Por que Evo ganhou?

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Atilio Boron
10/12/2009

 

Há pouco mais de uma semana, celebramos o triunfo de Pepe Mujica no Uruguai. Hoje temos renovadas razões – e também mais profundas – para festejar a extraordinária vitória de Evo Morales. Tal como apontara há um tempo o analista político boliviano Hugo Moldiz Mercado, o contundente veredicto das urnas estabelece ao menos três marcos importantíssimos para a história da Bolívia: a) é o primeiro presidente democraticamente reeleito em dois pleitos sucessivos; b) é o primeiro, ademais, a melhorar a porcentagem de votos com que foi eleito pela primeira vez: 53,7% contra o atual 63,3%; c) é o primeiro a obter uma esmagadora representação na Assembléia Legislativa Plurinacional.

 

Além do mais, em que pese não se dispor ainda dos escrutínios definitivos, é quase certo que Evo obterá os dois terços do Senado e na Câmara dos Deputados, o que lhe permitiria nomear autoridades judiciais e aplicar a nova Constituição sem oposição. Tudo isso o converte, do ponto de vista institucional, no presidente mais poderoso na convulsionada história da Bolívia. E um presidente comprometido na construção de um futuro socialista para seu país.

 

Obviamente, essas conquistas não impedirão Washington de reiterar suas conhecidas críticas acerca da ‘defeituosa qualidade institucional’ da democracia boliviana, do populismo de Evo e da necessidade de melhorar o funcionamento político do país para garantir a vontade popular, como por exemplo se faz na Colômbia. Neste país, sem ir mais longe, cerca de 70 parlamentares uribistas foram investigados pela Corte Suprema de Justiça e pelo Ministério Público local por supostos vínculos com os parlamentares, sendo 30 deles mandados para a cadeia com sentença definitiva. Quatro milhões de refugiados pelo conflito armado, auge do narcotráfico e do paramilitarismo sob amparo oficial e a aquiescência de Washington, violação sistemática dos direitos humanos, entrega da soberania nacional aos EUA mediante um tratado negociado em segredo e que concedeu a instalação de sete bases militares estadunidenses em território colombiano e a fraudulenta manipulação processual para conseguir a re-reeleição do presidente Álvaro Uribe são todos traços que caracterizam uma democracia de alta "qualidade institucional" que não motiva a menor preocupação dos sediciosos cuidados com a democracia nos Estados Unidos.

 

O desempenho eleitoral do líder boliviano é impressionante: obteve um triunfo avassalador na convocatória da Assembléia Constituinte, em julho de 2006, que assentaria as bases institucionais do futuro Estado Plurinacional; outra grande vitória em agosto de 2008 (67%) no Referendo Revocatório forçado pelo Senado, controlado pela oposição, com o aberto propósito de derrubá-lo; em janeiro de 2009, 62% dos votantes aprovaram a nova Constituição Política do Estado; e apenas umas poucas horas atrás, outra plebiscitária ratificação de quase dois terços do eleitorado. O que há por trás dessa impressionante máquina de ganhar eleições, indestrutível, apesar do desgaste de quatro anos de gestão, dos obstáculos interpostos pela Corte Nacional Eleitoral, da hostilidade dos EUA, numerosas campanhas de desabastecimento, intentonas de golpe de Estado, ameaças separatistas e planos de magnicídio?

 

O que há é um governo que cumpriu suas promessas eleitorais e que, por isso mesmo, desenvolveu uma ativa política social que ganhou a indelével gratidão do povo: Programa Juancito Pinto, que chega a mais de um milhão de crianças; Renda Dignidade, um programa universal para todos os bolivianos maiores de 60 anos que careçam de outras fontes de renda; Programa Juana Azurduy para as mulheres grávidas. Um governo que erradicou o analfabetismo aplicando a metodologia cubana do programa "Yo sí puedo", que permitiu alfabetizar mais de um milhão e meio de pessoas em cerca de dois anos, razão pela qual em dezembro de 2008 a UNESCO (não os partidários de Evo) declarou a Bolívia território livre de analfabetismo. Trata-se de uma conquista extraordinária para um país que padeceu uma secular história de opressão e exploração, submerso em uma desalentadora pobreza pelas suas classes dominantes e seus amos imperiais, apesar da enorme riqueza guardada em suas entranhas e que agora, com o governo de Evo, é recuperada e posta a serviço do povo.

 

Por outro lado, o solidário internacionalismo de Cuba e Venezuela também permitiu a construção de numerosos hospitais e centros médicos, ao passo que milhares de pessoas recuperaram a visão graças à Operação Milagre. Importantes avanços se registraram também em matéria de reforma agrária, com cerca de meio milhão de hectares transferidos às mãos dos camponeses, e na anunciada recuperação das riquezas básicas (petróleo e gás), o que em seu momento provocou o nervosismo de seus vizinhos, especialmente o Brasil, mais preocupado em garantir a rentabilidade da Petrobrás que em cooperar com o projeto político de Evo. Por último, o cuidadoso manejo da macroeconomia permitiu à Bolívia, pela primeira vez em sua história, contar com importantes reservas estimadas em 10 bilhões de dólares e uma situação de bonança fiscal que, unida à colaboração da Venezuela nos marcos da ALBA, permitiu a Morales realizar inúmeras obras de infra-estrutura nos municípios e financiar sua ambiciosa agenda social.

 

É claro que sobram muitas contas pendentes e nem todos os feitos estão acima das críticas. Em uma matéria recente, Pablo Stefanoni, editor de Le Monde Diplomatique na Bolívia, advertia a instável convivência entre "um discurso eco-comunitarista nos foros internacionais e premissas desenvolvimentistas sem muitos matizes no âmbito interno". Ainda que a tensão exista, é preciso reconhecer que a vocação eco-comunitarista de Evo Morales supera com louvor seus pares nos foros internacionais: seu compromisso com a Mão Terra, a Pachamama, e os povos originários é sincero e efetivo, marcando época na história de Nossa América.

 

Por suposto, o extrativismo de seu padrão de desenvolvimento é inegável, mas ao mesmo tempo inevitável, dadas as características brutalmente predatórias que a acumulação capitalista assumiu na Bolívia. Pensar que da noite para o dia o governo popular poderia sustentar um modelo de desenvolvimento alternativo, deixando de lado a exploração de imensas riquezas minerais e energéticas deste país, é completamente irreal. A Bolívia não tem a seu alcance, ao menos agora, uma opção como em certo momento tiveram Irlanda ou Finlândia. Mas seria injusto desconhecer que a orientação de seu modelo econômico e seu forte conteúdo distributivista a separam claramente de outras experiências em marcha no Cone Sul. Sem falar da declarada intenção de Evo em avançar na vagarosa – e por isso mesmo lenta e eriçada de perseguições – construção de um renovado socialismo, algo que não tem nada a ver com o nebuloso ‘capitalismo andino-amazônico’ que alguns persistem em apresentar como uma, tão inexorável como inverossímil, ante-sala do socialismo.

 

Todas essas conquistas, somadas à sua absoluta integridade pessoal e uma espartana cotidianidade (que contrasta muito favoravelmente com as vultosas fortunas ou elevados padrões de consumo que exibem outros líderes e políticos ‘progressistas’ da região), fizeram de Evo um líder dotado de formidável carisma pessoal, que lhe permite golear qualquer rival que se atreva a desafiá-lo na arena eleitoral. Mas, além do mais, sua permanente preocupação em conscientizar, mobilizar, organizar sua base social – colocando de lado os desprestigiados aparatos burocráticos que, assim como no Brasil, Argentina e Chile, não mobilizam nem conscientizam ninguém – não só satisfaz a inadiável necessidade de construir uma subjetividade apropriada para as lutas pelo socialismo como, ao mesmo tempo, se constitui uma carta decisiva na hora de prevalecer na arena eleitoral.

 

As forças da atribulada ‘centro-esquerda’ do Cone Sul, que prenunciam um futuro político pouco promissor tendo em conta o crescimento da direita alimentada pelo seu resignado possibilismo, fariam bem em tomar nota da luminosa lição que oferece o triunfo de Evo nas eleições de domingo passado.

 

Uma lição que demonstra que, diante do perigo da restauração do domínio da direita, a única alternativa possível é a radicalização dos processos de transformação em curso. Derrotada no terreno eleitoral, a direita redobrará sua ofensiva nos múltiplos cenários da luta de classes. Seria suicida supor que se curvará sem provocar batalhas ante um revés eleitoral. Tomara que também se aprenda essa lição.

 

*Versão ampliada de artigo produzido no dia 6 de dezembro no diário Página 12.

 

Atilio A. Boron é diretor do PLED, Programa Latinoamericano de Educación a Distancia em Ciências Sociais, Buenos Aires, Argentina.

Website: http://www.atilioboron.com/

 

Traduzido por Gabriel Brito.

 

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