governo não tem que se intrometer nos assuntos familiares mais íntimos e na moral privada.

 

Os críticos da medida que proibia o financiamento alegam que a restrição limitou o financiamento concedido pelo governo americano a grupos humanitários que oferecem serviços de planejamento familiar e de saúde, o que fez com que muitas mulheres tenham tido que recorrer a abortos ilegais e em condições pouco seguras. Os defensores da medida negam que tenha havido aumento de abortos no exterior.

 

Em qualquer caso, a questão está longe de ser simples. Compreendemos que o presidente esteja pressionado por diversos grupos que o apoiaram durante a campanha. Compreendemos também sua afirmação do desejo de ajudar as mulheres prevenindo a gravidez indesejada e defendendo a busca de um "meio termo" que amplie o acesso a anticoncepcionais, à educação reprodutiva e a serviços médicos preventivos.

 

Daí a financiar aborto há um abismo. Todos sabemos o que a nefasta política de algumas organizações que atuaram e ainda atuam nos países pobres pretendeu e conseguiu, qual seja, a esterilização não consentida das mulheres de meio popular, esterilizadas sem prévio consentimento no decurso de uma cesariana. Ou ainda a distribuição indiscriminada de anticoncepcionais. Tudo isso com o não declarado
mas evidente fim de evitar a multiplicação de filhos e o aumento da taxa de natalidade nos países em desenvolvimento.

 

Proteger a vida e a saúde das mulheres é uma digna e nobilíssima bandeira. Porém, neste caso, está em jogo outra vida: a do feto, indefeso, que não pode defender-se ou resistir. O Vaticano e outros grupos religiosos protestaram contra a medida de Obama. Nem poderia ser de outro modo. Trata-se da vida humana que é colocada em perigo. Mais: trata-se de oferecer recursos para financiar uma política de sistemática destruição da vida humana. Não parece ser coerente com o desejo de uma política externa de paz constitutiva da presidência recém inaugurada nos EUA. Custa crer que o mesmo Obama tome uma e outra decisão.

 

Maria Clara Lucchetti Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-RJ e autora de "Simone Weil - A força e a fraqueza do amor" (Ed. Rocco).

 

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