Abrupta mudança da conjuntura política na Argentina: terminou a “lua de mel”

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Roberto Ramirez, de Buenos Aires para o Correio da Cidadania
13/04/2016

 

 

 

 

 

“A segurança presidencial foi surpreendida e ficou desconcertada quando uma mulher mais velha empurrou o presidente Mauricio Macri, que havia saído do carro em Río Ceballos, Córdoba, para saudar o povo” (La Nación, 6 de abril de 2016)

 

Nos últimos dias ocorreram vertiginosamente uma série de fatos que colocaram uma mudança na conjuntura política da Argentina.

 

Abruptamente, terminou a “lua de mel” do governo Macri com a sociedade argentina. E mais: o brutal aumento das tarifas de eletricidade, água e gás, junto com o aumento do transporte, pode dar lugar a expressões massivas de repúdio ao governo.

 

O governo Macri vinha em um “onda triunfalista” que está se demonstrando exagerada. Isto também dá uma lição de como as conjunturas políticas – sobretudo nestas épocas de crises crônicas – podem mudar quase que de um dia para o outro.

 

Apenas há alguns dias atrás, o bilionário presidente Mauricio Macri festejava como “perfeita” a visita de Obama, louvava suas “melhores semanas de gestão”, coroando o triunfo político obtido no Congresso, que votou a favor do pagamento aos “fundos abutres”, uma soma que supera os 15 bilhões de dólares e deixará o país endividado por décadas.

 

Mas estes “triunfos” só representavam uma parte da realidade. A outra é que os aumentos sem fim dos preços (em primeiro lugar, dos alimentos), as demissões de centenas de milhares de trabalhadores, os aumentos fenomenais de 300% a 500% da eletricidade, água e gás têm caído como um porrete entre os trabalhadores e amplos setores da sociedade. Uma boa parte deles havia votado em Macri, com certas esperanças em suas promessas de “pobreza zero”. Ao mesmo tempo, junto a isso, como um fator de primeira ordem, estavam funcionando os mecanismos de “voto castigo” ao governo de Cristina Kirchner, que vinha degradando-se pouco a pouco.

 

Mas os problemas do governo anterior hoje parecem insignificantes comparados ao aluvião de desemprego e carestia desatado sob Macri. Isto já está produzindo um crescente mal-estar e uma mudança de opiniões sobre o novo governo.

 

Mas, como diz um provérbio espanhol, “as desgraças nunca vêm desacompanhadas”. Macri e sua coalizão de diversas patotas políticas (desde neoliberais “puros” do PRO, até os governadores e parlamentares peronistas ex-kirchneristas comprados) haviam tomado como uma de suas principais bandeiras a “luta contra a corrupção”, que por suposto se aplicava ao governo que saía, de Cristina Kirchner.

 

Para isso, diversos juízes e fiscais títeres haviam começado a processar alguns funcionários e testas de ferro do governo anterior, ameaçando inclusive a própria Cristina.

 

Em meio a esse panorama, estoura a bomba mundial dos “Panamá Papers”. Neles, o presidente Macri, sua família e outros notórios funcionários de seu governo aparecem na primeira fila, com dezenas de sociedades “fantasmas” organizadas no Panamá para evadir impostos na Argentina.

 

A conclusão começa a ser óbvia até para o mais ingênuo crente no novo governo. Enquanto os trabalhadores – que não auferem lucro, recebem salário – pagam impostos, os grandes capitalistas e seus executivos (encabeçados pelos que hoje compõem o novo governo) têm “sinal verde” para evadir.

 

Um governo manchado por esta denúncia já não pode aparecer como “irrepreensível”, nem lutador contra a corrupção, como fingiu ao longo da campanha eleitoral e das primeiras semanas no poder. Este é o segundo elemento de capital importância que golpeia Macri.

 

O terceiro elemento a tomarmos nota na configuração desta nova conjuntura política é o crescimento de lutas por setor, e inclusive por categorias; por exemplo, a greve nacional da Confederação de Trabalhadores da Educação da República Argentina (CTERA), em 4 de abril, que paralisou as atividades educativas em todo o país no dia.

 

Foi uma ação contundente, apesar da evidente manobra dos burocratas que dirigem a CTERA, que convocaram esta greve nacional logo após fecharem as principais negociações salariais do setor.

 

Esses e outros elementos confluem em uma mudança de conjuntura. O governo deverá enfrentar agora os rigores desta mudança, em uma sociedade que demonstrou ser politicamente dinâmica e difícil de manipular desde o “Argentinazo” de dezembro de 2001, quando se derrubou o então presidente Fernando de la Rúa – principalmente caso se pretenda impor um brutal descenso do nível de vida.

 

A notícia bomba: Macri e sua família na primeira fila do “Panamá Papers”

 

Neste quadro é preciso sublinhar o escândalo do “Panamá Papers”. Como no Brasil, a “justiça” argentina estava levando adiante um “arbítrio” ao redor dos casos de corrupção, de enriquecimento ilícito e favores ao centro do poder, mas apenas contra o governo anterior. As não menos suspeitas fraudes do PRO à frente do governo da cidade de Buenos Aires são intocáveis, como, por exemplo, que quase todos os contratos de obras públicas foram obtidos por uma empresa de um familiar de Mauricio Macri.

 

Nessas operações judiciais, alguns peixes pequenos e medianos do kirchnerismo começam a cair e haverá de se ver o que ocorrerá com Cristina Kirchner, chamada a declarar nesta quarta-feira, 13 de abril. Por isso, a “imparcialidade” da Justiça para determinados assuntos está em questão. No sentido político, a operação judicial contra os Kirchner é demasiadamente evidente. Visa castigá-los, hoje caídos em desgraça, para legitimar a atual gestão e seus negócios.

 

O enriquecimento a centro do poder foi não somente a marca dos “populismos”, mas também – sobretudo nesta era neoliberal – de todos os governos patronais. Hoje, o “capitalismo de amigos”, a evasão de impostos e as fraudes fiscais, a compra e venda de influências, “contratos” etc., são praticadas não apenas na Ásia, África ou América Latina. Também são norma nos Estados Unidos e União Europeia! Por isso, estão junto a Macri & família o presidente do México, uma tia do Rei da Espanha e outros respeitabilíssimos do “primeiro mundo”.

 

Em todo caso, o gravíssimo problema que foi gerado ao governo é que em meio a este operativo “moralizante” estourou o “Panamá Papers”, a maior imersão sobre capitais offshore da história, na qual está envolvido Macri junto a personagens como Putin, presidente da Rússia, e Xi Jinping, premier da China. Não mente o jornalista Morales Solá (do diário La Nación, apadrinhado pelo oficialismo), quando adverte que semelhante problema já fez cair outro governo que tinha apenas quatro meses, como o da Islândia.

 

Causaria riso, se não houvesse movido a indignação, escutar a justificativa do presidente Macri de que “tudo está perfeito”, que ter contas off shore é perfeitamente “legal”. Não é apenas uma enorme mentira, mas algo difícil de acreditar. Essas contas são criadas para colocar capitais não declarados, que desta maneira não pagam impostos; ou pior, dinheiro duvidoso de negócio turvos, ilegais, desde o narcotráfico ao contrabando e tráfico de pessoas.

 

A circunstância é dupla ou triplamente indignante porque enquanto dos trabalhadores são cobrados compulsivamente impostos de ganhos que não são tais, o presidente em pessoa é o primeiro evasor da Argentina. Tem contas no exterior para não pagar impostos de seus verdadeiros lucros, seguido de perto por funcionários do PRO como Grindetti (prefeito de Lanús e ex-ministro da Fazenda da Cidade de Buenos Aires), Jorge Macri (prefeito de Vicente Lopez), Claudio Avruj (secretário de Direitos Humanos da Nação) e muitos outros.

 

Se a arbitragem judicial é unilateral contra os ex-funcionários kirchneristas e a serviço do poder de turno, de todas as maneiras nossa posição é independente: todos os funcionários ou ex-funcionários, sejam do grupo que forem, que enriqueceram no colo do Estado, devem ser responsabilizados.

 

Mas o mesmo vale para Macri e seu entorno. Foram despidos não pela justiça argentina – que enxerga com apenas um olho –, mas por uma investigação de meios internacionais independentes do governo argentino.

 

Em todo caso, a denúncia por evasão de divisas deve ser utilizada pela esquerda e pelos trabalhadores para debilitar este governo reacionário.

 

Emerge o mau humor social

 

A denúncia do offshore não podia chegar em pior momento para o oficialismo. É verdade, como assinalamos acima, que a Justiça e os meios de comunicação argentinos têm tratado de encobrir Macri, pondo em primeiro plano as investigações sobre o kirchnerismo.

 

Mas esta atuação da Justiça hoje já não é do agrado completo do macrismo: teme que as coisas terminem voltando-se contra si, como um bumerangue: “a celeridade que mostram por essas horas alguns magistrados gera certa precaução em alguns colaboradores de Macri”, revela o diário oficialista La Nación (06/04/2016). E que a “vara dupla” com que se movem estes juízes é demasiado evidente: podia terminar alimentando mais suspeitas sobre o oficialismo, que na verdade não é menos corrupto.

 

Ademais, todo este escândalo veio a alimentar a mudança de humor social que vinha cozinhando a fogo lento. Uma representação gráfica foi vivida pelo próprio Macri no incidente em que a mulher o empurrou há alguns dias em Córdoba. Isso o levou a suspender a visita a uma fábrica da FIAT onde estão previstas demissões. Sua visita à FIAT havia sido cuidadosamente planejada. Nenhum operário estaria presente: apenas diretores e pessoal da administração. Mas apesar dessas precauções Macri decidiu que o mais prudente seria não aparecer.

 

Quando Macri assumiu, contava com o apoio beneplácito de uma maioria das classes médias, assim como uma combinação de expectativas e confusão entre amplos setores dos trabalhadores. Até poucos dias atrás era possível escutar a opinião de que “é preciso dar-lhe tempo”, que ainda era muito cedo para exigir coisas.

 

Nos últimos dias isto parece haver mudado fortemente. Escutam-se cada vez mais críticas. Emergem sintomas de indignação, que poderiam transformar-se em explosões de raiva quando, além das tarifas de gás, água e eletricidade, aumentará o preço do transporte nos próximos dias.

 

Daí a percepção que se escuta nos bairros, entre vizinhos, de preocupação, de que o governo vai “explodir o país”.

 

Isso já se expressa em conflitos de importância como o dos funcionários públicos e docentes na Terra do Fogo, em Santa Cruz, com os trabalhadores vinculados a obras públicas, e na paralisação nacional docente do último dia 4 de abril. Funcionários públicos da província de Buenos Aires também entram em estado de alerta, há conflitos no Ministério do Trabalho da Nação e na Economia, conflitos de fábrica contra demissões, como da TecPlata em La Plata, e de bancários, que anunciam uma nova greve geral no sindicato, e mais um longo “etc.” de lutas que não podemos resumir aqui, mas que indicam outro dos elementos fundamentais da mudança de conjuntura: começaram os conflitos e nada faz prever que não vão aumentar!

 

 

 

Roberto Ramirez é editor da revista argentina Socialismo ou Barbárie.

Traduzido por Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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