Observações sobre o golpe frustrado na Venezuela

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Atilio Boron
25/02/2015

 

 

Faz pouco mais de um ano que a direita fascista venezuelana lançava uma nova ofensiva dirigida para provocar a “saída” do presidente Nicolás Maduro. A “saída” era um eufemismo para designar uma convocatória à sedição, ou seja, à destituição por meios violentos, ilegais e anticonstitucionais do mandatário legal e legitimamente eleito pelo povo venezuelano. Esta iniciativa esteve rodeada por um anel de heroísmo por parte da imprensa de direita de todo o continente, que com seus truques e suas “mentiras que parecem verdades” – segundo a perspicácia de Mario Vargas Llosa – tentou concretizar uma audaz operação de alquimia política: transformar um grupo de sediciosos em épicos “combatentes da liberdade”.

 

Tudo isso, naturalmente, foi incentivado, organizado e financiado pela Casa Branca, que nesta data ainda não reconheceu o triunfo de Maduro nas eleições presidenciais de 14 de abril de 2013. Washington tem sido, em contrapartida, rápido como um raio para bendizer a eleição de Otto Pérez Molina, um general guatemalteco preso a uma história macabra de repressão genocida em seu país; ou para consagrar a eleição de Porfírio Lobo, em um fraudulento processo eleitoral urdido pelo regime golpista que destituiu o presidente legítimo José Manuel “Mel” Zelaya, condenando Honduras a um interminável banho de sangue.

 

Mas uma coisa são os amigos e outra, muito distinta, são os inimigos, ou seja, os governos que por não se ajoelharem ante os decretos imperiais se tornam inimigos. A República Bolivariana da Venezuela é um deles. Igual às nossas Cuba, Bolívia e Equador. Ao desconhecer o veredito das urnas, Washington não apenas transgride a legalidade internacional como, ademais, se torna um instigador e cúmplice dos sediciosos, cuja obra de destruição e morte cobrou a vida de 43 venezuelanas e venezuelanos (em sua grande maioria chavistas ou membros dos corpos de segurança do Estado).

 

Exagero? O passado condena

 

Nestas últimas semanas, os Estados Unidos redobraram seus esforços desestabilizadores, aumentando suas apostas. Se antes procedia através de um bando de sediciosos que em qualquer país do mundo estaria na prisão, sentenciado a cumprir duríssimas penas, hoje desconfiam dos seus peões venezuelanos, tomam o assunto em suas próprias mãos e intervêm diretamente. Já não são aqueles paus mandados obscenos do império, tipo Leopoldo López, Maria Corina Machado ou Henrique Capriles que impulsionam a desestabilização e o caos, mas a própria Casa Branca.

 

Um império “atendido por seus donos”, que descarrega uma bateria de medidas de agressão diplomática e sanções econômicas que se montam sobre a campanha de terrorismo mediático lançada desde o início da Revolução Bolivariana, até chegar a promover um golpe de Estado onde os rastros da Casa Branca aparecem por todos os lados. Respondendo a essa imputações, a porta-voz do Departamento de Estado, Jen Psaki, afirmou que eram “ridículas” e que “os Estados Unidos não apoiam transições políticas por meios não constitucionais. As transições políticas devem ser democráticas, constitucionais, pacíficas e legais”.

 

É obvio que a porta-voz é uma mentirosa em série e descarada ou, hipótese mais branda, padece de uma grave doença que apagou sua memória de um disco rígido neuronal. Como tratamento, bastaria convidá-la para que veja um despacho da CBC News, o qual mostra uma de suas superiores, a Secretária de Estado Adjunta para Assuntos Euroasiáticos, Victória Nuland, conversando amavelmente com os neonazis que ocupavam a praça Maidan de Kiev e exigiam a renúncia do presidente Viktor Yanukovich, coisa que conseguiram alguns dias depois após uma série de ações violentas (*1).

 

Mais tarde, os neonazis do grupo Pravy Sektor (Setor Direito) atacaram uma sede sindical em Odessa, onde se agrupavam os opositores ao golpe perpetrado na Ucrânia, lá incendiaram o local, queimando vivas cerca de trinta pessoas, enquanto de fora disparavam contra aqueles que tentavam fugir do edifício em chamas. Esse bandidos incentivados por Washington com a presença de Nuland atuaram igualmente aos criminosos do Estado Islâmico quando capturaram um piloto de caça jordaniano, o prenderam em uma jaula e atearam fogo. Isto foi uma atrocidade inqualificável; já o outro, um lamentável incidente que mereceu uma apenas uma citação do Departamento de Estado.

 

Por último, é preciso recordar à desmemoriada porta-voz que foi o próprio presidente Barack Obama que disse que os Estados Unidos “em certas ocasiões torcem o braço dos países quando não fazem o que queremos”. A Venezuela, desde 1998, não faz o que querem os Estados Unidos, que por sua vez tratam de torcer o braço com uma parafernália de iniciativas dentro das quais agora volta a incluir-se, como em 2002, o golpe militar (*2).

 

Alguns podiam objetivar que a denúncia do governo bolivariano é alarmista, infundada e que não houve tentativa golpista alguma. Quem pensa desse modo ignora (ou prefere ignorar) as lições da história latino-americana. Elas demonstram que os golpes de Estado sempre começam como ações pontuais, aparentemente insensatas e tresloucadas de um grupo, e que não devem ser levadas a sério. E mais: costuma-se acusar os governos que desbaratam ou denunciam este tipo de atividade – que são o embrião do golpe de Estado – como irresponsáveis que levam besteiras à população, vendo fantasmas onde há apenas um pequeno núcleo de fanáticos que deseja chamar a atenção das autoridades.

 

Em todo caso, como esquecer os trabalhos preparatórios da direita venezuelana quando poucas semanas atrás convidou os ex-presidentes Andrés Pastrana, Felipe Calderón e Sebastián Piñera para visitar Leopoldo López, sob o pretexto de participar de um foro sobre o empoderamento da cidadania e da democracia? Ou quando dá a conhecer um comunicado conjunto assinado pelos principais líderes fascistas venezuelanos: Leopoldo López, Maria Corina Machado e Antonio Ledezma, oportunamente datado em 14 de fevereiro e que após um diagnóstico apocalíptico da realidade venezuelana termina dizendo que “chegou a hora da mudança. O imenso sofrimento do nosso povo não admite mais delongas”.

 

Em todo o comunicado, somente são utilizados termos considerados marcas registradas da Casa Branca: “transição, mudança de regime” sem a menor alusão ao referendo revogatório, dispositivo institucional de mudança de governo pela constituição chavista e inexistente nos países dos ex-presidentes mencionados acima, apesar de se acusar a Venezuela de ser um “Estado totalitário”, ao passo que seus países não dispõem de semelhante recurso e são caracterizados como exemplares democracias, cujos presidentes podem ir à República Bolivariana dar aulas de democracia.

 

Por bem ou por mal

 

Por que utilizam esse recurso? Porque nem Washington e nem seus capangas pensam em uma mudança dentro da legalidade. O procedimento imperial é de uma mudança violenta, estilo Líbia ou Ucrânia ou, no melhor dos casos, um “golpe parlamentar” como o que derrotou Fernando Lugo, ou “judicial,” como o que precipitou a queda de Zelaya (*3). Esqueçam da Constituição!

 

Recapitulando: temos a vontade de Washington de acabar com o processo bolivariano, como fizeram em tantos outros países; estão também as tropas de choque locais, a direita fascista ou fascistóide que conta com um impressionante apoio mediático dentro e fora da Venezuela. Por fim, apareceu também a vanguarda golpista que foi descoberta e desbaratada pelo governo Maduro.

 

A técnica do golpe de Estado ensina que é necessário proceder metodicamente: sempre se começa com um pequeno setor que toma a frente e serve para provar os reflexos do governo e a correlação de forças nas ruas e nos quartéis. Nunca são a totalidade das forças armadas e o bloqueio sedicioso dos que saem em campanha e, em uníssono, se sublevam em massa. Não foi isso que ocorreu contra Salvador Allende no Chile. Foi a infantaria da Marinha que nas primeiras horas da manhã de 11 de setembro ocupou as ruas de Valparaíso, desencadeando uma reação em cadeia que terminou com o golpe de Estado.

 

O mesmo ocorreu com a queda de Juan Perón na Argentina, em 1955, quando uma guarnição de Córdoba se levantou em armas. E outro tanto se verificou no Equador, dia 30 de setembro de 2010, quando foi produzida a insubordinação da Polícia Nacional que reteve durante mais de 12 horas em seu poder o presidente Rafael Correa. A imediata reação popular abortou o golpe, impedindo que a vanguarda golpista pudesse receber o respaldo militar e político, necessário para que o processo culminasse na derrubada do presidente equatoriano. A não ação ou a subestimação oficial, diante do que a principio aparece como uma manifestação extravagante, minúscula e inofensiva de uma patrulha perdida, é que termina desencadeando o golpe de Estado (*4).

 

Cabe se perguntar pelas razões desta desorbitada reação do império, evidenciada não só no caso da República Bolivariana, mas também na Ucrânia. A resposta já está dada faz tempo: os impérios se tornam mais violentos e brutais em suas fases de decadência e desmembramento (*5). Esta é uma lei sociológica comprovada em numerosos casos, começando pela história dos impérios romano, otomano, espanhol, português, britânico e francês. Por que os Estados Unidos haveriam de ser a exceção?

 

Maximiza-se, se temos em conta que a decadência norte-americana, reconhecida pelos principais estrategistas do império, vem acompanhada por uma rápida recomposição da estrutura de poder mundial, onde a fugaz unipolaridade estadunidense que brotara das ruínas da União Soviética – uma infantil ilusão fomentada por Bill Clinton, George W. Bush e seus inefáveis assessores –, anunciando com tambores e cornetas o advento do “novo século americano”, se desfez como um pequeno pedaço de gelo entocado nas ardentes areias do Saara.

 

Menção honrosa

 

Agora, o império se vê em um mundo multipolar, com aliados mais tíbios e reticentes, tributários cada vez mais desobedientes e inimigos cada vez mais poderosos. Nesse contexto, a Venezuela figura como a primeira reserva de petróleo do planeta, adquire uma importância essencial e a reconquista desse país não pode demorar muito mais. Ou, como disse o comunicado golpista da direita, “sem mais delongas”.

 

Uma última referência tem a ver com os alvos escolhidos pelos frustrados golpistas para realizar seus bombardeios. À parte de edifícios governamentais chaves, a lista incluía as instalações da Telesur em Caracas. São compreendidas as razões por trás deste sinistro plano, pois tanto os golpistas quanto os instigadores, de fora e de dentro do país, sabem muito bem o aporte fundamental da Telesur em informar de uma perspectiva “nossamericana”, e despertar e cultivar a consciência anti-imperialista na região. Produto da visão estratégica do comandante Hugo Chávez, que concebeu esta empresa pública multinacional como um instrumento eficaz para a grande batalha de ideias na qual estamos empenhados. Sua gravitação internacional e credibilidade não deixaram de crescer desde então.

 

Sua programação tem um notável conteúdo informativo e educativo, e a capacidade dos que ali trabalham permitiu que milhões de pessoas em todo o mundo possam comprovar as mentiras propagadas pelos meios de comunicação do establishment. Mencionaremos só dois casos, dos tantos que podiam ser escolhidos: o informe sobre o golpe contra Zelaya, minuciosamente omitido pela televisão do sistema, que quando já não podia mais ocultá-lo o tergiversou; e o desmascaramento da notícia que dizia que a aviação de Kadafi estava bombardeando posições de indefesos civis na cidade de Benghazi, cabeceira de praia da OTAN em seu projeto, desgraçadamente culminado, de matar Kadafi e destruir a Líbia.

 

Enquanto toda a imprensa internacional mentia descaradamente, a Telesur foi o único meio de comunicação que durante quatro dias disse a verdade, que logo depois todos tiveram de reconhecer: a de que não houve bombardeios e que os supostos civis indefesos eram na realidade um sanguinário bando de mercenários lançados ao saque e ao assassinato, pelos Estados Unidos e seus comparsas europeus. Por isso que os fascistas tinham como objetivo destruir essa empresa. E isso é um motivo de orgulho, do qual os colegas e amigos da Telesur podem se sentir honrados. Teria sido motivo de preocupação se houvessem desestimado a Telesur nos seus planos golpistas. Podem dizer, com orgulho, como don Quixote: “estão latindo, Sancho, sinal de que estamos cavalgando”.

 

 

Notas:

 

1) Ver em http://www.cbsnews.com/news/us-victoria-nuland-wades-into-ukraine-turmoil-over-yanukovich/

 

2) Obama pronunciou essa desgraçada (mas sincera) frase em uma entrevista concedida à VOX http://actualidad.rt.com/actualidad/166016-obama-torcer-brazos-paises

 

3) O texto inteiro pode ser visto em http://elimpulso.com/articulo/comunicado-de-lopez-machado-y-ledezma-en-2014-la-salida-era-urgente-en-2015-es-impostergable#[1]

 

4) Sobre este tema é imprescindível consultar o estudio de Marcos Roitman Rosenmann, Tiempos de Oscuridad. Historia de los golpes de estado en América Latina (Madrid: Akal, 2013)

 

5) Desenvolvemos essa tese em América Latina en la Geopolítica del Imperialismo (edições várias na Argentina, Estado Espanhol, Cuba, México, Venezuela e em breve Bolívia, Brasil e Equador).

 

 

Atilio Boron é sociólogo argentino.

Tradução de Raphael Sanz, do Correio da Cidadania.

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