Morte do promotor Alfredo Nisman abre crise política na Argentina

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Roberto Ramírez, de Buenos Aires para Correio da Cidadania
06/02/2015

 

 

Às vésperas da reunião no Congresso Nacional, em 19 de janeiro, onde o promotor Alberto Nisman deveria explicar suas denúncias contra a presidente Cristina Kirchner e o chanceler Héctor Tímerman em relação ao “Memorando de Entendimento com o Irã”, ele foi encontrado morto em sua casa. Se foi um suicídio ou não, ainda é matéria de investigação, mas agora tende-se a fortalecer a primeira hipótese, questão que de qualquer maneira é secundária no entendimento a fundo do assunto.

 

Essa morte desatou um tornado nos cenários da política patronal, uma crise política de proporções que ainda seguem abertas.

 

E mais: pelo teor das acusações cruzadas, trata-se de uma tormenta que afeta todos os poderes e instituições da “democracia” burguesa, especialmente o Poder Executivo e o Judiciário, sem que por isso o Legislativo saia muito limpo. Em particular, os que estão na mira são os “serviços de inteligência” do Estado, podres até a medula, e com os quais o procurador Nisman estava intimamente relacionado.

 

Claro, não é possível ainda determinar com certeza muitos dos detalhes destes acontecimentos. Nem por que Nisman se precipitou em fazer uma denúncia semelhante, menos ainda se ele se suicidou ou o suicidaram. Mais difícil ainda será ter respostas às perguntas sobre o atentado terrorista de 18 de julho de 1994 contra a sede da AMIA (Associação Mutual Israelita-Argentina), que este procurador supostamente investigava.

 

É que, desde essa data, todas as “investigações” das instituições e funcionários do Executivo e da Justiça – polícias, serviços, juízes, fiscais etc. –, acompanhadas pela ação ou omissão do Congresso e guiadas pela embaixada dos EUA (e também de Israel), têm gerado um mau cheiro de mentiras e falsificações.

 

Atendado contra a AMIA; sua primeira vítima, a verdade


Em 17 de março de 1992, em Buenos Aires, uma explosão frente à Embaixada de Israel deixou quase 30 mortos. Mas esse atentado – um feito insólito até então na Argentina – seria só o prólogo de outro mais grave. A saber, o cometido em 1994 contra a AMIA, em um bairro central da capital argentina, com 85 pessoas mortas e umas 300 feridas.

 

A “investigação” do atentado à embaixada de certo modo anunciava o que aconteceria com a AMIA. No começo de julho de 1994, a Corte Suprema de Justiça – organismo investigador por se tratar de uma embaixada – arquivou o caso, sem poder resolvê-lo. Dias depois desta medida da Suprema Corte, produzia-se a explosão da AMIA.

 

Aparentemente, a investigação deste segundo e mais grave atentado foi muito diferente da investigação da Embaixada. A investigação da AMIA não foi arquivada, seus escritos e expedientes são hoje a causa mais volumosa na história da justiça argentina; formou também um verdadeiro exército de fiscais e juízes dedicados durante anos ao tema, o que, de vez em quando, produz algum escândalo ou terremoto... O último, e mais grave, o do (suposto) suicídio de seu principal promotor, Alberto Nisman.

 

Mas, com todas as suas diferenças na forma, o resultado é igual: nada se sabe com exatidão. Isso é a única coisa indubitável.

 

Além disso, as ações interessadas de setores políticos patronais oficiais e opositores, as queixas nos aparatos do Estado – justiça, serviços de inteligência, Congresso etc. –, a intervenção das corporações dos meios de comunicação e, acima deles, os manejos da embaixada dos EUA (e, seguramente, também de Israel) geraram um pântano imundo, onde a única comprovação no caso AMIA é que todos jogam lixo contra todos.

 

Um escritor grego de 2500 anos atrás advertiu que “a verdade é a primeira vítima da guerra”. O mesmo podemos dizer hoje das brigas locais e as lutas internacionais que cruzaram o tema.

 

Aqui, claro, não podemos fazer a história completa. Seus incidentes dariam matéria para uma biblioteca de tragicomédias, como, por exemplo, a do primeiro julgamento... que acabou com todos os acusados absolvidos... e o juiz de instrução Juan José Galeano, acusado.... Vamos mostrar apenas alguns botões, o mencionado primeiro julgamento, uma radiografia da etapa Nisman e, talvez o mais importante, o papel sinistro da Embaixada dos EUA... e seus agentes nativos.

 

Três “pistas” e um primeiro fiasco


Como em um carrossel, passaram três “pistas” sobre a AMIA: a “conexão iraniana”, a “conexão síria” e a “conexão local da polícia bonaerense”. A gosto de cada um, elas têm sido mescladas ou adotadas com outros ingredientes, como a intervenção do Hezbollah, partido de massas da comunidade xiita do Líbano.

 

Toma-se como elo principal a política bonaerense e as declarações de Manoucher Motamer, um (suposto) ex-diplomata iraniano que se transformou em agente da CIA e comandou a “investigação” do juiz Juan José Galeano, homem do então presidente Carlos Menem. A “conexão local” estava supostamente formada por um revendedor de automóveis usados, Carlos Telledín, e outros imputados, vários deles policiais. Foi dada a um militante suicida uma camionete que, carregada de explosivos, explodiu a AMIA.

 

Essa história veio abaixo em um grande julgamento (de setembro de 2001 ao mesmo mês de 2004). Desabou por ausência total de provas (incluindo a da camionete) e, finalmente, pela revelação de um vídeo escandaloso. Nele, via-se o juiz Galeano negociando com Telledín o pagamento de 400.000 dólares para que declarasse todas as mentiras que lhe ditaram. E nessa fraude judicial aparecia também, diretamente implicado, junto com Galeano, um dos principais dirigentes sionistas da Argentina, o então presidente da DAIA (Delegação de Associações Israelitas Argentinas), Rubén Beraja.

 

Neste desenlace, o “primeiro julgamento da AMIA” refletiu, também, uma profunda mudança política nacional. Em dezembro de 2001, quase simultaneamente ao começo deste “primeiro julgamento”, produziu-se o “argentinazo”, a imensa rebelião popular que não só derrubaria o então presidente De la Rua, mas que também colocaria fim ao ciclo de “neoliberalismo selvagem” iniciado pelas presidências de Carlos Menem (1989-1999). Galeano era um juiz do “menemismo” e sua “investigação” refletia isso, em grande medida.

 

Em 25 de maio de 2003, começa a era dos Kirchner no governo... E em dezembro Galeano e dois de seus promotores são destituídos e processados. Logo, Nisman é nomeado promotor investigador da causa AMIA.

 

Nisman, o homem da era Kirchner


O kirchnerismo assumiu a presidência com a grande tarefa de acalmar o perigoso estouro social e a fim de “normalizar e estabilizar o regime político, questionado pelo lema histórico do Argentinazo: ‘que se vayan todos!’”.

 

Como essa rebelião popular não foi acompanhada pelo surgimento de uma alternativa política independente, finalmente caíram todos... Mas com mudanças de certa importância e com relações de força políticas-sociais distintas das dos anos 90, que foi a década das derrotas. O kirchnerismo se ergueu como o grande árbitro e administrador e, por sua vez, reconstrutor do Estado burguês e suas instituições deslegitimadas.

 

A AMIA foi parte desta operação e o homem do kirchnerismo para comandá-la foi precisamente Alberto Nisman. Hoje, a extrema-direita neoliberal, que nos bairros aristocráticos vem batendo panelas em protesto pelo suposto “assassinato de Nisman”, se esqueceu deste detalhe...

 

Como tudo realizado pelos Kirchner, Nisman à frente do caso AMIA foi simultaneamente mudança e continuidade. E não só porque Nisman era parte da equipe do fraudulento Galeano.

 

Nisman reorientou a AMIA, mas continuou essencialmente com a chamada “pista iraniana”. Tudo com o mesmo defeito fatal das “investigações” de Galeano. Tampouco contribuiu com alguma prova séria. Talvez quem tenha definido melhor este vácuo foi o jornalista Jorge Lanata, antes de se transformar em empregado do Clarín, um multimídia argentino – que faz a Rede Globo parecer um exemplo mundial de honestidade e veracidade.

 

Mesmo assim, é interessante comprovar como os enredos, as “idas e vindas” do tema AMIA e de Nisman, seguiram também as oscilações dos tempos políticos posteriores. É que o jovem promotor se portou muito bem durante anos. As más relações com o governo se iniciam – oh, casualidade! – na presente etapa da crise geral do ciclo kirchnerista.

 

Em um demolidor artigo – intitulado “Toque-a de novo, Nisman” (Perfil, 19/11/2006) –, Lanata descrevia assim esta renovada e reciclada fraude judicial:

 

A causa AMIA soma hoje 113.600 páginas – começa dizendo Lanata. São 568 registros de duzentas páginas cada um, que devem somar 400 arquivos de ‘Investigação’, 1.000 pacotes de sete a oito arquivos cada um com escutas telefônicas, e 1.500 pastas com informação da SIDE – Serviço de Inteligência. Nessas 113.600 folhas, 568 registros, 400 arquivos, 1.000 pacotes e 1.500 pastas não há nada. Se nos dedicarmos a fazer um totem judicial com essa quantidade absurda de papel, poderíamos encher vários quartos em uma casa. Vários quartos cheios de nada.


Na verdade, e para ser exato, não se trata de um Nada Absoluto: há operações de serviços de inteligência, da polícia, de governos estrangeiros, estupidez de juízes e fiscais, corrupção, gestos miseráveis e depois... nada. O mesmo nada presente nas oitocentas e uma páginas da opinião do promotor Nisman, um nada ratificado pelo juiz federal Canicoba Corral”.

 

Hoje, quase dez anos depois, as toneladas de papel se multiplicaram, mas a investigação segue sendo “o Nada Absoluto”.

 

Efetivamente, a “conexão com o Irã” se resume assim: vários exilados iranianos, inimigos do atual regime, e alguns notoriamente relacionados com a CIA dizem que “o atentado se decidiu em uma reunião do governo iraniano em 14 de agosto de 1993”. E não contribuíram com prova alguma.

 

Sobre isso, outro jornalista que investigou o enredo judicial da AMIA comenta: “é como se cinco dissidentes cubanos de Miami contassem que eles disseram que ouviram que houve uma reunião secreta entre Fidel, Raúl Castro e outros altos funcionários, donde se decidiu atacar alguém”.

 

Outra “descoberta” de Nisman foi a suposta identidade do condutor da camionete com os explosivos. Também, seguindo o livreto de informantes parentes dos serviços dos EUA, Nisman o “identifica” como Ibrahim Hussein Berro, libanês, que estava relacionado com o Hezbollah.

 

Mas a alegria durou pouco. Os familiares deste jovem, radicados nos EUA, provaram que morreu no Líbano depois do atentado. Era, além disso, um jovem que havia ficado deficiente anos atrás.

 

Além disso, uma testemunha argentina, que supostamente havia visto o motorista da caminhonete imaginária e o achou parecido a uma foto de Berro, se retratou depois... Assim, o diário La Nación, que como outros havia anunciado o “grande descobrimento”, publicou em seguida uma nota de pesar com este título: “AMIA: mais dúvidas sobre o motorista suicida”. (13/05/2006).

 

O fiscal, a embaixada e os “serviços”


Por fim, o detalhe mais importante. A montanha de documentação secreta do Departamento de Estado, revelada por Julian Assange no WikiLeaks, tem uma veia argentina. Dois livros do jornalista Santiago O’Donnel – Argenleaks (2011) e Politileaks (2014) – analisam os bastidores da República. Nisman é um dos muitos personagens de destaque que aparecem relacionados e... subordinados à embaixada ianque.

 

Sua conduta, revela O’Donnell, “inclui adiantar à embaixada medidas judiciais, tanto da fiscalização quanto do juízo da causa AMIA, levar apagadores de resoluções à embaixada para serem corrigidos até que se consiga a aprovação da sede diplomática, e desculpar-se reiteradamente quando não for dado um aviso prévio de alguma medida judicial do caso aos diplomatas e agentes da dita embaixada estadunidense” (3).

 

Isto não é só escandaloso. O mais importante está além da pessoa de Nisnam: revela a verdade do status semicolonial da Argentina, uma realidade mais sólida do que os discursos “nacionais e populares” do kirchnerismo.

 

É que os documentos aludidos do WikiLeaks não foram publicados ontem nem anteontem. No seu momento, o governo “nacional e popular” kirchnerista não se deteve por essa característica servil de seu fiscal (já publicada pelo WikiLeaks), que o revelava como um golpista da embaixada dos EUA...


A ruptura com o kirchnerismo é iniciada por Nisman depois, seguramente ditada pela embaixada dos EUA, como tudo o que fazia. Está relacionada com o “Memorando de Entendimento” com o Irã, gerido pelo governo de Cristina em 2013 para tentar fazer com que iranianos suspeitos fossem indagados a respeito. Isso fez com que se iniciasse uma aproximação de Washington com Teerã. Evidentemente, o governo argentino interpretou mal esse sinal. Não se deu conta de que o Amo se permite fazer coisas que não tolera naqueles que estima como serventes?

 

Outro aspecto fundamental deste escândalo tem sido o papel dos “serviços”, concretamente o da “Secretaria de Inteligência”. As ordens da embaixada dos EUA não caíam apenas sobre o fiscal, senão também sobre o outro intermediário estreitamente ligado à CIA: o ex -‘patrão’ da Secretaria de Inteligência (ex-SIDE), Antonio “Jaime” Stiusso.

 

Tal personagem atuava há décadas nessa cloaca. O kirchnerismo o manteve à frente desse aparato, apesar de seus antecedentes que remontam aos tempos da ditadura. Mas, simultaneamente com Nisman, Stiusso começa uma ruptura com o atual governo.

 

Esta crise “destapou,” então, o lado mais obscuro e sinistro do regime e suas instituições. Pela primeira vez, coloca-se também em questão o tema de o que fazer com os “serviços de inteligência”, ou seja, com o braço “legalmente ilegal” do Estado capitalista, para todos os trabalhos sujos que não podem ser feitos à luz do dia.

 

O que fazer?


A crise política desatada salpica para todas as instituições, desde as visíveis – Poder Executivo, Judiciário etc. – até as que operam atrás das cortinas, como os “serviços”. O governo propõe uma “reforma”, dissolver a “Secretaria de Inteligência”, mas para recriá-la com outro nome (Agência Federal de Inteligência) e, obviamente, com um pessoal fiel ao kirchnerismo. A oposição patronal propõe deixar tudo como está, ou seja, com a turma do senhor Jaime no comando...

 

E a “esquerda”? O FIT (Frente de Esquerda – “ izquierda ” em espanhol – e dos Trabalhadores) não propõe nada como tal.

 

Assim como vem acontecendo em relação a todos os temas importantes, o FIT não foi capaz de se colocar de acordo para emitir uma opinião. Sua principal força, o PO (Partido Obrero), através de seu deputado, se alimentou atrás da oposição de direita... O PTS sustenta uma pauta correta, mas parcial: a dissolução dos serviços e organismos repressivos.

 

De nossa parte, nos parece que há uma crise global das instituições do Estado. Ninguém se salva! Isto exige uma resposta também global, de conjunto, e que assim mesmo seja democrática. Quer dizer, a perspectiva de rediscutir de cima a baixo todo o ordenamento político e social do país. E para isso, convocar uma Assembleia Constituinte Soberana.

 


Roberto Ramirez é editor da revista eletrônica Socialismo ou Barbárie.

Traduzido por Daniela Mouro, Correio da Cidadania – www.correiocidadania.com.br

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