De Varsóvia a Gaza

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Fritz Utzeri
15/01/2009

 

Sempre me senti constrangido para criticar Israel devido ao fato de ter nascido na Alemanha e ser filho de um soldado da Vermacht (o exército alemão) morto na Segunda Guerra. Passei minha infância tentando entender o nazismo e como aquilo podia ter acontecido num país civilizado como a Alemanha, onde os judeus participavam ativamente da cultura e a condição de judeu era uma religião herdada (não muito seguida pela maioria secularizada). Os judeus alemães faziam parte inseparável e preciosa da cultura germânica.

 

Embora nunca tenha sido cidadão alemão (não sou "ariano" o suficiente), nasci na Alemanha nazista, sob um regime no qual minha mãe teve que provar à Gestapo que não tinha ascendentes judeus até a quinta geração e sujeita a medidas antropomórficas dos "especialistas" em "raça" para determinar se não tinha características semitas.

 

Ou não funcionou ou os "especialistas" nessa "ciência" se enganaram, mas se houvesse a menor suspeita de judaísmo eu teria acabado num forno antes mesmo de nascer, condenado desde o óvulo e o espermatozóide, nessa singularidade diabólica que caracteriza e diferencia o nazismo de todos os demais totalitarismos como o mal absoluto. Passei muito tempo olhando para os alemães com idade acima de 18 anos durante a Segunda Guerra para me perguntar sempre o que eu e o que eles teriam feito. Muita gente acha que sou judeu e não teria o menor problema ou preconceito em sê-lo, mas se considerar o preço que teria que pagar se o fosse, foi melhor para mim que os nazistas considerassem minha mãe aceitável, embora não de "raça pura".

 

Dito isto, faço outra reflexão. Para mim, a pátria judaica deveria ter sido estabelecida na Baviera, em 1948. Os alemães, os carrascos e os indiferentes é que deveriam ter pagado a conta com suas terras e bens e não os palestinos, que nada tiveram a ver com o Holocausto e que acabaram pagando o pato (e o estão pagando até hoje), por serem vistos pelo Ocidente como um povo de segunda categoria, daquele tipo cujos mortos valem pouco ou nada. O conceito de "sub-homem" (untermënschen) que os nazistas alemães levaram ao extremo do extermínio industrial, persiste entre os povos ricos em geral, todos de boa consciência, mas que não dão a mínima para os mortos palestinos, latino-americanos ou africanos e que em geral fornecem as armas com as quais esses excluídos se matam.

 

Os sionistas reivindicam a terra da Palestina de onde os judeus haviam sido expulsos no ano 70 pelos romanos, originando a diáspora. Alguns anos mais tarde, em 138, depois de uma segunda revolta judaica, o imperador Adriano expulsou de vez todos os judeus de Jerusalém. Adriano também alterou o nome Judéia para Síria Palestina. Apesar disso, nunca deixou de haver judeus na Palestina e durante o domínio árabe e muçulmano os filhos de Abraão foram tratados com muito mais benevolência do que o foram no ocidente cristão (afinal os árabes reivindicam o mesmo antepassado comum e veneram exatamente o mesmo deus).

 

Quando o Estado de Israel foi fundado, haviam se passado 1878 anos da diáspora. Os palestinos foram expulsos de suas terras manu militari e sucessivas ações terroristas de grupos sionistas radicais, como o Hagannah e Irgum, contra árabes e mesmo contra os ingleses que dominavam a região foram praticadas. Os árabes não fizeram melhor e expulsaram 800 mil judeus de vários países após a fundação de Israel, além de invadir a região e sofrer sua primeira derrota militar. O problema é que se a humanidade tivesse que resolver suas pendências territoriais com reivindicações de quase dois mil anos, o mapa do mundo seria um caos; nós, por exemplo, teríamos simplesmente que ir embora e pedir desculpas aos índios.

 

Mas não é só isso, se recuarmos mais no tempo veremos que a chamada "terra prometida" foi conquistada pelos judeus depois do êxodo do Egito. E não foi uma terra fácil, virgem, zero quilômetro, preparada pelo deus de Israel para o seu povo, uma terra sem ninguém. Nada disso, foi uma conquista sangrenta, guerra de extermínio. Os povos que lá habitavam, como os cananeus, foram impiedosamente massacrados. Não restou nada de sua cultura, de suas gentes, nem de suas cidades. Em muitos casos, nem os animais foram poupados. Foi um Holocausto. Não imagino quem sejam (ou se existem) seus descendentes, mas se há direito tão antigo, os cananeus e os demais povos que lá estavam antes dos hebreus, têm prioridade sobre os filhos de Israel.

 

A terra de Canaã é um campo de lutas e extermínios desde o começo da civilização e a suposta doação do território por parte de um pai eterno é algo difícil de engolir para quem não for crente ou tiver o mínimo de bom senso, mas vamos ver como a Bíblia narra a história da chegada do "povo eleito" à "terra prometida".

 

Lemos pouco a Bíblia, mas nela há histórias de arrepiar os cabelos, a ponto de em certas passagens acharmos difícil crer que estamos diante de um livro sagrado, inspirado por um deus. Vejam esta passagem de Números, quarto livro do Pentateuco (os cinco livros de Moisés: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio). No capítulo 31, versículos 13-18 narra-se o desfecho da luta dos judeus contra os madanitas. Os filhos de Israel ganharam, e retornam a Moisés para ouvir o seguinte:

 

"E saíram a recebê-los fora dos acampamentos, Moisés, o sacerdote Eleazar e todos os príncipes da Assembleia. Moisés irado contra os chefes do exército, contra os tribunos e centuriões que voltavam da batalha (curiosamente na edição católica da Bíblia usam-se graus militares romanos) disse: ‘Por que poupaste as mulheres? Não são elas que por sugestão de Balãao seduziram os filhos de Israel e vos fizeram prevaricar contra o Senhor pelo pecado de Fregor, pelo qual também o povo foi castigado? Matai pois todos os varões, mesmo os de tenra idade, e degolai as mulheres que tiveram comércio com homens, mas reservai para vós todas as donzelas e mulheres virgens".

 

Edificante ao extremo. Sei perfeitamente que estamos falando de sociedades há milhares de anos, mas a reivindicação atual se baseia num direito que foi estabelecido naquele tempo e para os judeus religiosos vale até hoje, embora os mais ortodoxos considerem a existência atual do Estado de Israel um crime, um pecado, já que o mesmo só poderia voltar a existir com a chegada do messias. Há judeus religiosos radicais que chegam a atribuir o Holocausto a uma pretensa culpa pelo sionismo.

 

No livro seguinte, Deuteronômio, é narrada a preparação para a conquista da Terra de Canaã por Josué, que vem a ser irmão de Moisés. Logo no capítulo 3 podemos ler um episódio da luta dos hebreus contra Og, rei de Basan. Leiam: "O rei de Basan e todo o seu povo ferimo-los até o extermínio, destruindo ao mesmo tempo todas as suas cidades, não houve cidade que nos escapasse: 60 em todo o país".

 

No capítulo cinco desse mesmo livro, Moisés recebe e transmite os dez mandamentos (o primeiro dos quais, listado no texto é: "não matarás"). Mas no capítulo 7, sob o título "Destruir os cananeus e os seus ídolos", a "inspiração divina" escreve e ordena o seguinte: "Quando o senhor teu Deus te tiver introduzido na terra da qual vais tomar posse, e tiver exterminado diante de ti muitas nações - o heteu, o gergeseu, o amorreu, o cananaeu, o ferozeu, o heveu e o jebuseu, sete nações muito mais numerosas e fortes do que tu - e o senhor teu Deus as tiver entregado a ti, tu as combaterás até o extermínio. Não farás aliança com ela, nem as tratarás com compaixão".

 

No livro a seguir, de Josué (o primeiro dos livros ditos Históricos), são relatados a conquista, massacres e extermínio dos povos que viviam na "terra prometida". É só ler.

 

Voltando à era moderna, os cristãos, ao perseguirem e oprimirem os judeus, criaram os guetos. O termo nasceu em Veneza, onde havia uma ilha com uma fundição (ghetto em italiano antigo), onde os judeus foram concentrados e obrigados a viver. Havia portões que fechavam o bairro à noite (retirados por Napoleão quando conquistou a cidade, mas cujos gonzos podem ser vistos ainda hoje). Os alemães estabeleceram vários guetos na Europa entre 1939 e 1944, que chamavam de Judengasse (Bairro judeu), onde os judeus eram concentrados e aprisionados antes de serem enviados para os campos de trabalho e de extermínio. No Gueto de Varsóvia chegaram a ser confinadas 380 mil pessoas. A fome, as doenças e o envio para campos de extermínio reduziram a população para 70 mil. A revolta do gueto, em 1943, levou a seu arrasamento e ao extermínio dos sobreviventes.

Faixa de Gaza

Claro que as atrocidades cometidas pelos alemães são mais bárbaras do que a atitude dos judeus ante os palestinos (tente explicar isso aos palestinos), mas a Faixa de Gaza é inquestionavelmente um gueto, o maior gueto já criado. É um dos territórios mais densamente povoados do planeta, com 1,4 milhão de habitantes para uma área de 360 km². As condições sanitárias são assustadoras. A área depende de Israel para receber água, eletricidade e suprimentos. É cercada por muros e com portões de entrada por onde só transita quem tenha um passe. E isso não apenas do lado judeu, mas também do egípcio. Grande parte da população vive numa das maiores, talvez a maior, favela do mundo.

 

Nas últimas eleições realizadas na Palestina, o Hamas, um movimento radical islâmico sunita, ganhou derrotando o Fatah, o partido do falecido Yasser Arafat, que era percebido pelos palestinos como corrupto ao extremo. As eleições foram limpas, mas para o Ocidente a democracia passa quase sempre a ter um valor relativo quando o resultado não agrada, seja na Palestina, na Argélia ou no Chile. O resultado foi uma pressão, com sanções internacionais que levaram a uma luta interna e à divisão dos palestinos. A Cisjordânia ficou sob gestão do Fatah (com o apoio de Israel e do Ocidente), enquanto o Hamas ficava com o controle da Faixa de Gaza, onde a situação humanitária precária favorecia o radicalismo.

 

Houve uma trégua de seis meses entre o Hamas e Israel, mas ao mesmo tempo o bloqueio de Israel ao território foi apertado por terra, mar e ar e a situação da população de Gaza piorou. Hoje o desemprego chega a 50%, dois terços dos refugiados passam fome, não há fornecimento regular de luz e água ou remédio nos hospitais. Além disso, o acesso de ajuda humanitária sempre foi controlado e inferior ao necessário para aliviar a situação. O gueto começa a desesperar-se e é nesse contexto que o atual conflito recomeçou. Os palestinos que se amontoam em Gaza não estão lá porque queiram viver na praia, mas porque foram expulsos de suas terras a partir da formação do Estado de Israel e jamais se falou em sequer indenizá-los.

 

Agora os velhos princípios de retaliação e extermínio já fundamentados no Velho Testamento estão de volta, uma triste repetição sem fim. Os nazistas alemães o fizeram várias vezes, a começar pela Noite de Cristal (Kristallnacht), em 9 de novembro de 1938, quando em resposta à morte de um diplomata alemão em Paris por um judeu polonês mataram 91 judeus, prenderam e levaram para campos de concentração entre 25.000 e 30.000 e destruíram 7.500 lojas e 1.600 sinagogas.

 

Vinte dias de bombas e o total de mortos palestinos já passa de 1000, dos quais dezenas de crianças, e quase três mil feridos, como represália a foguetes que até então não haviam matado um só israelense (e quando mataram um, no primeiro dia da ofensiva de Israel, acertaram um beduíno, um trabalhador árabe). Isso é uma resposta desmesurada sim, ainda mais porque já vem sendo feita há séculos, milênios, e só tem levado a novas guerras e mais massacres.

 

Até no dia sagrado para os muçulmanos tanques israelenses, canhões e imensas retroescavadeiras blindadas se concentraram na fronteira entre Gaza e Israel. Se esse dispositivo for acionado (e tudo indica que o será), o massacre e a desproporção de forças aumentarão. Será um banho de sangue e os civis palestinos serão – mais uma vez – as maiores vítimas.

 

Os árabes, por seu lado, se indignam, mas seus governos, em geral pusilânimes e corruptos, não movem uma palha para ajudar os palestinos. Não digo militarmente, pois essa solução só levará ao extermínio, inaceitável em qualquer hipótese, sejam quem forem os exterminados. Tais episódios e tal modo de pensar e agir já deveriam ter sido banidos da memória humana. Mas é verdade que os árabes podiam fazer muito mais do que fazem para melhorar as condições de vida de seus irmãos palestinos.

 

Não se deve negar a Israel o direito a existir, mas o fato é que qualquer república baseada em religião e exclusão só gerará violência. O pior de tudo é que me sinto como um estúpido naïf, um idiota, ao achar que todos devem desarmar seus espíritos.

 

Reporto-me a Ghandi, que dizia que a política de retaliação, o olho por olho, só terá como resultado a cegueira geral. A impressão que tenho é que Israel busca uma posição de força para tentar enfraquecer o Hamas, aproveitando os estertores do apoio incondicional da era Bush. Mas será que Obama vai transformar essa realidade? Se o fizer será uma espécie de messias, o que duvido...

 

PS: os leitores que me perdoem pelo texto imenso, pessimista e inconcluso, mas realmente não me sinto confortável com esse assunto.

 

Fritz Utzeri é jornalista.

 

Retirado do Jornal MontBläat (www.montblaat.com.br).

 

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