Caravana por estudantes desaparecidos volta a expor falência do Estado mexicano

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Raphael Sanz, da Redação
10/06/2015

 

 

No último dia 2 de junho, a Caravana 43 de Ayotzinapa por Sudamerica passou por São Paulo e realizou algumas atividades no centro da cidade para divulgar a luta dos familiares dos 43 estudantes desaparecidos no último dia 26 de setembro, na cidade de Iguala, estado de Guerrero, no México. Da coletiva de imprensa próxima ao metrô Santa Cecília à mesa que dividiram com as Mães de Maio na quadra do sindicato dos bancários, na Sé, a mensagem era uma: “vivos os levaram, vivos os queremos”.

 

Composta por um sobrevivente dos ataques, duas mães e um pai dos desaparecidos, a Caravana 43 passou por Córdoba, Rosário e Buenos Aires, na Argentina, Montevidéu, no Uruguai, e entrou no Brasil por Porto Alegre, para depois passar por São Paulo e Rio de Janeiro. Diversos coletivos e associações autônomas brasileiras, argentinas e uruguaias ajudaram os mexicanos, levantando fundos para cobrir gastos da viagem, produzindo os eventos e cuidando da logística.

 

Origem dos fatos

 

No dia 26 de setembro de 2014, os estudantes da Escola Normal Rural Raul Isidro Burgos, em Ayotzinapa, fariam uma atividade em Iguala para arrecadar fundos a fim de participar da marcha de 2 de outubro, na Cidade do México, que marcaria o aniversário de 47 anos do famoso Massacre de Tlatelolco. “Tínhamos de ir a essa marcha porque foi uma matança enorme, algo que temos que rememorar e exigir que não volte a acontecer”, explicou Francisco Nava, 19, estudante sobrevivente do massacre.

 

No dia da tragédia, os estudantes foram em cinco ônibus para Iguala. Três dos cinco coletivos erraram uma saída na estrada e pararam logo em seguida para pedir informações. Alguns estudantes que desceram do ônibus foram alvejados em um primeiro ataque policial militar. Houve correria sem feridos. Os ônibus saíram em busca da direção certa. Poucas ruas antes de pegar a saída para a Cidade do México, por onde chegariam a Iguala, foram atacados novamente e alguns estudantes desapareceram.

 

Por volta das 19h, os estudantes que estavam nos outros dois ônibus, já em Iguala, receberam a notícia dos ataques e chamaram a imprensa local, quando um outro comando policial militar abriu fogo contra eles, matando dois e deixando outros tantos feridos. Os agentes do Estado mexicano também abriram fogo – por engano – contra um ônibus que transportava um time de futebol, deixando mais três mortos na ocasião. No final da noite o saldo era de 6 mortos, 29 feridos e 43 desaparecidos em quatro ataques sofridos pelos estudantes, entre 26 e 27 de setembro.

 

Na manhã do dia 27, o corpo de Julio Cesar Mondragón foi encontrado nas redondezas com o rosto destruído, sem um dos globos oculares e sem marcas de tiro. Afundamento de crânio foi apontado pela autópsia como a causa mortis.

 

A Escola Normal Rural de Ayotzinapa

 

A Escola Normal Rural de Ayotzinapa é umas das 17 escolas rurais espalhadas pelo interior do México. Do número total, 6 são internatos masculinos – como no caso de Ayotzinapa -, 6, femininos e as outras 5, mistas. “Quando há algum problema, todos os estudantes das normais se juntam para discutir e manifestar em conjunto”, explicou Francisco.

 

“Somos gente humilde, pobre, sem recursos para estudar em escolas pagas. Nossa escola sempre nos ensinou a lutar por nossos direitos e por isso sempre fomos atacados. Sempre fomos um estorvo para o Estado. Todas as escolas rurais sofrem o mesmo tipo de acosso que sofremos, pois é assim em todos os locais onde a economia avançada ainda não chegou completamente. Temos poucos recursos, mas formamos professores que transmitem consciência ao morador do campo”, contextualizou o garoto, o mais eloquente entre os aztecas.

 

Jorge Legideño, filho de Hilda Tizapa Legideño, uma das mães na caravana, estudava em Ayotzinapa perseguindo o sonho de se tornar professor. “Meu filho tem 20 anos e uma filha de dois. Chegou a parar de estudar por dois anos pra trabalhar, cuidar da vida e da família. Mas sempre o incentivei a voltar aos estudos. Ele estava feliz, sempre chegava em casa falando de como foram as aulas”.

 

Obscurantismo estatal


Assim como no Brasil, o dia 2 de outubro – data do massacre do Carandiru – é manchado, no México, pelo massacre de Tlatelolco. Nesta data, em 1968, cerca de 300 estudantes foram assassinados pela polícia militar mexicana na praça das Três Culturas, região de Tlatelolco, Cidade do México. Dez dias depois foi realizada a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos na cidade. Na ocasião, os grandes meios de comunicação defenderam que provocações por parte dos estudantes justificaram a ação da polícia e, desde então, há uma grande luta por parte dos movimentos sociais mexicanos para a investigação desse massacre.

 

Foi para ir à marcha anual em memória deste massacre que os estudantes de Ayotzinapa levantavam fundos em Iguala no dia em que foram atacados. Assim como 47 anos antes, o governo mexicano, com os grandes meios de comunicação locais como porta-vozes, demorou oito dias para dar explicações que pouco convenceram os parentes das vítimas.

 

Segundo investigação oficial, o prefeito, José Luis Abarca e sua esposa, Maria de los Angeles Pineda – irmã de narcotraficantes da quadrilha Guerreros Unidos que atua na região desde o ano 2000 –, foram responsabilizados pela execução e desaparecimento dos corpos, que teriam sido incinerados em um aterro sanitário local, com as cinzas jogadas em um rio da região. Fugidos de Iguala no dia 29 de setembro, o casal foi preso na Cidade do México no início de novembro. Já o governo, esquivou-se da responsabilidade, ligando o massacre a um caso de violência protagonizado pelo narcotráfico, uma vez que afirmou desconhecer as ligações da família do prefeito de Iguala.

 

Uma equipe de médicos legistas argentinos viajou para o México e fez a perícia nas cinzas e restos mortais apresentados pelo governo. “O governo sempre disse que nossos filhos estavam mortos. Mas como não lhe temos confiança, sempre buscamos investigar por conta própria e fazer outras perícias, que logo desmentiram as versões do governo”, contou Hilda Legideño.

 

“É uma dor impressionante, que nos mata psicologicamente todos os dias. Pior ainda é ver o governo querer nos dar um pedaço de osso qualquer e esperar que a gente vá pra casa”, reiterou Mario Cesar Contreras, pai do desaparecido Cesar Manoel, que refuta todas as versões oficiais. “Tanto que os peritos argentinos que vieram ao México trabalhar na questão não deram fé à versão do governo. Não podemos aceitar qualquer caixinha de cinzas”.

 

É visível o cansaço no semblante dos pais e do sobrevivente que vieram para São Paulo. Hilda Legideño resumiu um pouco da vida dos envolvidos nos últimos nove meses. “Dividimos todas as tarefas. É desesperador, mas entendemos que não podemos parar. Fazemos marchas, atos e protestos a qualquer dia e hora, até perdemos a noção do tempo de vez em quando. Dizem que foi o crime organizado, mas nós afirmamos que foi o próprio governo”.

 

Além de refutar as versões oficiais e seguir buscando indícios da vida ou mesmo da morte dos 43 desaparecidos, a Caravana ainda criticou a relação entre o Estado mexicano e o narcotráfico e questionou o grau de democracia que pode ser observado no país norte-americano. “Nos últimos tempos, o governo fez mais de 100 incursões e averiguações em locais do narcotráfico e não houve um tiroteio. Já aprendemos o que é viver em Guerrero, como o Estado é cúmplice dos narcos, como despoja os indígenas e como explora as terras ricas em minérios”, disse Mario Cesar.

 

Tal relação acompanha, segundo Francisco Nava, um processo de militarização da região. “Hoje, há o triplo de militares em Guerrero”. “Nossos 43 são a gota que transbordou o vaso e mostrou ao mundo a verdadeira situação do país”, concluiu Mario Cesar.

 

O Plano México e a recente militarização do país

 

Um pacote de políticas internacionais da Casa Branca, cujo nome oficial é “Iniciativa de Mérida”, foi aprovado no congresso estadunidense entre os dias 15 e 22 de maio de 2008. Proposto pela gestão Bush, o plano consistia na doação de 1 bilhão e 400 milhões de dólares em três anos para financiar e modernizar o aparato repressivo do governo mexicano, sob pretexto de combater o narcotráfico, o terrorismo e realizar a manutenção da segurança fronteiriça. O Plano não prevê envio de tropas, mas foi oferecido treinamento ao exército e polícia mexicanos, por meio de oficiais das forças armadas estadunidenses, da CIA e de empresas privadas de segurança. A verba também seria usada para a compra de equipamentos modernos de guerra e espionagem.

 

A principal empresa de segurança que prestaria serviços no México era a velha BlackWater (hoje Academi), mundialmente conhecida por suas ações em Nova Orleans, na época do furacão Katrina e na invasão do Iraque, onde cometeu o massacre da praça Nissour, em Bagdá, no qual  dezenas de civis iraquianos foram metralhados gratuitamente por um comboio da empresa. Seu fundador e dono, Erik Prince, é ex-SEAL (Grupo de Operações Especiais das Forças Armadas dos EUA) e, desde 1998, doa anualmente US$168 mil ao Comitê Nacional Republicano. Em 2008, 90% dos lucros da empresa eram procedentes de serviços prestados ao governo estadunidense.

 

Boa parte desses 1,4 bilhão de dólares foi destinada à PFP (Polícia Federal Preventiva), responsável pela repressão aos protestos e organizações sociais criadas pelos professores da cidade de Oaxaca, em 2006, quando dezenas de mexicanos foram mortos. O assassinato do jornalista estadunidense Brad Will, que cobria a revolta local para o Centro de Mídia Independente, no dia 27 de outubro de 2006, foi emblemático. Brad estava gravando um vídeo no momento que foi morto a tiros. Ao cair no chão, sua câmera continuou filmando e fez imagens de sua morte.

 

Essa militarização desenfreada que incendiou o México a partir de 2008 está inserida no cronograma de políticas da ASPAN (Aliança pela Segurança e Prosperidade da América do Norte), um órgão crucial para entender o Plano México. A ASPAN ganhou o apelido de NAFTA-PLUS por fazer parte de uma estratégia dos EUA de forçar seus sócios comerciais a formarem com eles uma frente comum, que sustente a “guerra ao terrorismo” e difunda as ideias de livre-mercado.

 

A ASPAN foi fundada em 23 de março de 2005 pelos presidentes dos três países norte-americanos e é composta por 23 grupos de trabalho integrados pelas Secretarias de Governo e Relações Exteriores de cada um dos países.

 

Desses 23 grupos de trabalho da ASPAN, saem resoluções que são assinadas pelos três governos. Na maioria dos casos, as resoluções apenas requerem assinatura dos seus mandatários para serem colocadas em prática. Outras vezes, os responsáveis são encarregados de transformar estas resoluções em iniciativas de leis nos respectivos congressos, sem a necessidade de mencionar a sua origem.

 

A ASPAN não tem um tratado e sua criação não foi submetida a votação em nenhum dos três congressos. Sua suposta legitimidade é altamente questionável.

 

Massacres no México, uma realidade parecida com a do Brasil


Sobrevivente, Francisco Nava rememorou o histórico de massacres promovidos pelo Estado mexicano. Em 12 de dezembro de 2011, dois estudantes de Ayotzinapa foram mortos pela polícia enquanto protestavam pela manutenção das 140 vagas abertas para matrículas a cada período letivo.

 

Em janeiro de 2014, outro ataque. Enquanto os estudantes faziam uma espécie de piquete em estrada para arrecadar fundos, um veículo de forma repentina atropelou alguns deles. “Poucos dias antes o governador (do estado de Guerrero) dera entrevista falando estar cansado de nós”, conta Francisco.

 

“Em Michoacán aconteceu o mesmo, dezesseis camponeses sumiram e aparecem três dias depois, mortos. O Estado disse que eram bandidos, mas eram membros das autodefesas”, explicou, mencionando os grupos de civis que se armaram recentemente em alguns estados mexicanos, para resistir aos constantes achaques do narcotráfico. “O Estado vê crimes à luz do dia e faz vista grossa. Em Guerrero, a vida é assim”, lamentou.

 

De 2010 até hoje, pelo menos outros 20 massacres deixaram centenas de mortos e desaparecidos além dos estudantes de Ayotzinapa. Em 18 de março de 2011, 300 corpos foram encontrados em Allende, Coahuilla, nordeste do país. Outros 340 morreram em Durango, no mês seguinte. No estado de Guerrero, foram encontrados outros 55 corpos em vala clandestina em 2010, na cidade de Taxco, próxima de Ayotzinapa.

 

Em 2014, além do massacre de Iguala, em que desapareceram os 43 estudantes, ainda houve o de Michoacán, em 30 de junho, quando 22 pessoas foram mortas pela polícia, e o de Morelos, em 8 de março, com um número mais reduzido de vítimas. Em 2015, cerca de 80 pessoas já morreram em chacinas semelhantes em províncias dos estados de Michoacán e do México.

 

Tanto lá quanto aqui, chacinas perpetradas pelo poder público se tornaram comuns. Não por acaso, foi promovida a confraternização, com direito à intervenção teatral, com as Mães de Maio (movimento de mães de jovens vítimas dos confrontos entre PM e PCC em São Paulo, 2006), em frente à catedral da Sé, seguida de debate na quadra do Sindicato dos Bancários, de modo a aproximar a causa mexicana da realidade brasileira.

 

Assim como no México, o Estado brasileiro também se esquiva de seus massacres e culpabiliza o narcotráfico ou a própria vítima através dos famigerados autos de resistência, a exemplo das recentes matanças na Mangueirosa (Belém, em novembro) e Cabula (Salvador, em fevereiro).

 

É consensual entre os participantes da Caravana 43 e os ativistas brasileiros que há uma convergência global entre esses planos de militarização, levados a cabo tanto no México quanto no Brasil – entre outros casos, como na Colômbia. O sobrevivente Francisco Nava resumiu o encontro: “eles globalizaram todas as formas de opressão e violação de direitos. Temos de globalizar a resistência”.

 

Eleições do último domingo: protestos e candidata decapitada

 

Pra completar a semana, no domingo, 7 de junho, os mexicanos foram às urnas escolher os ocupantes da Câmara dos Deputados, das câmaras estaduais, nove governadores e aproximadamente mil prefeitos. Mas, no estado de Guerrero, as eleições não foram vistas como uma “festa da democracia”.

 

Por um lado, o governo Peña Nieto via as eleições como uma prova de fogo para sua continuidade. Após semanas de fortes mobilizações, bloqueios de estradas e ameaças de boicote, mobilizou um enorme aparato policial e militar – mais de 40 mil agentes – para garantir o pleito.

 

Por outro lado, uma série de manifestações e atos de sabotagem marcou o processo eleitoral em Guerrero. Em Tixtla, manifestantes solidários aos desaparecidos incendiaram 28 das 54 urnas presentes na localidade e as eleições foram oficialmente suspensas. Familiares e amigos dos desaparecidos se recusam a votar enquanto não os encontrarem com vida. Em março, Aidé Nava González, então candidata do PRD (de centro-esquerda) à prefeitura de Ahuacuotzingo, também no estado de Guerrero, foi torturada e decapitada por narcotraficantes.

 

Somente 48% dos 83 milhões mexicanos habilitados a votar compareceram às urnas. Tudo indica que o PRI (Partido Revolucionário Institucional) do presidente Peña Nieto, ainda que tenha perdido espaço, continuará com maioria no congresso nacional, com 30% das cadeiras, enquanto 21% das cadeiras devem ficar com o PAN (Partido da Ação Nacional), que faz oposição ao PRI pela direita, e 11% com o PRD.

 

Assim como nas eleições que colocaram Peña Nieto na presidência nacional em 2012, os recentes resultados sofrem contestações. Na capital, a Cidade do México, o PRD pede recontagem de votos e levanta suspeitas sobre a quantidade de votos nulos, que supera a diferença entre o primeiro e o segundo colocados.

 

 

Raphael Sanz é jornalista; colaborou Gabriel Brito.

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