José Gaspar de Francia, o Doutor Mulato

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Mário Maestri
17/12/2008

 

No rigidamente aristocrático império espanhol, uma origem familiar singular não deixaria de influenciar a vida e a formação de um jovem. José Gaspar nasceu possivelmente em 6 de janeiro de 1766, filho de dona Josefa de Velasco y Yegros, de família excelente, descendente dos primeiros colonizadores. Ao contrário, seu pai, José Engracia García Rodríguez Francia, era plebeu, mulato ou mestiço, nascido possivelmente em Mariana, no Rio de Janeiro, que chegara ao Paraguai adolescente, nos anos 1750, com outros colonos luso-brasileiros, para fomentar a plantação e o beneficiamento do tabaco. José Engracia foi administrador da Fábrica e Cultivos de Tabacos de Yaguarón, nas proximidades de Assunção, e entrou no exército em 1771, alcançando o posto de capitão de artilharia. A partir de 1787, dirigiu o "pueblo" (povoado) de índios daquela localidade, dedicou-se também com sucesso ao comércio.

 

Após realizar estudos primários em Assunção com os franciscanos, com apenas 14 anos, José Gaspar partiu em longa viagem de barco com o pai para Santa Fé em 1780 e dali a cavalo para Córdoba, Tucumã. Matriculou-se em 18 de junho de 1781, como interno, no Real Colégio de Nossa Senhora de Montserrat (1687), da universidade daquela cidade, dando para tal provas de "sangue limpo e filiação legítima". Os estudos empreendidos dividiam-se em estágio preparatório e ciclo superior, de quatro anos, que levavam eventualmente ao distinguido grau de doutor. Seu pai esperava que ingressasse na vida eclesiástica. José Gaspar obteve o grau de Licenciado e Mestre em Artes, doutorando-se em 13 de abril de 1785, com 19 anos, em Sagrada Teologia. Recebeu as ordens menores, início de carreira religiosa inconclusa.

 

Mesmo permanecendo enclausurado no colégio de Montserrat até 1783, quando se tornou aluno externo por negar-se a receber castigo possivelmente corporal que julgou oposto à sua dignidade, José Gaspar participou certamente da efervescência cultural do centro universitário, onde se discutiam as propostas do regalismo espanhol; do republicanismo e federalismo estadunidense; do racionalismo filosófico e social francês etc. Enquanto estudava, em 1780, o cacique José Gabriel Condorcanqui (1738-81), ex-aluno do colégio jesuíta de San Francisco de Borja - em Cuzco, Peru -, propôs-se como descendente de Tupac Amaru, o grande resistente inca, e liderou insurreição de nativos, cativos negros, mulatos, mestiços e crioulos empobrecidos contra o regime colonial. O questionamento burguês e democrático da ordem feudal e aristocrática repercutiria nas visões de mundo do jovem brilhante e certamente consciente do status negativo devido à origem familiar paterna.

 

Em 1785, o jovem José Gaspar retornou ao Paraguai com sólida formação humanística, com destaque para a Filosofia e o Direito Canônico, portando o prestigioso título de doutor, decidido a não seguir a carreira clerical, para desgosto paterno. Em Assunção, dedicou-se ao magistério, assumindo, no Real Seminário de San Carlos, em 27 de março de 1789, aos 23 anos, cátedra de Latim e Teologia, após vencer concurso e fortes resistências. Abandonou, porém, muito logo o ensino pela advocacia, segundo parece devido a suas idéias democrático-liberais. Na época, teria se afastado da casa paterna e rompido com o pai – que, conta a tradição, vivia em forma dissoluta, amancebado com índia – para ir morar em casa própria no bairro La Merced, com um velho servidor.

 

Mais tarde, com a herança materna que exigira ao progenitor ou com o produto de seu trabalho, compraria chácara em Ibiraí (Ybyray) a uns doze quilômetros ao norte de Assunção. No Paraguai, os chacareros conformavam importante segmento social de pequenos e médios camponeses proprietários e arrendatários, que viviam, sobretudo, de policultura de subsistência. Eles competiam com a aristocracia fundiária pelo controle da terra.

 

Já adulto, José Gaspar foi descrito como homem de estatura médio-baixa; com a cabeça alta e longa; corpo "delgado e ossudo"; "espáduas estreitas", caídas e encurvadas; "membros longos e magros". Conta a tradição que nesses anos, após as jornadas de trabalho, se entregava intensamente ao jogo e à boemia noturna, que teria abandonado por problemas de saúde, para voltar a sua biblioteca de mais de 250 livros, com obras de Raynal, Rollin, Rousseau, Voltaire etc., reputada como uma das melhores, se não a melhor, do Paraguai da época.

 

O dr. José Gaspar Rodríguez de Francia y Velasco, como passara a assinar-se, teria sido advogado capaz, prestigiado e intransigente com os princípios éticos e morais, dedicado à defesa da população pobre. Em ‘Ensaio sobre a Ditadura do Paraguai’, Raul de Andrada e Silva comenta: "Advogando, procedeu com espírito público, com a clara consciência do sentido social da profissão: recusou-se a patrocinar causas injustas, nunca recuou da defesa dos humildes, não se arreceando de litigar contra os ricos e poderosos, a quem cobrava polpudos honorários, para que pudesse nada pedir aos pobres". Era normal que o destaque intelectual e profissional o levasse à vida política.

 

Durante a Colônia, o cabildo de Assunção era a grande instância administrativa aberta à oligarquia crioula assuncenha, pois os principais cargos administrativos, militares e eclesiásticos eram supridos privilegiadamente por espanhóis natos. Cada ano, ao terminarem o mandado, os regedores elegiam os substitutos. Em janeiro de 1798, com 32 anos, ele teve seu nome apresentado e rejeitado, por questiúncula legal, quando das eleições para o cabildo, "síndico procurador". Apenas mais tarde, por sua retidão pessoal, foi nomeado "Defensor de Capellanias y Obras Pias", em 1808 Promotor Fiscal da Real Fazenda e no mesmo ano eleito ao cabildo assuncenho como "alcaide de primeiro voto".

 

Seu tardio ingresso no cabildo, aos 42 anos, idade relativamente provecta para a época, parece registrar sua difícil absorção pela aristocracia espanhola e crioula paraguaia, fato igualmente assinalado por grave tropeço em sua vida pessoal e pública. Em 1804, aos 38 anos, teve recusado seu pedido em casamento de Petrona de Zavala, de dezessete anos, filha do coronel José Antonio Zavala y Delgadillo, chefe do Regimento de Dragões do Rei, fundador do forte de Bórbon, rebento de um das mais distintas famílias crioulas. A desculpa parece ter sido a pouca idade da pretendida. Como assinalado, até então, José Gaspar fora conhecido pela ilustração, por seu trabalho, por ser femeeiro, boêmio e jogador. Não tinha origens paternas aceitáveis e seu pai viúvo vivia amancebado com índia. Seu progenitor e ele eram apodados pelas costas de "mamelucos" e "mulatos". Na luta pela superação dessa desqualificação, ele teria incorporado ao nome a partícula enobrecedora "de" e o sobrenome da mãe. Para piorar o choque da rejeição pública, quatro meses após a recusa, Zavala y Delgadillo entregou a filha em casamento a Juan José Machaín, comerciante e capitão do corpo de Miñones (polícia). Na ocasião, respondera a sua esposa preocupada com a suscetibilidade do pretendente rejeitado: "Que me importa de lo que piense ese mulato"! A desqualificação acabou no conhecimento da sociedade assuncenha, se transformando em motivo de chistes e comentários malévolos.

 

A insistência do pai por carreira eclesiástica talvez se devesse à consciência da dificuldade do filho de obter esposa à altura do status a que se elevara. O certo é que, após a recusa, ele jamais voltaria a propor matrimônio a uma jovem, permanecendo irredutivelmente celibatário até a morte. Teria tido duas filhas, jamais reconhecidas, que viveriam com ele no palácio governamental. As famílias Zavala e Machaín e a soberba aristocracia espanhola seriam mais tarde duramente punidas pelo Ditador Perpétuo que, na nova ordem democrática e plebéia, passara a ser conhecido apenas por dr. Francia. Entre outras medidas, ele proibiu, em 1º de março de 1814, os espanhóis de contraírem casamento, a não ser com negras, mulatas e índias, medida destinada a obrigar, para se reproduzirem biologicamente, a mergulharem no seio da população paraguaia.

 

Mário Maestri é historiador.

 

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