Grécia mártir, heroica, humanizada

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Miguel Urbano Rodrigues
19/06/2015

 

 

Com exceção da ex-URSS e ex-Iugoslávia, não há movimento de Resistência comparável pela dimensão ao grego, liderado pelo Partido Comunista (KKE), fundado em 1918. Mais de 400 mil gregos pereceram durante a II Guerra Mundial. No final da guerra, o imperialismo britânico aliou-se à reação grega para esmagar o exército popular. O povo e as forças revolucionárias gregas sofreram a repressão e o exílio. Sofreram a ofensiva imperialista sob todas as formas, da ditadura dos coronéis à desastrosa integração na União Europeia (UE) e à profunda crise atual. Mas não perderam o seu núcleo revolucionário fundamental.

 

Voltei a Atenas depois de por ali ter passado numa breve visita, há 62 anos. É outro o mundo e não me reconheço no homem que então vivia no meu corpo. Atenas tinha então menos de um milhão de habitantes; cidade pobre, nela eram ainda identificáveis as feridas da brutal ocupação nazista. A memória da guerra civil permanecia também viva.

 

A cidade cresceu prodigiosamente. Hoje é uma gigantesca megalópole – quarta maior da Europa – com quase 4 milhões de habitantes.

 

Pouquíssimos edifícios têm mais de dez andares. Muitos bairros da periferia têm vida autônoma, com comércio, hotéis, restaurantes etc. Alguns desses bairros foram construídos após a guerra de 1919/22 com a Turquia, quando ocorreu a troca de populações (400 mil turcos saíram e chegaram quase um milhão e meio de gregos vindos da Ásia Menor e Istambul), onde os seus antepassados se haviam fixado há vinte séculos. Essa gigantesca massa de “retornados” alterou a vida no país. A integração dos “asiáticos” não foi fácil. A maioria tinha um nível cultural superior ao das populações de uma Grécia então predominantemente rural, que contava na época apenas 4.750.000 habitantes.

 

A Revolução apunhalada

 

A invasão do país em 1940 pela Itália fascista foi derrotada, mas Hitler acudiu ao aliado e ocupou a Grécia em abril do ano seguinte. A luta contra o exército alemão nas cidades e nas montanhas foi uma epopeia, com papel decisivo dos comunistas.

 

Em 31 de maio de 1941, o Comitê Central do KKE lançou um apelo para a formação de uma frente popular contra os fascistas alemães, italianos e búlgaros. Os grandes partidos burgueses rejeitaram imediatamente esse apelo. Em 16 de julho de 1941, funda-se a Frente Nacional de Libertação dos Trabalhadores (EEAM), e a 28 de setembro de 1941 o KKE e vários pequenos partidos criam a Frente Nacional de Libertação (EAM). Em janeiro de 1942, o Comitê Central do KKE e o Comitê Central do EAM tomam a decisão de criar o Exército Popular Grego de Libertação (ELAS), que foi o braço militar da EAM. Em 1943, criam-se a Organização Nacional da Juventude Grega (EPON) e a Marinha da Guerra Popular de Libertação Nacional (ELAN). Paralelamente a estas organizações, funcionavam também a Solidariedade Nacional e a Organização de Proteção da Luta Popular (OPLA).

 

O EAM utilizou todas as formas de luta: propaganda, publicações, greves, manifestações, demonstrações, luta armada. Até 1944, libertou muitas áreas montanhosas do país onde estabeleceu o Governo das Montanhas, órgãos administrativos, comissões e tribunais populares. No final de agosto 1944, o ELAS desencadeou a ofensiva geral contra as forças nazistas e, após muitas batalhas, libertou totalmente os país.

 

No momento da libertação, o exército regular do ELAS tinha em suas fileiras 78 mil oficiais e soldados, 50 mil reservistas e uma milícia popular de 6 mil pessoas. O EAM contava com mais de 1,5 milhão de membros organizados e cerca de 600 mil membros da sua organização juvenil EPON.

 

O imperialismo britânico e a burguesia grega consideraram “ameaçados os seus interesses”. A intervenção britânica culminou em dezembro de 1944 na batalha de Atenas, um acontecimento sem precedentes na segunda guerra mundial. O imperialismo britânico retirou 60 mil soldados que lutavam contra os alemães na Itália e transferiu-os para a Grécia. Essas tropas, com o apoio de 200 tanques e de aviões de combate, lutaram ao lado de forças da direita grega que tinham colaborado com os nazistas na sua confrontação com o EAM. Após 44 dias de combates, as unidades de ELAS retiram-se de Atenas. Em 12 de fevereiro de 1945, o EAM – em nome da unidade nacional – assinou o acordo inaceitável de Varkiza, que previa, entre outras coisas, o desarmamento do ELAS.

 

Não obstante esse acordo, a burguesia não foi capaz de restabelecer plenamente a sua dominação. Então, para consolidar o seu poder, recorreu à violência criminal e ao terrorismo. Entre o acordo da Varkiza e 31 de março de 1946, foram assassinados 1.289 membros do EAM, feridos, 6.671, torturados, 31.632, presos, 84.931.

 

Sublinho que as tropas de ocupação britânicas desencadearam uma feroz repressão; armaram o exército da burguesia e lançaram-no contra o movimento popular. Este foi confrontado com uma alternativa. Ou ceder ou lutar. Embora tardiamente, optou pela luta. O novo movimento de guerrilha, o Exército Democrático da Grécia (DSE), nasceu nas montanhas. Foi uma luta justa, anti-imperialista e internacionalista.

 

Durante três anos, o Exército Democrático resistiu. Chegou a contar com 30 mil guerrilheiros. Travou combates vitoriosos, sobretudo, nas áreas próximas das fronteiras da Albânia e da Iugoslávia. A participação do KKE, então dirigido pelo secretário-geral, Nikos Zachariadis, foi decisiva. Mas a desproporção de forças (o exército, equipado com armas pesadas, tinha 200 mil homens) impediu o DSE de atingir o objetivo: derrotar a burguesia e o imperialismo.

 

Pouca gente sabe que as bombas de napalm foram utilizadas pela primeira vez numa batalha no monte Grammos, quando o exército burguês lançou 338 sobre as posições do DSE.

 

Devido à desigualdade das forças em combate, a guerra terminou com a derrota do exército do povo. Nesse período da guerra civil, morreram 150 mil pessoas.

 

Mais de 65 mil combatentes do DSE foram obrigados a deixar o país com as famílias e exilar-se em países socialistas.

 

É útil recordar que em 1947 as tropas britânicas se retiraram e Londres transferiu para os EUA a direção da luta anticomunista na Grécia. Truman, e depois Eisenhower, Kennedy, Johnson, Nixon, Carter, Reagan, Clinton, Bush pai e filho e Obama mantiveram bases militares no país.

 

Alguns montaram conspirações, fabricaram e depuseram governos e estimularam relações conflituosas entre a Grécia e a Turquia. Sequelas dessa política imperial são ainda identificáveis em sentimentos antiamericanos muito vivos.

 

Washington apoiou a ditadura dos coronéis (de 1967 a 74), um regime de pesadelo que agravou as relações com a Turquia, contribuindo com a sua irresponsabilidade para a intervenção militar desta no Chipre.

 

A crise e o quotidiano

 

Na fisionomia de Atenas, o estrangeiro recém-chegado tem alguma dificuldade em identificar a profundidade da crise que atinge o país.

 

Atenas é uma cidade clara, predominantemente branca, com poucos parques, mas muitas ruas arborizadas (a oliveira e a laranjeira são frequentes na paisagem urbana), iluminada pelo sol mediterrânico, infestada por automóveis e motos como outras capitais europeias. Com o agravante de que não há quase estacionamentos subterrâneos.

 

Nas lojas não se nota escassez de roupas e comida. Os preços são levemente inferiores aos de Portugal. O povo é amável, na aparência alegre, cordial, extrovertido.

 

À noite, em Atenas, multidões de jovens invadem lugares centrais, sobretudo a Praça Monasterakis, emoldurada por restaurantes populares, a maioria com música. No centro, os cafés, apesar da crise, estão cheios. A cozinha grega, marcada pelo Oriente (quatro séculos de ocupação turca), é refinada, ótima.

 

A alegria de viver da juventude impressiona por inesperada, mas, ao conversar com velhos amigos, apercebi-me, após alguns dias, da profundidade da dramática crise grega.

 

Percorri numa manhã, durante horas, áreas dos subúrbios e zonas da cintura industrial. Os bairros de barracas desapareceram há anos, mas a pobreza das casas e dos moradores é identificável em muitos bairros. No Pireu, nomeadamente no município de Parama, essa pobreza transparece no casario que sobe pelas colinas que abraçam o porto. No metrô de Atenas e em ruas centrais, a presença de mendigos aumentou muito desde o início da crise, segundo apurei.

 

A herança negativa da união europeia

 

O ingresso na União Europeia foi desastroso. Grande parte da indústria foi destruída e a agricultura rudemente golpeada.

O país, durante décadas, exportou açúcar, e era quase autossuficiente em carne e leite. Hoje importa esses produtos, assim como trigo e milho. A Grécia importa atualmente agora grande parte dos alimentos que consome.

 

A cultura do algodão, antes florescente, base de uma poderosa indústria têxtil, entrou em decadência.

 

Recordando Florakis

 

Dos meus dias na Atenas revisitada, conservo memória de acontecimentos que desencadearam em mim um turbilhão de emoções inesperadas.

 

Um deles foi o ato público realizado em frente à casa de Charilaos Florakis, que foi secretário-geral do KKE durante quinze anos. Patrimônio do KKE, funciona hoje nela um centro de estudos com 30 mil documentos digitalizados, muitos sobre a história do Partido, e conta com uma biblioteca riquíssima.

 

A iniciativa integrou-se nas comemorações do centenário do nascimento de Florakis e coincidiu com o décimo aniversário da sua morte.

 

O evento, a que compareceram muitas centenas de militantes, realizou-se ao ar livre, em frente do edifício. No discurso que pronunciou, Dmitri Koutsoumpas, secretário-geral do Partido, evocou o significado da intervenção na História do grande revolucionário, denunciando a hipocrisia da burguesia grega que o combateu e injuriou com ferocidade enquanto viveu, para lhe reconhecer a grandeza somente após a sua morte.

 

Ao ouvir as palavras de Koutsoumpas, recordei que a atitude da direita portuguesa e dos socialistas perante Álvaro Cunhal foi exatamente a mesma.

 

Acompanhei com emoção aquela homenagem à memória do herói comunista. Findou quando a noite havia já descido sobre Atenas. Entre os presentes havia muitos jovens. Senti que eles já são a ponte entre o passado e o futuro de um grande partido revolucionário sobre o qual chovem críticas e até calúnias das burguesias da Europa e da América – um partido que é incompreendido por organizações reformistas do Movimento Comunista Internacional.

 

Por quê? Precisamente porque o KKE mantém uma fidelidade intransigente aos valores e princípios do marxismo-leninismo e uma confiança inquebrantável na derrota final do capitalismo num mundo em crise civilizacional.

 

Leitura recomendada:

1ª parte: O SYRIZA sem máscara

O original encontra-se em www.odiario.info/?p=3668

 

 

Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.

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