Homenagem a Leonel Itaussu de Almeida Mello

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Osvaldo Coggiola
07/05/2013

 

 

Leonel Itaussu de Almeida Mello nasceu em Olímpia, interior de São Paulo. Tinha antepassados libaneses. Jovem, deslocou-se à capital para estudar e se incorporou à militância na ALN (Aliança Libertadora Nacional). Foi preso pelo regime militar, torturado no DOI-CODI, conheceu a chamada “cadeira do dragão”. A tortura na boca com eletricidade lhe fez perder todas as obturações molares. Manteve sequelas físicas da tortura durante toda sua vida, como aconteceu com tantos, que nada dizem a respeito. Nunca pediu indenização. Esteve na prisão durante um ano, aproximadamente. Novamente livre, foi professor do cursinho da Equipe, a partir de 1974, e concluiu estudos de advocacia na USP (São Francisco), profissão que nunca exerceu, e também de Ciências Sociais, na mesma USP. Fez Mestrado em Sociologia Política, e doutorado em Ciência Política. Era também Pós-Doutor pela Universidade da Califórnia (Berkeley). Docente do Departamento de Ciência Política (FFLCH) da USP, eu o conheci nos debates sobre a unidade da FFLCH dos anos 1990, em que se destacou defendendo a unidade da faculdade, com a força intelectual e a fogosidade oratória que lhe eram características. Já era Professor Titular do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, cargo obtido em concurso de concorrência acirrada.

 

Com Luiz César Amad Costa, seu colega de trabalho, de estudo e grande amigo, escreveu textos didáticos de história moderna e contemporânea, de grande difusão. E, dentre outros livros, publicou: Argentina e Brasil: A Balança de Poder No Cone Sul (São Paulo: Hucitec, 2012, última edição);  Quem tem medo de Geopolítica? (São Paulo: Hucitec, 2012, última edição); A Geopolítica do Brasil e a Bacia do Prata (São Paulo: Hucitec, 2012, última edição).

 

Não fez “carreira política”, não almejou cargos governamentais e parlamentares, carreira para o qual lhe sobravam fibra e condições intelectuais e não lhe faltavam oportunidades de todo tipo; preferiu dedicar-se à pesquisa e à docência na universidade pública, e à luta junto aos trabalhadores e os movimentos sociais desde essa posição. Era orador excepcional, dispensava microfones quando enfrentava auditórios, graças ao volume da sua voz e à sua forte personalidade. Prendia a atenção o público pela erudição e pela lógica contundente de suas argumentações, e enfrentava com elegância todos os debates políticos, nos quais ouvia com atenção e educação os argumentos contrários ou divergentes. Foi, por isso, presença indispensável nos congressos e simpósios que organizamos no Departamento de História da USP (suas intervenções estão, felizmente, gravadas). Estava previsto que falasse na abertura do próximo simpósio, Um Mundo em Convulsão, a ser realizado a 8 e 9 de outubro p.f.

 

Sua generosidade pessoal era ímpar. Preocupava-se permanentemente pelo estado de saúde e bem-estar de seus amigos e colegas. Vivia em condições modestas, se deslocava em um Monza da década de 80, e quando da demissão de funcionários da USP por “delito” de greve, doou parte de seu salário para esses trabalhadores que se encontravam sem proventos (não deixou que ninguém soubesse, mas agora eu digo). Foi delegado pela Adusp a vários congressos do Andes – Sindicato Nacional. Era membro permanente, e permanente participante dos debates, na Congregação da FFLCH-USP. Em uma de suas últimas aparições públicas, no ato-debate “Contra a destruição da Palestina” que coordenamos no Departamento de História (USP) em finais de 2012, por ocasião dos bombardeios israelenses contra a população civil de Gaza, fez questão, em que pesem suas precárias condições de saúde, de falar em pé... em homenagem ao homo erectus.

 

Apresentou nesse ato um texto-moção sobre o conflito no Oriente Médio, que foi adotado pelo Fórum Social Mundial – Palestina, que nesse mesmo momento se reunia em Porto Alegre. Há pouco mais de quinze dias, quando de uma visita judicial ao meu domicílio devido a um problema banal (e estúpido, para quem já foi perseguido político) fez questão de permanecer comigo como testemunha (e eventual advogado), como meu amigo, e insisto em que sua saúde já não estava boa. Assim era Leonel. Generoso ao máximo e dono de um humor cáustico ao mesmo tempo de uma capacidade crítica permanentes. Ninguém se aborrecia, ou se entediava por um minuto sequer, estando ao seu lado. Ninguém perdia o tempo escutando suas críticas ou conselhos.

 

Interessava-se por tudo, e seus alunos e orientandos lembram e lembrarão sempre sua dedicação, atenção e, novamente, generosidade. Lutava por eles quando lhes faltava um prazo para concluir suas dissertações ou teses. Como membro de bancas de concurso público, não aceitava pressões e se guiava por uma objetividade absoluta baseada no mérito. Esteve política e intelectualmente ativo até poucos dias (talvez até poucas horas) antes de sua internação final, com problemas respiratórios em um organismo já muito debilitado devido a doenças diversas e a uma vida vivida sem medo nem cálculos egoístas.

 

Na homenagem que lhe prestou José Genoíno na Câmara de Deputados, nesta segunda-feira, lê-se: “Militante político na resistência contra a ditadura, conheci-o no Cursinho Equipe, onde dava aulas após ter saído da prisão política em 1977. Ele, professor de História Geral, e eu, História do Brasil. Trabalhamos juntos com uma visão democrática de como tratar o cursinho, o colégio, o supletivo, naquela ilha democrática que era o Colégio Equipe. Como professor de Ciência Política, concursado, da USP, formou várias gerações, com competência, com conhecimento, com uma liderança acadêmica. E sempre foi um militante político, um militante político de esquerda, um militante político ao lado do Partido dos Trabalhadores, mesmo sem ser filiado ao Partido dos Trabalhadores... O Leonel Itaussu esteve ao meu lado em vários momentos importantes da minha vida, como quando saí da prisão para dar aula em cursinho, nas várias eleições que disputei...”.

 

Os catadores de mesquinharias políticas podem protestar à vontade pela citação acima. Essas coisas estão na história. Leonel foi um marxista, um revolucionário, no verdadeiro e amplo sentido da palavra. Membro de uma geração cheia de contradições e de impasses, mas cujos melhores representantes não vacilaram em apostar a vida nas suas convicções. E Leonel esteve entre eles. Esse é o homem que se foi domingo pela madrugada, aos 67 anos de idade. Uma vida encurtada pelas apostas que ele fez na política, no ensino, no conhecimento, na militância, nos homens, nas mulheres, na vida. Todos os que hoje o choram, seus filhos, sua companheira, seus parentes, seus alunos, seus amigos, seus camaradas, têm sobrados motivos de orgulho por tê-lo conhecido.

 

La mort n’est un malheur que pour celui qui survît.


Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.

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