O Ministério da pirataria

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Pedro Alexandre Sanches
25/04/2012

 

E a nossa ministra da Cultura, Ana Buarque de Hollanda, aprontou mais uma. Desta vez o palco foi a Feira Internacional do Livro de Bogotá, na Colômbia, de acordo com relato da Agência EFE, reproduzida pelo portal Terra sob o título “Ministra defente regulação de propriedade intelectual na internet“.

 

A crer na transposição da Agência EFE, foi mais uma coleção de frases impressionantes – não por estarem necessariamente equivocadas, mas por simbolizarem platitudes por vezes desprovidas de qualquer fundo de conteúdo. A elas.

 

Gilberto Gil trabalhava muito por uma internet livre e eu também trabalho por uma internet livre para aquele que quer depositar sua obra livremente.”

 

Sim, “depositar”. Esse foi o verbo eleito pela ministra, que também lembrou que Gil “tem sua obra protegida e recebe os pagamentos correspondentes”. Como se lutar pelos próprios direitos fosse sinônimo de recusar direitos a outros. Como se obras fossem cadernetas de poupança a serem depositadas em bancos.

 

Ana se disse preocupada com a forma como “está sendo levada a discussão sobre como divulgar a cultura através da internet”. Isso é conosco. Somos nós, estes seres estranhos e incômodos que freqüentamos esta ameaçadora rede mundial de computadores.

 

“A indústria cinematográfica é caríssima e necessita de uma proteção; se se dispõe gratuitamente dela, é pirataria, e com pirataria não se paga ninguém.”

 

Sim, “caríssima”. A ministra da Cultura do Brasil não está preocupada com a cultura, nem com a privataria praticada com toda voracidade por institutos “caríssimos” como o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), que ela parece representar prioritariamente na função que hoje ocupa.

 

Obcecada pela própria compreensão do conceito “pirataria”, usa o título de ministra da Cultura para dar cobertura à “caríssima” indústria cinematográfica que teve entre seus primeiros luminares um tal Walt Disney, pirata contumaz de contos de fadas antes pertencentes ao domínio público.

 

Não sobram dúvidas. Na retaguarda da “caríssima” indústria cinematográfica (a Globo Filmes, por exemplo), parece fazer mais jus a um título do tipo ministra do Entretenimento Corporativo do que àquele que hoje ocupa.

 

A ministra pode pensar assim, à vontade. Daí a fazer desse seu principal discurso oficial, é caso de sentar à margem do rio da Pedra e chorar, como faria Paulo Coelho, um célebre e subversivo entusiasta das liberdades intelectuais.

 

Ana busca “garantir os direitos de quem cria”, concluiu o informe do Terra/EFE. E os direitos de quem não crê mais, ministra?

 

Este texto poderia terminar aqui, mas saio agora da notícia para entrar num desabafo particular. É doloroso demais cobrir as movimentações do atual Ministério da Cultura (MinC) do Brasil. Como dizer que a irmã mais nova de Chico Buarque, filha de Sérgio Buarque de Hollanda etc. e tal não faz a mais remota idéia daquilo sobre o que está falando sem soar hostil, intolerante, preconceituoso, arrivista, misógino, agressivo, mal-educado?

 

Não é possível, não consigo, muitos de nós não conseguimos mais. No dia da posse de Ana no MinC, assisti a seu discurso pela televisão. Achei vazio e dramaticamente amador, mas fiquei entre consternado, penalizado e solidário com o nervosismo que a neoministra exalava. Fiz de tudo para acreditar que era nervosismo, e não desconhecimento, ignorância ou despreparo para a função, ou para o teatro da função.

 

Naqueles dias, eu divergia do pessoal do ativismo digital, viúvas de Gil e de Juca Ferreira, e cybermilitantes que pareciam detestar Ana desde o dia do anúncio do nome, desde criancinhas, desde muito antes de ela pisar no ministério.

 

Eu acreditava que rechaçar seu nome antecipadamente só a empurraria para o retrocesso e para a direita. Acredito nisso até agora. Acho que isso aconteceu. E acho que piora todo dia, inclusive a cada texto como este que sai publicado neste ambiente pelo qual Ana manifesta tanto terror.

 

Fiquei calado sobre Ana, por mais de um ano. Pedi entrevistas, que nunca foram concedidas. Joguei paciência inúmeras vezes com meu computador.

 

Só comecei a manifestar para valer minha oposição não ao nome, mas à própria ministra (ou melhor, às atitudes da dita cuja), depois que nosso site FAROFAFÁ entrou na cobertura de acontecimentos estranhos no MinC.

 

Foi há pouco mais de dois meses, com um furo de reportagem de Jotabê Medeiros, comprovação da associação espúria entre MinC e Ecad – até hoje não repercutida pela mídia corporativa brasileira.

 

Nunca é demais repetir: a mídia corporativa, às voltas agora com a CPI do Cachoeira, protege desvairadamente essa ministra, acionando até colunistas respeitáveis como Ancelmo Góis, do sistema Globo.

 

Faz vista grossa para qualquer irregularidade praticada no MinC. Protege a ministra (diz-se que) ligada ao PT como se fosse sua filha, sua neta, sua funcionária de alto escalão.

 

De dois meses para cá, ficou mais aguda a percepção de que acompanhar o ministério de Ana Buarque de Hollanda é um constrangimento contínuo. Onde queres perseguição, nós diríamos desconsolo, para citar um compositor de outra família, ou “pedigree”.

 

Na sexta-feira 13 de abril, fui esgueirado até a Funarte de São Paulo para assistir a participação de Ana na abertura do Seminário Cultura e Sustentabilidade – Rumo à Rio + 20 (para o qual, por sinal, não fui convidado). Era um evento público, aberto e gratuito, ao qual não compareceram mais que 50 pessoas. Doeu-me ver o MinC jogado às traças, mas perseverei. Sentado lá, encolhido, ainda pensei: quem sabe aqui, num evento não-midiático, não consigo conhecer um pouco da “verdadeira” Ana, essa que os opositores maquiavélicos espalhados pelo planeta não conseguimos nem queremos nunca alcançar. Foi constrangedor.

 

Saí de lá disposto a matar o assunto (FAROFAFÁ existe para falar de cultura e de música do Brasil, NÃO para fazer bajulação ou oposição a nenhum ministro, ministra, presidenta ou presidente).

 

É o meu país, pô!, passando vergonha em público, ao lado de altas autoridades culturais de Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, e eu não quero ter nada a ver com isso. Além disso, vou reclamar dela DE NOVO, como cybersambista de uma nota só?

 

Guardei a fala da ministra, que eu tinha gravado (e não vi reproduzida em lugar algum, nem em parte, muito menos no todo). Decidi não usá-la. O objetivo de FAROFAFÁ não é, nunca foi e nunca será derrubar, prejudicar ou atrapalhar a ministra ou o Ministério. Somos trabalhadores da cultura, pô, a gente quer que ela faça o melhor porque ela é quem nos representa junto ao governo de Dilma Rousseff!

 

Mas agora, diante da nova-velha série de bobagens ditas com ar de relevância na Colômbia, percebi: passou o dia 19 de abril, dia do índio e dia do índio Roberto Carlos, e não dá mais para resguardar esse discurso de 13 de abril de Ana Buarque de Hollanda, senhora ministra de Estado do Brasil.

 

Não sou adepto da misoginia nem do machismo – eles me matam um pouco todo dia.

 

Não sou adepto da patrulha lingüística contra qualquer brasileiro ou brasileira, seja culto ou inculto, alfabetizado ou desalfabetizado.

 

Não sou adepto da transcrição literal de falas alheias – um dia, quando transcrevi uma entrevista na qual Baden Powell revelava que havia virado evangélico, alguém me ensinou que transmitir na escrita a coloquialidade da fala das pessoas é, sempre, uma escolha ideológica.

 

Não sou absolutamente contra os direitos que a ministra diz defender – afinal, pô!, eu também sou autor(!), seja nos dois livros que escrevi, seja nos textos jornalísticos ou antijornalísticos que cometo diariamente.

 

Mesmo feitas as quatro ressalvas acima, tomo a decisão de contrariá-las, uma por uma, e expor a ministra mulher da presidenta mulher, transcrevendo na íntegra (inclusive com três parágrafos iniciais de enrolação cerimonial) o modo exato como ela se expressou diante das autoridades culturais do nosso “bloco” de índios aculturados latino-americanos. Os grifos são meus. Mas Ana fala por si.

 

Discurso de Ana de Hollanda, 13 de abril de 2012

 

“Boa noite a todos. Quero cumprimentar primeiramente o ministro Ticio Escobar, da República do Paraguai. Ministro Luis Alberto Peirano, ministro da Cultura da República do Peru… Ah, está lá (ela havia se dirigido primeiramente ao lado errado). Vice-ministro Ignácio Soqueré Tomichá, ministro de Culturas do Estado Plurian… Plurianu… Plurinacional da Bolívia – estou, desde há pouco tempo que mudou a nomenclatura, então ainda estou me adaptando. Ministro Ricardo Ehrlich, da República Oriental do Uruguai. Monica Guariglio, diretora nacional de Política Cultural e Cooperação Internacional da República da Argentina. Cristina Gálvez Gómez, encarregada nacional de programa Turismo Cultural do Chile.

 

“Meu querido colaborador, secretário-executivo do Ministério da Cultura, Vitor Ortiz. Bruno Covas, secretário de Meio Ambiente do estado de São Paulo, que está representando o governador. Quero cumprimentar o representante regional do Ministério da Cultura aqui em São Paulo, Valério Benfica. Eu cumprimento aqui o secretário de Sefic, Henilton Menezes, em nome de quem cumprimento todos os membros do ministério, funcionários, participantes, colaboradores do Ministério da Cultura, do sistema MinC, em especial a Funarte, que tá nos recebendo. Cumprimento a presidente da associação Mulheres pela Paz, minha querida amiga Clara Charf. Gestores culturais, artistas, enfim, senhoras e senhores, amigos.

 

“Hoje eu tô… É um momento muito importante, tô muito honrada por ter recebido, pelos ministros e representantes do governo terem aceitado esse convite para vir discutir com a gente, eu acho, uma preocupação que afeta a todos nós, que é a questão do desenvolvimento e do meio ambiente, que está sendo discutida agora na Rio +20. A questão do meio ambiente, que já foi levantada uma preocupação da ONU, que já vem vindo, Estocolmo, Johanesburgo, no Rio 92, e que está cada vez mais urgente, mais premente, a questão do meio ambiente, da sustentabilidade para todo o planeta.

 

“Nós, aqui, na América do Sul, vivemos também isso de uma forma, temos que pensar num bloco. Nesse momento, a gente está vivendo certas agressões que está afetando a todos nós. Nós temos que pensar, como foi falado, não só como países independentes. Nós temos que pensar como povos, povos que, como foi falado, muito bem exposto – aliás, é um dos problemas de falar depois das exposições já apresentadas -, povos que não representam só uma determinada nação, ocupam territórios muito maiores.

 

“Quando falamos, por exemplo, dos povos guaranis, que ocupam vários países e que têm uma cultura que a gente tem que reconhecer, a cultura guarani. Temos que reconhecer várias culturas, como as culturas ribeirinhas, as culturas quilombolas, as culturas que, mais do que qualquer outra, elas dependem, a sobrevivência delas, não só cultural, como física, desses povos, dependem da questão ambiental. Essa preocupação é mais necessária do que nunca nesse momento.

 

Nós estamos a toda hora, a todo momento, falando dos nossos povos. A gente pensa nos direitos, a gente fala dos direitos culturais, dos direitos de cidadania. E, quando falamos nos direitos de cidadania, temos que pensar nos direitos éticos, nos direitos estéticos, nos direitos históricos, em todos esses direitos que refletem a diversidade cultural, a diversidade dos nossos povos.

 

“Foi muito falado também dessa questão, né?, de trabalhar a questão até econômica como tradicionalmente, economicamente, se impôs uma cultura. Mas a gente tem que pensar no desenvolvimento e na sustentabilidade pensando na inclusão social, na oportunidade de trabalho. E não podemos também pensar nessa diversidade, nessa oportunidade, se não pensarmos nos pequenos, nas diferenças.

 

Estamos no Ministério da Cultura, inclusive, trabalhando muito nisso, reconhecendo os territórios criativos, como ajudar, como facilitar, como fomentar, como ajudar a distribuir, a promover o acesso a essas culturas. E promover condições também, dar condições, para que elas se desenvolvam dessa forma, desenvolvam e mostrem suas culturas.

 

Eu entendo quando se fala de liberdade de expressão. Acho que não existe liberdade de expressão mais completa do que a liberdade de expressão artística, cultural. Essa, sim, essa é a mais livre, essa diz tudo. Nós temos que pensar nessa liberdade, nessa, nesse fomento, nessa discussão.

 

Eu não vim aqui pra apresentar grandes teses. Eu vim aqui pra chamar todos pra essa discussão. Porque o Ministério da Cultura tá discutindo junto com toda a sociedade civil, lá no Itamaraty, junto com o Ministério do Meio Ambiente, o governo brasileiro tá todo mobilizado. Como falou Vitor Ortiz, estamos em várias discussões com municípios, estamos discutindo com a sociedade, com os povos, discutindo a questão da sustentabilidade e do desenvolvimento.

 

“Agora, temos que pensar, sim, temos que pensar no nosso bloco. Temos que pensar na América do Sul. Temos que pensar que ainda estamos nesse embate entre o norte e o sul, nos hemisférios. Temos que pensar que essa situação, se a gente não se afirmar e não marcar posição – e agora, na Rio +20 isso está sendo muito… esse embate está se dando inclusive nos documentos que saíram, aprovados pela ONU, e muitas vezes a nossa dificuldade de incluir a questão da cultura, a compreensão que o desenvolvimento e a sustentabilidade não pode, não vai existir se não for incluindo esses valores culturais, os direitos culturais, a diversidade, a inclusão social. Senão, não vai existir, vai ser sempre a hegemonia econômica sobre a diversidade cultural.

 

“Eu, na verdade, tô então, como falei, depois dessas aulas que tivemos aqui, não vou acrescentar mais muito porque já foi dito tudo. Eu quero mesmo é agradecer ao atendimento do chamado e podemos trabalhar, hoje e amanhã, para tirar… para poder apresentar no Ministério da Cultura, junto com o bloco todo, poder apresentar pra essa discussão que vai acontecer e convidar todos pra estarem aqui na discussão do Rio +20. Essa discussão vai ser em nível internacional, e nós temos que pensar como um bloco da cultura. E todos os nossos governos sintam isso, é importante, eu sei que todos que estão aqui, estão trazendo uma visão dos países que estão representando.

 

Mas agora a gente tem que fazer valer essa visão de uma cultura moderna, uma cultura do século XXI, uma cultura que reconhece as diferenças, reconhece as dificuldades que existem para a inclusão, para a juventude participar, para as novas linguagens poderem participar, para aceitar as diferenças, tudo isso. Se nós não aceitarmos isso agora, a gente não pode falar de avanços, de desenvolvimento, de sustentabilidade. Eu então agradeço a presença de todos, e espero agora continuar a discussão, que eu acho que temos muito a colaborar para o documento final e para o Rio +20.”

 

Pedro Alexandre Sanches é jornalista e editor do site cultural Farofafá, onde este artigo foi originalmente publicado.

 

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