Movimentos mexicanos de “autodefesa” e “polícias comunitárias” entre a rebelião e a cooptação

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Roberto Ramírez
12/02/2014

 

 

Semanas atrás, pouco antes do final do ano, as manchetes da imprensa e os noticiários de TV na capital mexicana não se referiam só ao Papai Noel ou aos Reis Magos. Informaram também diferentes movimentos armados - “autodefesas” e “polícias comunitárias” –, que em vários estados vinham crescendo e mantendo confrontos com poderosas organizações criminosas, que vivem à sombra protetora dos governos estaduais e, também, de setores do Estado federal.

 

O caso mais repercutido desta rebelião foi o do estado de Michoacán, situado no oeste do estado do México, que rodeia o Distrito Federal, capital do país. Mas não é o único caso. Segundo o diário “progressista” La Jornada – que vem cobrindo os acontecimentos com um notável trabalho jornalístico -, situações similares já ocorreram em outros dez dos 31 estados que compõem os “Estados Unidos Mexicanos”, principalmente em Guerrero, Hidalgo, Veracruz e Oaxaca.

 

Em dezembro passado, tudo isso começou a transcender na imprensa mundial. No entanto, há um ano, concretamente desde janeiro/fevereiro de 2013, o movimento de autodefesas havia dado seus primeiros passos em Michoacán. Paralelamente, algumas “polícias comunitárias” – que são organizações muito mais antigas do povo indígena – começaram também a adquirir notoriedade por ações similares às de autodefesas no estado vizinho a Michoacán, o de Guerrero.

 

O primeiro ano do governo de Enrique Peña Nieto (do PRI, Partido Revolucionário Institucional), que assumiu em 1º de dezembro de 2012, foi cruzado por dois importantes acontecimentos: 1) o destas lutas, que implicaram no armamento de setores da população, principalmente agrários; 2) grandes mobilizações de protestos nas cidades, em especial na capital, em oposição às (contra) reformas impulsionadas pelo PRI e outros partidos patronais (supostamente) “opositores”. Veremos aqui o primeiro tema.

 

As razões da explosão popular

 

Nos últimos anos, as mega-organizações criminosas existentes em vários estados do México fizeram fama internacional com a “guerra contra o narcotráfico”, declarada pelo anterior presidente, Felipe Calderón, ao iniciar seu mandato em dezembro de 2006.

 

Esta “guerra”, que havia custado 120.000 mortos (1), não conseguiu acabar com o crime organizado. Mas deixou no resto do mundo a falsa ideia de que  as organizações criminosas mexicanas se dedicam exclusivamente à produção e exportação de narcóticos ao grande drogadicto mundial, os Estados Unidos. Na verdade, como no caso de Michoacán e outros estados, tem se “diversificado” a outros itens menos perigosos do que os envios de drogas a Yanquilândia.

 

Assim, “os Cavaleiros Templários” – a organização criminosa que imperava em Michoacán – impunham à população os mais diversos tributos, desde resgates por sequestros até o pagamento de diferentes “impostos”.

 

Este estado é um importante produtor e exportador de abacate, limão e morango, que se cultivam principalmente em pequenas fazendas. Sobre a produção agrícola e também a de carne, os Templários impunham diversos pagamentos. Os trabalhadores que semeavam as culturas tampouco se salvavam: deviam pagar 20 pesos mexicanos por dia de trabalho. Mesmo assim, todos os comércios e negócios, desde a pobre camponesa que vende algo sobre uma manta na calçada, até os que têm locais de primeira linha, como a rede de maxi-quiosques Oxxo (da Coca-cola), também deviam tributos.

 

Esta “proteção” mafiosa – que não é própria de um capitalismo “normal” – se estende, inclusive, a outros grandes negócios, como a exportação para a China de minério de ferro, das jazidas de Michoacán.

 

Mas, se o grande capital viu seus bolsos afetados alguma vez, aos setores populares custou muitíssimo mais do que dinheiro. As atrocidades cometidas pelos Templários não têm limites, porque um clima de terror mediante assassinatos e violações é imprescindível para impor medidas que não se limitam só a arrecadar tributos. Os templários também se apoderaram, por exemplo, de fazendas de pequenos e médios camponeses. Começavam a assassinar membros da família, até que o resto se mandasse. (Ver quadro de depoimentos.)

 

É por isso que uma das ações de maior relevância popular das autodefesas nos municípios que tomavam foi organizar atos de devoluções de terras às famílias camponesas despejadas.

 

Autodefesas e polícias comunitárias

 

As autodefesas, por tudo o que foi se sucedendo em Michoacán, ocuparam o centro da cena política mexicana nos dois ou três últimos meses. Mas os processos de organização e armamento de setores da população, principalmente camponesa e dos pequenos municípios, que se dão em alguns estados, são muito mais amplos e completos. Há diferentes variantes e combinações. Em primeiro lugar, há que se distinguir entre autodefesas e polícias comunitárias. Um colunista do La Jornada as define assim:

 

“Embora as causas do surgimento público de ambas (autodefesas e polícias comunitárias) coincidam em suas ações e se pareçam bastante, não são a mesma coisa. As polícias comunitárias formam uma parte das estruturas de governo dos povos (indígenas) e obedecem a eles, que são os responsáveis pelo seu funcionamento. Sua existência e funcionamento formam parte dos direitos desses povos indígenas.

As autodefesas, no entanto, são grupos de cidadãos que se organizam e se armam para adquirir segurança, e, quando o conseguem, desaparecem. Mas isto não é fácil, porque nada assegura que a causa que os levou a armar-se desapareça completamente; ademais, não há mais controle que os seus membros procurem. E se não desaparecem, podem se converter em problema para o governo ou por ele serem utilizadas para controlar o descontentamento social. Por isso é necessário distingui-las” (2).


Entre a repressão e a cooptação

 

Essas diferenças entre autodefesas e comunitários, assim como as mutantes relações de força e outros fatores, explicam as idas e vindas do governo federal, especialmente diante dos casos sobressalentes: o de Michoacán para as autodefesas e o do limítrofe estado de Guerrero, para as polícias comunitárias. Podemos dizer que o governo federal enfrenta isso tudo com uma faca de dois gumes: por um lado, a repressão, por outro, a cooptação.

 

No caso das polícias comunitárias de Guerrero, que estourou em meados do ano passado, o governo de Peña Nieto conseguiu “impor a ordem” mediante a repressão de forças federais do Exército e da Marinha. E hoje continua injustamente presa a sua cabeça, a famosa Comandante Nestora e outros comunitários.

 

O governo federal poderia fazer isso (com plena colaboração do governador do PRD, um partido que se define “progressista”), porque as polícias comunitárias de Guerrero não chegam a ser um movimento agrário-popular das dimensões das autodefesas de Michoacán. Além disso, sua relativa afinidade com setores opositores de esquerda e do movimento sindical combativo (como a CNTE – Coordenação Nacional de Trabalhadores da Educação) tornou-a difícil de manejar via cooptação.

 

Meses após a eclosão do avanço das autodefesas de Michoacán, o governo federal sugeriu inicialmente outra resposta dura. Não só enviou forças federais como também, de fato, interveio o Estado (governado pelo PRI), instalando ao lado do governador um “delegado para a segurança pública” que faz, desfaz... e governa...

 

No entanto, nas primeiras tentativas de “mão dura”, o tiro saiu pela culatra. O bombardeio de um grupo de civis e autodefesas em Antunes, em 14 de janeiro, com três mortos, provocou uma onda de repúdio nacional... E outra onda ainda maior de organização de mais autodefesas. Uma população atrás da outra ia sendo tomada pelas autodefesas, enquanto os templários mafiosos fugiam sem se atrever a enfrentá-los. Esta situação passou a outro aspecto: a política de cooptação, que também havia sugerido inicialmente, embora muito em segundo plano.

 

Assim, de um dia para o outro, depois de ter lançado raios e faíscas, Peña Nieto, no Foro Mundial de Davos, decidiu dedicar parte de seu discurso às autodefesas para dourar as pílulas da cooptação. Finalmente, dias atrás foi firmado um acordo entre os principais chefes das autodefesas (não todos) e o governo (3). As autodefesas se considerariam “Corpos de Defesas Rurais” e agora não seriam desarmadas. Mas o objetivo final seria integrá-las individualmente à polícia michoacana, um organismo absolutamente corrupto...

 

Mas, um dia depois, um comunicado de outras autodefesas – no CAM (conselho de Autodefesas de Michoacán), com sede em Yurécuaro – rejeitou tudo isso. Seus argumentos são sólidos: dizem que há “cem depoimentos e fatos provados de que as autoridades estão vinculadas ao crime organizado – Cavaleiros Templários” (4). Não é possível, assim, confiar neles e em sua polícia, nem mesmo desarmar-se.

 

O governo federal fez indiscutivelmente um giro pela cooptação, pelo menos de um setor importante das autodefesas. Mas isto é apenas o começo, e um terreno regado de contradições. Entre elas, um fato indiscutível, que questiona a legitimidade de todo o aparato do Estado, tanto de Michoacán como o federal. Depois de anos de (suposta) “guerra contra o narcotráfico”, que não conseguiu grande coisa, o único resultado realmente efetivo foi produto da mobilização popular armada. Em poucas semanas, uma das organizações criminosas mais fortes do México perdeu grande parte de seus domínios. E os principais chefes templários, que nenhum Sherlok Holmes estadual ou federal conseguiria encontrar, embora todo mundo soubesse seus nomes, domicílios e telefones, estão presos... Por enquanto.

 

No entanto, como adverte o setor das autodefesas que se nega a desarmar-se, é muito cedo para cantar vitória.

 

No mesmo sentido, alerta boa parte do jornalismo independente: “Não é desconhecido, muito menos para os cidadãos da Terra Quente que realmente decidiram se defender, que os corpos oficiais aos que agora serviram estão penetrados em nível nacional e regional pelos interesses da delinquência organizada. Talvez, não sejam os mesmos que hoje estão sendo combatidos em Michoacán, mas ao menos outros serão aceitos para que sigam o negócio...” (5).

 

É que, no fundo, além do mais, essa luta se dá em um contexto político e social que ultrapassa Michoacán. Está por vir alguma outra, se fizer parte da luta do conjunto dos trabalhadores da cidade e do campo, contra alguma patronal, um estado e alguns governantes que, entre outras atrocidades, toleraram e incentivaram o império de organizações, como a desbaratada (parcialmente) em Michoacán.

 

 

Notas:

1) “O saldo da narcoguerra de Calderón”, revista Proceso, 30/07/2013

 

2) “Polícias comunitárias e autodefesas: uma distinção necessária”, La Jornada, 23/01/2014.

 

3) “Governo e autodefesas de Michoacán firmam 8 pactos para a ‘normalidade’ ”, CNN México, 28/01/2013.

 

4) "Apesar das ações federais, surge uma nova autodefesa em Michoacán, El Financeiro, 28/01/2013.

 

5) Julio Hernández López, "Astillero", La Jornada, 28/01/14.

 

 

Roberto Ramírez é editor de Socialismo o Barbarie, publicado na Argentina.

Traduzido por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.

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